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'Estou me dando conta de que agora sou viado', diz homem trans pioneiro
Distante cerca de 40 km do centro de São Paulo, o Rancho da Vitória fica no fim de um caminho de terra pedregoso, escorregadio, próximo à estrada do Taquaral, em Parelheiros, no extremo da zona sul. Quem chega ao atual endereço do ator trans Leo Moreira Sá, 62, é tentado a tomar o percurso como uma metáfora de sua atribulada trajetória.
Antes de se recolher à solidão voluntária e, segundo ele, apaziguadora, Leo passou praticamente a vida toda tentando encontrar uma denominação para si. Nascido Lourdes Helena, logo percebeu que não se identificava com a menina que achavam que ele era. A infância foi equivocada; a adolescência, rebelde, e a juventude, uma alternância insana entre tentativas e erros.
'Bissexual cis'
Leo estudou ciências sociais, assumiu o discurso feminista, tentou fazer parte de um grupo de lésbicas militantes, virou roqueiro, casou-se com uma travesti, tornou-se traficante, foi preso e hoje se reconhece como homem trans.
A orientação sexual mudou. "Estou me dando conta de que agora sou viado", diz ele, em uma epifania, durante a sessão de fotos para esta reportagem. "Nos últimos dez anos, me relacionei apenas com homens cis [pessoas que se identificam com o gênero atribuído no nascimento]. Antes, eu sequer levava em conta essa possibilidade."
Ele explica que os relacionamentos não vão além de encontros ocasionais. Conta que o tipo de homem que o atrai é aquele "com cara de homem, como eu". Por sua vez, o que se sente atraído por ele, segundo diz, é o "bissexual cis".
Nessas ocasiões, Leo informa imediatamente ao pretendente que é trans. "Na hora em que o cara chega em mim, eu já digo. É importante visibilizar a transexualidade. Não quero estar escondido atrás de um modelo cisgênero, e me valer dos privilégios do homem hétero cis, machista."
Coisa de mulher
Vaidoso, Leo está preocupado com sua "cara". "Será que está caída?", pergunta, olhando para a câmera. Ele conta que se submeteu a duas cirurgias plásticas no rosto, e afirma, rindo, que reduziu a própria idade em seu portifólio. "Coloquei 52." Pergunta se está bem na camisa estampada azul e verde, de mangas curtas.
Digo, a título de provocação, que esse tipo de preocupação é "coisa de mulher". Ele fica sério. "Isso é um estereótipo de que a gente, trans, foge. Não existe coisa de um e de outro."
Ele sabe que nem sempre foi tão prático declarar o próprio gênero. Nos anos 1990, quando se casou com uma travesti, Leo e a companheira eram vistos como uma "aberração". "Gente da própria comunidade nos chamava de casal bizarro."
"É verdade, eles causavam estranheza", lembra a empresária Adriana Siqueira, 56, que durante 27 anos foi dona do bar de frequência gay Director's Gourmet, nos Jardins, zona oeste de São Paulo. "O estilo deles era muito interessante, a gente conversava bastante. Quando o Leo fez a transformação, veio me mostrar."
Uma vida, um espetáculo
Quase 30 anos depois, Leo se orgulha de seu pioneirismo. "Vem aí uma geração de jovens totalmente desconstruídos", acredita. "Fui o precursor de tudo. O Leo abriu caminho para eles, e isso me deixa feliz."
Contar a própria história parece fazer parte de um processo de assimilação. Ele já a adaptou inclusive para o teatro, em 2013, em um espetáculo chamado "Lou e Leo", dirigido por Nelson Baskerville. TAB tentou falar com o diretor, pelas redes sociais, mas não obteve resposta.
Rejeitado pelas mulheres
No relato de sua vida, Leo Moreira Sá valoriza as passagens mais difíceis. Repete que não se encaixava em lugar nenhum. Nos anos 1980, tentou fazer parte da ALF (Aliança Lésbica Feminista), uma dissidência do grupo Somos — tido como o primeiro do Brasil de defesa dos direitos LGBTQI+ — , mas se sentia "mal visto" pelas integrantes.
"Eu era muito masculino, e as mulheres lésbicas feministas, por incrível que pareça, eram femininas. Insisti em fazer parte do grupo porque procurava uma identidade", lembra.
Naquela época, Leo morava no alojamento estudantil da USP (Universidade de São Paulo), o Crusp, e ali conheceu as integrantes do grupo As Mercenárias — de orientação heterossexual. Sem nenhuma experiência musical, assumiu a bateria no lugar de Edgard Scandurra, que estava de saída para o grupo Ira!.
Metalúrgicos do ABC
Caçula de nove irmãos, Lourdes Helena nasceu em São Simão, a 300 km da capital, e mudou-se com a família para São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, na adolescência. De repente, viu-se no epicentro das manifestações de esquerda, das greves dos metalúrgicos. "Quando vi o Lula no meio da multidão, e entendi que tinha passado a maior parte da vida sob a ditadura militar, pensei: 'Preciso fazer algo', e prestei vestibular."
Mesmo depois de tocar seis anos com as Mercenárias, Leo nunca chegou a sentir pertencimento. "Era como se eu pudesse arranhar a imagem do grupo. O movimento punk na época era racista, misógino, xenófobo e LGBTfóbico", diz.
Invisibilidade na boate
Em suas incursões nas boates de frequência lésbica, Leo tampouco se sentia notado. "Ninguém via em mim uma mulher. Eu nunca estive de fato naquele ambiente. Sabe quem eu atraía? Os homens gays."
Gabriella Bionda, a travesti que se tornou sua companheira, era cerca de 15 anos mais nova. Tinha 23 quando os dois se conheceram, em 1995. Na ocasião, ele havia acabado de fechar a boate Circus, inaugurada seis meses antes, e estava "mergulhado na cocaína". "Eu já usava nos tempos da faculdade, mas ali fui fundo. A gente passava três dias cheirando, direto", lembra.
A transição para o tráfico foi um "passo natural", segundo ele.
Nossa Senhora do Brasil
Em 1996, antes de o relacionamento completar um ano, Gabi quis se casar na igreja. Escolheu a tradicional Nossa Senhora do Brasil, no coração do nobre Jardim América, que cobra R$ 4.800 pela reserva e, antes da pandemia, submetia os noivos a uma fila de espera de até dois anos.
"A gente estava no universo da cocaína, se sentia poderoso, podia tudo!" Os dois foram rechaçados já no curso de noivos. "A notícia do casamento tinha saído em vários lugares, os padres leram..." O casal posou para um ensaio fotográfico, publicado por uma revista semanal, em que Leo (à época, Lou) aparecia vestida de noivo, Gabi de noiva, e vice-versa.
A Arquidiocese de São Paulo emitiu um decreto determinando um prazo de dois anos para que os dois tivessem tempo de, entre outras coisas, "provar que houve reparação do bem público eclesiástico, lesado".
"Significava que, pelo simples fato de a gente dizer publicamente que pretendia se casar no religioso, tínhamos provocado um dano à igreja", diz Leo.
Overdose e reabilitação
Em 2002, Leo e a companheira se casaram no civil. Pouco depois, ela teve uma overdose, e ele a encaminhou para a reabilitação. "No dia em que entendi que a Gabi ia morrer, parei com a cocaína. Passei para o ecstasy", lembra.
Chegou a ganhar R$ 30 mil em um mês vendendo a nova droga. "Na época, qualquer um podia ser traficante. Nós formávamos um casal supermoderno, educado, com trânsito nas melhores festas da cidade."
Dedurada pelo concorrente
Um dia, Leo foi dedurado por um traficante que operava para um policial. Sua prisão na boate Level, que reunia mais de mil pessoas aos sábados, foi "um show".
"Os policiais me fizeram passar pelo palco, algemada. No Denarc [Divisão Estadual de Narcóticos], levei vários tapas. Diziam: 'Você quer ser homem? Então vai apanhar como homem!'"
Quiseram R$ 100 mil para livrá-lo da prisão. "Eu até tinha, mas dessa vez eu disse 'não"."
Adeus, amor da vida toda
Entre um tapa e um xingamento, Leo deu um jeito de ligar para Gabi e orientá-la a "cair fora". Gabi foi para a Itália, onde vive até hoje. Apesar de considerá-la seu "grande amor", Leo diz que o relacionamento terminou para sempre. "A gente já não estava muito bem, e hoje a ela vive numa vibe que não é mais a minha", resume.
TAB tentou acessar Gabriella Bionda pelo Instagram, mas não obteve resposta.
Salvo pelo gênero errado
Leo pegou cinco anos de detenção. Como ainda não se definia como homem trans, cumpriu pena na cadeia feminina. Ironicamente, foi "salvo" por não declarar o gênero com que se identifica hoje. "Se eu fosse para a cadeia masculina, o bagulho ia ser bem doido", reconhece.
Em um ambiente só de mulheres, a ambiguidade parecia favorecê-lo. Graças a isso, ele pôde escolher "a mais bandidona" para ser sua amante.
Segundo conta, não foi propriamente um sacrifício ter de se relacionar com ela. "Ah, para! Você não sabe o que são as irmãs do PCC! Politizadas, ensino superior, educadíssimas!"
Professor respeitado
Na cadeia, ele se tornou professor de ensino fundamental. Diz que, "se não foi bom (ficar preso), também não foi horrível".
Quando deixou a prisão, enfrentou o abandono total. Os primeiros seis meses de liberdade foram de solidão absoluta. Envolvido em um programa da Prefeitura que atendia pessoas trans em situação de vulnerabilidade, Leo se candidatou em 2009 a um teste que o dramaturgo Rodolfo García Vasquez, fundador da Cia. de Teatro Os Satyros, estava promovendo com "figuras anônimas do centro de São Paulo" para participar do espetáculo "Hipóteses para o Amor e a Verdade".
"No meio do teste, eu o reconheci como a roqueira das Mercenárias", lembra Vasquez, 58, que foi contemporâneo de Leo no curso de ciências sociais.
Prêmio Shell
O candidato passou no teste, e os dois ainda trabalharam juntos em "Cabaré Stravaganza". Leo operava a luz, descia as escadas e dava um depoimento sobre a cirurgia de readequação de gênero que pretendia fazer. "A gente colocava os dados de uma conta bancária no palco, para tentar conseguir o financiamento", conta Vasquez.
O dinheiro arrecadado não foi suficiente, mas os dois ganharam o Prêmio Shell de melhor iluminação de palco, e Vasquez cedeu sua parte para ajudar na mastectomia.
De lá para cá, Leo idealizou o Coletivo Transmasculines, que, entre outras questões, pede o fim do "transfake". "Por que colocar pessoas cisgênero [não trans] para interpretar papeis de trans no teatro, cinema e TV?"
Ultimamente, ele tem se dedicado mais uma vez a reescrever a própria história, só que agora, diz, "não é uma autobiografia". "Parto de um homem trans que se envolve com uma travesti, mas não é necessariamente o que eu vivi."
O artista plástico e escritor Duilio Ferronato, que um dia comprou anfetamina de Leo, dá uns toques no projeto. "Li o texto e fiz algumas observações. Ele tem uma escrita sensível, é inteligente e persiste. Não tem como não dar certo."
Controle trans
O fim da entrevista é marcado por algumas orientações de Leo ao repórter. "Você não quer me mandar o texto para eu ler? Cuidado com os seus conceitos. Sai da ótica cis hétero gay", avisa.
Ainda que não se tenha familiaridade com a expressão, entende-se que a única alternativa é aceitar calado. Nada de confundir "não binário" com "agênero", nem se enganar com o artigo usado para se referir a uma travesti. "Nunca diga 'o' travesti. A cobrança na comunidade tá dura! Isso é muito bom porque a mídia já aprendeu."
É.
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