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Trombadas

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

A 'minhamãe' de Severino

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

25/02/2021 04h01

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Eles falam que, da estação Francisco Morato, onde eu moro, até o Brás, meu trabalho, dá uma hora no trem. Dá não. São 57 minutos. E, depois, mais sete caminhando até aqui. Uma hora e quatro no total. É que eu gosto de matemática, viu? Aprendi no orfanato. Aprendi muita sabedoria no orfanato.

Minhamãe. Quero falar de minhamãe. É minhamãe a dona do meu pensamento nessa uma hora e quatro de viagem todo dia. Ela me pôs no orfanato quando eu tinha dois anos de idade. Eu, mais uma irmã de quatro, mais um irmão de sete. Meu pai não conheci. Mãe solteira, não sei se você sabe, não tinha valor no Recife antigamente. Pra trabalhar em casa de família, a patroa não queria. Então não foi abandono. Minhamãe deixou a gente no orfanato causa do sistema, nesses termos, vamos assim dizer.

Tinha tudo coisa boa no orfanato. Afeto, instrução, comida. Aprendi costura, confeitaria, desenho. Mas a falta do acolhimento de minhamãe era grande. Um domingo por mês tinha o dia de visita. A gente se arrumava e ficava esperando. E às vezes ela não vinha. Eu sentava no banco o período todinho, das oito da manhã às quatro da tarde, olhando o portão. E ela não vinha. Muita solidão, viu? Ah.. Você desculpa? É que, um homem de 54 anos e chorando por causa da mãe, viu? Só um minuto, que eu já prossigo lhe contando? Olhe, viu? Era uma tristeza tamanha que os pais e mães das outras crianças percebiam e me levavam pra perto deles. Conversavam, abraçavam, pegavam no colo. Só que não era o cheiro de minhamãe. Aí eu pensava, "e se ela não puder vir no mês que vem também?"

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Culpo minhamãe não. Agradeço ela ter me deixado lá. Falo de coração, porque não gosto de jogar palavra fora. Sou um abençoado. Não fosse, como é que passaria doze anos de criança longe de minhamãe e chegaria homem com a cabeça boa? Minha irmã sente revolta até hoje. Eu penso diferente. Porque, veja: como ser um bom filho tendo a mãe distante? É a pergunta que eu me faço até hoje e só acho uma resposta: causa da mãe mesmo. Quando ela ia me ver no orfanato me dava carinho, levava bolo e só me ensinava coisa boa: "Meu filho, você estuda, seja obediente, e mesmo que a mãe está longe, trabalhando, quando tiver condição você volta pra junto de mim". Quer dizer, era pra eu não perder a esperança, viu? Eu queria era pedir que ela me levasse embora com ela. Mas engolia.

Chegou um tempo que eu não acreditava mais que voltaria pro lar de minhamãe. Eu achava que o orfanato ia me dar o caminho da vida: o Exército, quando eu completasse 18 anos. Aí fiz 14 e o orfanato fechou. Retornei pra minhamãe, que me recebeu. Ela tinha construído outra família, eu tinha mais dois irmãos. Fui trabalhar primeiro em granja abatendo frango. Fiquei um ano, três meses, 18 dias. Depois vendi limão no cais de Santa Rita. Até que minhamãe, através da patroa dela, me arranjou serviço numa construção. Era o Edifício Clarice Lispector, o nome da escritora, muito boa ela. Avenida Boa Viagem, número 2.804. Esse foi o momento mais feliz da minha vida, causa que eu tinha certeza que todo dia podia ver minhamãe.

Em 1987, quando fiz 21 anos, depois de raciocinar muito, pedi a minhamãe pra vir pra São Paulo. "Mãe, a senhora permite? Quero ir fazer a vida." Ela permitiu. E falou assim: "Meu filho, você vá e tenha a ambição de ser um homem bom". Jamais esqueci. De lá praqui, tá pra fazer 34 anos, a minha ambição é essa: ser um homem bom como minhamãe pediu. Foi daí que criei um plano aqui na minha cabeça, que já já eu conto. Em São Paulo, no começo trabalhei em obra, também na Telesp, depois ingressei no ramo da segurança e estou até hoje. Sou vigilante de uma firma que, entre outras coisas, presta serviço para a companhia de trens. Nesse trabalho tive a alegria maior em São Paulo: conheci a Alcione. A Marrom. Ah, a Marrom! Um vez fui fazer a segurança do camarim, ela me chamou pra entrar, me abraçou, conversou, cantou aquela "Você é um negão de tirar o chapéu, não posso dar mole senão você créu, um príncipe negro feito a pincel?" Ê coisa boa!

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Quando cheguei aqui, fiquei 21 anos, seis meses e sete dias sem ver nem ouvir minhamãe. Só escrevia carta. Três, quatro num mês. E terminava sempre assim: "Eu te amo, assinado Severino". Às vez eu já tinha mandado meia dúzia de cartas antes de receber resposta da primeira. Em 2008, minhamãe veio me ver. Mas ficou pouco. Achou frio demais e voltou. E desde 2009 eu vou todo ano lá, nas férias. É uma felicidade, viu? Ela me paparica o tempo todo. "Bil, meu filho, quer macaxeira? Bil, meu filho, não volte tarde. Bil, meu filho, sente aqui perto de sua mãe." Ela está com 85 anos. Me chama de Bil, porque, no Nordeste, todo Severino é Bil. Minhamãe me deu esse nome em homenagem a São Severino do Ramo. E, agora, falando do santo, eu vou falar do meu plano.

Já dei entrada no pedido de aposentadoria. Assim que sair, fico mais um ano em São Paulo ajeitando as coisas. Aí, pego Selma, minha nega véia, mais nossa filha de dez anos e vamos os três em definitivo pra Recife. Quero ficar ao lado de minhamãe até o último dia dela, ou o meu. Primeiro, vou fazer uma surpresa: acompanhar ela até a Igreja Nossa Senhora da Luz, em Paudalho, na romaria de São Severino. Hoje sou desviado, não tenho religião, mas vou fazer por minhamãe. Depois, quero ajudar as famílias sem condição. Uma cesta básica que seja.

Eu penso nesse plano desde que desci do ônibus, na rodoviária em São Paulo. Pra falar a verdade, eu deixei minhamãe e o Recife pra trás pra realizar esse plano. Acho que é por isso também que não conheci um diazinho de desemprego aqui. Porque eu falava pra mim mesmo: não esquece do plano, não esquece do plano, não deixa ele só na mente. Daí que carrego essa ideia de voltar pra perto de minhamãe e ajudar as pessoas que precisam, principalmente as casas onde tem criança pequena, pra que mãe e filho não se separem nunca. É como se fosse um aperto no peito que agora eu estou perto de soltar. Estou contando os dias pra voltar à minhamãe. É assim, viu?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Severino Ferreira da Silva, 54 anos.

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.