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Trombadas

O perde-ganha de Shirley

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

26/08/2021 04h01

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Nossa! Eu mal me reconheço nessa fotografia. Ela é de 2017, nem faz tanto tempo assim. Mas mostra outra pessoa, parece. Mudou que nesses quatro anos eu perdi muita coisa. Ganhei outras, verdade, mas ainda não pus na balança pra saber o que pesa mais. Acho que as perdas. As perdas são sempre mais pesadas. Bom, pra começar perdi esse sorriso grande. Dentro de mim ele existe, sim. Porém ficou um pouquinho mais difícil de encontrar. Sinto saudade.

Foi a última Festa das Alasitas em que trabalhei junto com a minha mãe. Essa era a nossa barraca de miniaturas, as alasitas, que na tradição boliviana são oferecidas a Ekeko, o deus da abundância, todo 24 de janeiro. As miniaturas representam o que a gente deseja pro ano: carro, salão de beleza, oficina mecânica, restaurante, dinheiro, viagem. Coisas materiais mesmo, ali é liberado. Minha mãe levava bem a sério. Eu? Eu duvidava, porque sempre me senti meio dividida em relação às minhas raízes bolivianas. Já te conto isso.

No ano dessa fotografia, não sei o que me deu, ofereci uma alasita de moto a Ekeko. E não é que funcionou? Ele só errou na cor. Pedi uma moto preta e consegui comprar uma vermelha. Tenho ela até hoje. O que não tenho mais é a minha mãe. Ela morreu seis meses depois, de câncer. A gente acha que nunca vai se sentir sozinha, mas quando perde a mãe a solidão é grande. Uma hora vão ficar só as lembranças, eu sei, mas eu ainda estou na fase da dor.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Foi tudo muito duro. A morte do meu pai, que na verdade era meu padrasto, que me criou, aconteceu de repente. Ele caiu e não levantou mais. AVC. A minha mãe passou meses na cama, desaparecendo um pouco por dia, sem força sequer pra segurar um copo d'água. Era tão triste que cheguei a pedir que ela fosse logo e parasse de sofrer daquele jeito.

Eu nasci em La Paz. Viemos nós três pra São Paulo quando eu tinha dois anos. O começo foi na costura, onde mais? Eles trabalhavam e moravam na casa do patrão, que também era boliviano e tinha a oficina no mesmo lugar. Eu era muito pequena, lembro de algumas coisas. Uma delas é que não podia brincar com os filhos do patrão, que tinham brinquedos, porque eu era a filha dos empregados. Então minha mãe me trancava no quarto pra assistir televisão o dia inteiro. Às vezes eu ouvia as crianças no quintal, queria tanto ir lá, mas nunca pude. Outra memória é ver meu pai chorando em cima da máquina de costura. Coitado. Ele detestava aquele trabalho, aquela situação. E durou bastante, uns quatro, cinco anos.

Doía tanto nele que uma hora ele inventou um jeito meio maluco de sair dali. Ia ao Carnaval no Sambódromo do Anhembi, até me levava junto, e recolhia restos de fantasia que as pessoas das escolas de samba jogavam fora depois do desfile. Às vezes pedia também: "Oi, se você não for mais usar, pode me dar?". Quando chegava em casa ele separava as penas, limpava uma por uma, colocava numa grande sacola e viajava pra Bolívia, pra vender no Carnaval de lá. Aí trazia milho e outros produtos pra vender aqui. Foi assim que a gente saiu da costura. De uma dessas viagens pra Bolívia meu pai trouxe um forno de assar pão pra minha mãe. Nossa vida deu uma melhorada, mas foi aí que começou meu dilema com a minha ancestralidade.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

De cara a minha mãe me colocou pra ajudar com os pães. A família inteira trabalhava nisso, fazendo massa, assando e vendendo pães. Também meus três irmãos que nasceram no Brasil, duas meninas e um menino. No começo a gente vendia para a comunidade no Bom Retiro, de porta em porta. Minha mãe puxava um carrinho de feira, com meu irmão pequeno no aguayo, aquele pano colorido, sabe?, eu e minhas irmãs carregando sacolas quase maiores do que nós. Tudo de ônibus e a pé. À certa altura ela conseguiu ter uma barraca pra vender os pães na Praça Kantuta, no Pari, que é um ponto de encontro dos bolivianos de São Paulo aos domingos.

Eu odiava. Primeiro porque era obrigada. Minha mãe sempre foi muito rigorosa. Vou dar um exemplo. Todas as manhãs eu arrumava a cama e ela vinha fiscalizar. Se tivesse uma dobrinha, um amassadinho no lençol, ela bagunçava tudo e mandava fazer de novo. Dizia pra mim: "Uma hora você vai casar e eu não quero ninguém reclamando que minha filha não sabe cuidar da casa". Quando fiz 18 anos, contra a vontade dela eu arrumei um emprego de vendedora numa loja de artigos de bebê. Ela descobriu onde era e foi lá falar com o gerente. Queria que ele entregasse meu ordenado pra ela. En mis manos, ela falava pra ele. En mis manos! Claro que ele não fez isso. Meu pai dizia que ela abusava da gente, brigava com ela. Então, eu acho que a relação conflituosa com a minha mãe acentuava o conflito que eu tinha dentro de mim. Porque eu não queria ocupar só esse lugar imposto aos bolivianos que chegam aqui, esse lugar de vendedor de comida típica e artesanato em feirinhas. Eu queria fazer a minha vida. A minha. Porém, era difícil.

Não, na escola nunca tive problemas. Cheguei muito pequena, aprendi a falar português sem sotaque e sentia uma vontade louca de me enturmar, fazer parte. Mas via outras crianças bolivianas sofrendo. Demais. Sempre aquela coisa de boliviano não toma banho, boliviano é fedido, cala a boca, boliviano, porque você não sabe falar, só sabe costurar. Quando eram meus conhecidos, vizinhos, eu tentava defender. Mas ficava revoltada com a falta de reação deles. Eu queria que eles reagissem. Hoje eu sei que era um erro pensar assim. É difícil reagir quando tudo ao seu redor te empurra pra esse lugar de vergonha e medo.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Faz poucos dias um rapaz me escreveu no Facebook: "Oi Shirley, lembra de mim? Fomos colegas na escola. Eu vim aqui só pra te agradecer pelo dia que você me defendeu do bullying. Desculpa ter deixado passar tanto tempo, mas fiquei anos sem força até pra isso". Não é horrível? Fiquei feliz e triste ao mesmo tempo. Eu tenho dois filhos, de sete e oito anos. E as perguntas que eu mais faço pra eles, todo dia, é "Como foi na escola? Fez algum amiguinho hoje?". Não quero que eles vivam presos na vergonha e na solidão só porque têm sangue boliviano.

Se meu pai, um adulto, não aguentava a pressão, imagina uma criança. Uma época ele saía de perua pra entregar os pães. E toda semana, toda, era parado por policiais que exigiam dinheiro dele pra não levarem a perua e os pães. Ele dava. E ficava arrasado, triste como na época de costureiro. Foi por isso que eu sonhei ser delegada. Na minha cabeça, conhecendo as leis e tendo poder, eu colocaria aqueles policiais no lugarzinho deles, eles iam ver só. Quantos entregadores de pães existem na cidade? Por que toda semana, toda, eles paravam o entregador boliviano? Até entrei na faculdade de direito, mas tranquei por causa da pandemia, estava difícil acompanhar as aulas online, e agora penso em mudar pra marketing.

Pra Bolívia? Voltei, sim. Em 2019 eu fui a La Paz pela primeira vez desde que vim pra cá. Vinte e três anos depois. Gostei da paisagem, dos lugares, de conhecer as minhas tias e primas. Só não gostei de conhecer a minha avó, mãe da minha mãe. Eu esperava que ela fosse vó, né?, oferecesse um pouco de conforto pra neta que tinha perdido a mãe e que ela mal conhecia: "Olha, você tem uma família aqui, se precisar de alguma coisa conte com a gente". Que nada. O que ela fez foi cobrar um dinheiro que tinha emprestado pra minha mãe. E eu nem sabia de nada. Fiquei chocada. Disse que ia ao banheiro, peguei minha bolsa e fui embora. Voltei pra São Paulo sem me despedir dela e nunca mais nos falamos.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Bom, acho que no fundo eu fui até lá atrás de um pouco de paz pra essa minha coisa toda. Eu pensava: o que tem na Bolívia pra mim?, o que eu ainda tenho da Bolívia?, será que a Bolívia pode me fazer sentir diferente? E ela fez: piorou tudo, aumentou o meu dilema. Depois dessa história com a minha avó, comecei a achar que era melhor silenciar a Bolívia dentro de mim também. Eu já não tinha carregado meus filhos no aguayo, já preferia o arroz-feijão brasileiro às batatas do Altiplano, já não vendia mais pães na Kantuta, nem alasitas no Memorial da América Latina. E era brasileira de papel passado. Pensei comigo: bom, acho que é isso agora, eu sou assim.

Mas aí fui trabalhar numa ótica no Brás. A clientela é quase toda boliviana. Voltei a falar espanhol todos os dias e notei como isso, só isso, transforma aquelas pessoas. Na rua elas andam meio dobradas, olhando pro chão, encolhidas, se escondendo, sabe? Mas quando entram na loja e são atendidas em espanhol ficam mais confiantes, conversam bastante, mexem com os braços, contam da vida. Não têm constrangimento nem vergonha. Pode parecer óbvio, mas pra mim não era. E aí fiquei pensando: por que só aqui dentro da ótica? Por que não em todo lugar da cidade? Por que não conseguimos ser confiantes e alegres sempre? Quer dizer, por que algumas pessoas nos impedem de ser confiantes e alegres sempre? Isso não tá certo.

Então, eu acho que agora estou num momento de deixar a Bolívia falar de novo em mim. Minha sogra quer que meus filhos dancem o caporales e eu estou achando ótima ideia. É uma dança folclórica da região de La Paz. Muito linda, com movimentos coordenados, vigorosos e música que dá pra sentir no coração. As meninas usam saias rodadas curtas e os meninos, chapéu de aba grande e botas com chocalhos. Os trajes são muy ricos, como a gente diz. A apresentação acontece uma vez por ano, mas todo domingo tem ensaio na Kantuta. Muitos brasileiros vão assistir. É bonito de ver e de sentir. Uma coisa tão forte da cultura boliviana apresentada com orgulho e apreciada aqui. Até me emociono.

É isso. Desde que você me fotografou quatro anos atrás, no meio das perdas todas acabei tendo um ganho. Ganhei mais consciência sobre as minhas raízes, a minha história. Entendi que o caminho pra me sentir melhor não é rejeitar, renegar tudo isso. Porque tudo isso sou eu. A Shirley que nasceu em La Paz e a Shirley que cresceu em São Paulo. A Shirley que às vezes, do nada, sente uma vontade louca de comer humintas e a Shirley que tem filhos brasileiros. A Shirley que se emociona com o caporales e a Shirley que tem certeza de que a vida dela será pra sempre no Brasil. Tudo isso sou eu. É meio chavão, mas é verdade: quando a gente sabe de onde veio consegue enxergar melhor pra onde vai. Pra onde eu vou? Ah, assim que der eu vou pro México, pra Colômbia, pro Peru, Chile, Uruguai, a América Latina inteirinha, você vai ver.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Shirley Flores, 27 anos

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.