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Trombadas

O coração maroto de Arnaldo

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

02/12/2021 04h01

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Sabe que eu gosto de vir aqui nessa janela bem na hora do lusco-fusco. Ainda não anoiteceu, mas também não é mais dia, e aí fico observando. As luzes dos postes acendem, as pessoas se apressam, os motoqueiros fazem um barulho desgraçado com seus escapamentos arrombados, o trólebus desengata da rede elétrica. Se tá chovendo é até bonito: aquele vaivém de guarda-chuvas coloridos. Olha só. Aqui a Ipiranga. Praquele lado, República, Avenida São Luís. Pra lá a Rio Branco. São João, Praça Júlio Mesquita, a Conselheiro Nébias inteirinha. Tá vendo? Como são várias janelas, tenho visão panorâmica da esquina toda. Aí eu venho aqui e fico olhando. Olho, olho, olho. E penso: que cazzo aconteceu no coração do Caetano Veloso quando ele cruzou essa porra?

Porque no meu, vou te dizer, não acontece mais nada não. Acho que é o hábito. O hábito é uma merda, se acostumar com as coisas, a rotina anestesia a gente, precisa tomar cuidado. Ah, se eu tô com meia nove, completo 70 em fevereiro, e venho pra cá desde os quatro ou cinco anos de idade, você faça as contas. A Ipiranga com a São João é minha casa mais do que a minha casa. Sou da Vila Espanhola, zona norte, nasci e ainda moro lá. Mas me criei mesmo foi aqui na esquina. Deixa eu te mostrar uma coisa. Olha essa foto. Eu com 6 anos, meu pai e a nossa banca de jornal, a Banca do Gaúcho. Gosto tanto dessa fotografia, tá meio desbotada, gosto tanto dela que até hoje eu uso suspensórios. Acho que é a minha ligação com o passado, as memórias, as histórias todas que vivi aqui. Tem história pra cacete. Aí sim, lembrando, coisas marotas acontecem no meu coração.

Meu pai morreu em 84, em 85 vendi a banca, mas continuei na esquina. Atravessei a rua e me instalei nesse edifício onde estamos. Primeiro montei uma editora de revistas e pôsteres de artes marciais, Bruce Lee, essas coisas. Também tive academia de lutas e faz alguns anos estou no ramo de suplementos, equipamentos, tudo relacionado a lutas também. Mas o pandemônio me quebrou as pernas. Vendi dois imóveis e tô tentando seguir. Não tá fácil. Quero continuar, vamos ver. Porque não sei como vai ser se um dia eu acordar e não tiver que vir pra cá. Me sinto bem nesse lugar. Um dia isso aqui, pra gente continuar no Caetano, que pelo visto você gosta dele, um dia isso aqui foi a perfeita tradução do glamour. Sobrou o mau gosto da especulação imobiliária e da falta de carinho com a história da cidade. Até os anos 1980 a esquina da Ipiranga com a São João era o grande lugar da cidade. Não tinha Oscar Freire, Paulista, Augusta, não tinha isso ainda. Tudo acontecia aqui. E cada uma das quatro esquinas era ocupada por tribos distintas.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

No térreo desse prédio tinha o Bar do Jeca, ponto de encontro do pessoal do teatro. Rubens de Falco, Guarnieri, Paulo Autran, Raul Cortez. O Jeca servia um caldo verde, uma canja e uns lanches bacanas que faziam sucesso na madrugada. O Miele, sabe o Miele?, ele adorava o bauru do Jeca, mas desde que fosse preparado por um chapeiro chamado Vieira. Bauru é um lanche besta, né?, mas o Vieira era uma artista do bauru. E o Miele exigia que o dele fosse feito pelo Vieira. Quando ia embora dava gorjeta em dólar pra ele. Aliás, a primeira vez que vi uma nota de dólar na vida foi assim, a gorjeta do Miele pro Vieira, no Jeca.

Agora olha pra lá. Atravessando a Ipiranga tinha o Brahma, que fechou, voltou e taí ainda. Naquela época, anos 60, a frequência era de paulistas, os paulistões, paulistanões. Os bem de vida. Grã-finada de nariz empinado que se dizia descendente do Fernão Dias, do Borba Gato. No Brahma, essa turminha marota se juntava a outra classe de endinheirados e poderosos: juízes, desembargadores, o pessoal do Judiciário. Então ali era só a nata, gente com chofer, estola e outros bichos. Não era brincadeira, não. Eu nem passava na porta, porque não era pro meu bico. Fui entrar no Brahma pela primeira vez, pra tomar um chope e ver um show do Jamelão, nos anos 2000, depois do revival do bar.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Mas vamos continuar. Olha naquela direção, linha reta seguindo a faixa de pedestre. Do lado de lá, cruzando a São João, ficava o Parreirinha, o restaurante dos policiais e dos jornalistas. Era um lugar eclético, na verdade, a Inezita Barroso tinha uma mesa, mas os tiras e a imprensa batiam cartão. Mais os tiras, porque um pouco mais adiante ficava, e ainda fica, o prédio da Associação dos Delegados. Os policiais iam ao Parreirinha pra comer e os jornalistas, pra buscar notícia e almoçar na faixa. Era uma relação marota a deles ali. Especialmente durante a ditadura. Os polícias barbarizavam, davam seus apavoros, e alguns jornalistas concediam vitrine pra esses caras, transformavam eles em artistas. Apavoro? Você não conhece essa expressão? Então pra eu te explicar a gente precisa atravessar a rua, pro corner onde ficava a banca do meu pai.

Vem comigo. Ali era o Bar Avenida. A banca era naquela calçada. Tá ali até hoje, mas com a pandemia o dono atual fechou e nem sei se tá funcionando. Pois bem. Na frente da banca e do Avenida faziam ponto os músicos e os garçons. À noite eles se aglomeravam ali esperando serviço. Os donos de boate paravam o carro, baixavam o vidro e anunciavam o que queriam praquela madrugada: "Piano, hoje preciso de um piano". Aí os pianistas iam lá falar com ele. "Algum saxofone, pessoal? Tá me faltando um sax". Do mesmo jeito com os garçons. E como ao lado ficava o Salão Maravilhoso, o grande salão de sinuca da cidade, a fauna tava completa.

Chegar ao Maravilhoso era um espetáculo. Duvido que alguma vista em Nova York podia ser melhor que a da entrada do Maravilhoso. A gente passava por duas fileiras grandes de engraxates com suas cadeironas imponentes, depois vinha a barbearia, a loteria e, lá no fundo, uma puta nuvem de fumaça de cigarro envolvendo os tacos mais pesados do Brasil. Joaquinzinho, Praça, Carne-Frita, Boca Murcha, Ceará, Mané Português, nossa senhora. Mais os desocupados, os estudantes, os bicheiros, fazendeiros do interior e a turminha marota do rufianismo. Quando o Praça e o Carne-Frita jogavam, o que juntava de gente, vou te falar. O Frita era o Pelé da sinuca. Praça, o Garrincha. Então todo mundo queria assistir. Sempre à noite, claro. No Maravilhoso o dia começava ao pôr-do-sol.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

A banca funcionava 24 horas, e eu fazia meu horário de madrugada. Era uma selva. Mas todo mundo muito respeitador. A única coisa que ninguém tolerava na esquina era gente chata. Eu achava chato o Adoniran Barbosa. Chato e sinistro. Podia estar 35°C e o cara vinha de chapéu de feltro e cachecol. Passava um tempão na banca só filando jornal, não comprava nada. Me deixava puto da vida. Jô Soares também era difícil. Exigente, sem paciência. Ele vinha com a sua baita motoca BMW, subia na calçada e ia pegando todas as revistas estrangeiras que encontrava: inglesas, francesas, alemãs, tudo. O pacote que o Jô fazia por semana dava pra montar uma pequena banca de jornal. Mas ele era impaciente, não queria esperar que eu somasse os valores, queria pagar do jeito dele. Um cara meio chato.

E havia uns policiais, como eu tava te falando, que eram chatos pra cacete. O Fininho, por exemplo. Esse cara se achava estrela de cinema. Ele e os colegas dele desciam da Veraneio cheios de cinturões de bala, duas pistolas cada um, metralhadora. Entravam no bilhar gritando, dando os apavoros. Um dia, do nada, sentaram uma paulada no Neguinho, que estava assim, encostado na parede, fumando um cigarro. "Circulando, circulando", eles gritavam. O Neguinho era músico, coitado, tocava pandeiro, gente boníssima, estava só esperando trabalho. E nessa paulada quebraram a clavícula dele. Nunca me esqueci porque rapidamente se formou uma rede de solidariedade, uma vaquinha que os outros músicos providenciaram pra garantir o sustento do Neguinho e da família enquanto ele ficou imobilizado, sem poder tocar pandeiro. Essa turma do Fininho, tinha o Correinha também, outro sangue-ruim, eles eram cruéis. Os únicos que eles respeitavam eram os irmãos, tios, primos, aqueles pugilistas da família Zumbano. Tudo meio comunista, mas com eles ninguém mexia. Você falava Zumbano na esquina, todo mundo tremia: polícia, jornalista, rufião, a marotagem inteira.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Esse negócio de boxe, luta, é curioso. Aos 12 anos eu comecei a vir sozinho pra banca, trazer o almoço do meu pai. Ele tinha um problema de estômago e minha mãe mandava um arroz mais cozidinho pra ele. O ônibus me deixava na rua Santa Ifigênia, defronte a academia do Kid Jofre, pai do Éder Jofre. Um dia entrei e aquilo me atraiu, não sei por quê. Acho que fiquei encantado pela atmosfera do lugar. Até tentei treinar um pouquinho lá, mas eu tinha um problema danado: sentia dó de bater nos outros, então só apanhava. Não deu certo no ringue, só depois como empresário do setor.

Mas tinha um cara que também frequentava a academia do Kid e eu achava ele estranho. Um sujeito alto, bonito, penteadinho, nada a ver com o ambiente. O cara chegava com um paletó bacana, uma pastinha de couro marota, trocava de roupa, subia no ringue e era sangue pra todo lado. Ele fazia sparring com os negão do Parque Peruche e socava todo mundo. Eu pensava comigo: "Porra, esse almofadinha não afina pra ninguém!" Muitos anos depois eu estava na padaria do bairro, lá na Vila Espanhola, a TV dando o noticiário político, e um amigo falou: "Ô Arnaldo, lembra do senador Suplicy fazendo boxe lá no Kid Jofre?" Rapaz! O almofadinha era o Eduardo Suplicy! E eu nunca me dei conta. O senador tinha o punho pesado, viu. Era bom de luva. Só que eu não ligava o nome à pessoa.

Também, eu era uma porta, vou te dizer. Eu era de uma ignorância aprimorada. Sabia ler e escrever, mas com muita dificuldade. O primeiro texto que interpretei na vida eu já tinha mais de 20 anos. Foi a coluna "Nas Quebradas do Mundaréu", que o Plínio Marcos escrevia na "Última Hora". Consegui entender porque falava do meu cotidiano, da ralé, da gente comum. E ele escrevia com as gírias que eu conhecia, então eu lia e captava tudo. A partir disso fui melhorando. Hoje leio bastante.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Pelos meus livros aí na estante você vai notar: me interesso bastante pela Revolução Cubana. Não, não gosto de ismo nenhum, tirando pugilismo. Capitalismo, comunismo, catolicismo, budismo, acho tudo radical demais. Se bem que é por causa do comunismo que eu tô aqui. Meu pai era marceneiro, trabalhava em fábrica. Operário comunista, ateu, radical. Se envolveu tanto nisso que acabou demitido e não conseguiu mais emprego. Pegou as economias e comprou a concessão da banca. De todo modo, me encantam as figuras do Fidel Castro e do Che Guevera. Pela história deles, sobretudo a do Guevara, entendi o papel da América Latina, joguete dos americanos até hoje, as maldades dos Estados Unidos, a nossa passividade, esse lado nosso de bater palma pra quem nos fode a vida.

Mas esse mico eu não pago mais. Graças a Ipiranga com São João eu fiquei esperto. Essa esquina me educou. Aqui eu virei gente. O pouco que sei aprendi nesse pedaço da cidade. Aprendi a viver, a me olhar no espelho, a entender quem eu era, o que eu queria e aonde eu podia chegar. E seu eu puder chegar aqui todos os dias que ainda me restam — eu e meus suspensórios marotos, porque eles são mais da esquina do que o Caetano Veloso —, eu vou ficar bem.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Arnaldo Pereira da Silva Neto, 69 anos


Do autor: De tão maroto, o coração do Arnaldo parou de bater dias antes da publicação deste texto. Eu soube hoje, quando telefonei pra avisar que passaria mais tarde pra levar as fotos, e a filha Claudia atendeu: "Meu pai deixa uma história de amor pela cidade, pelo pedaço mais célebre dela, pelas pessoas comuns, os trabalhadores, as coisas que a modernidade muitas vezes insiste em soterrar. Ele foi feliz aqui. E a esquina da São João com a Ipiranga foi feliz de tê-lo aqui". O Arnaldo deixa a Claudia, o neto Gabriel e um mundaréu de amigos pra quem sempre tinha uma gentileza, uma boa nova ou um causo pra contar. Viva o Arnaldo!

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.