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Trombadas

O doce traçado de Luciano

TAB Trombadas - Luciano Ferreira Sarrudo - Christian Carvalho Cruz/UOL
TAB Trombadas - Luciano Ferreira Sarrudo
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

10/03/2022 04h01

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Eu prefiro um traçadinho, sabes? Misturar. Quase todas as coisas vão melhor quando se misturam. Estou aí com uma bagaceira que eu trouxe da terrinha em 2017. Outro dia senti alguma saudade e fui apanhar a garrafa. O líquido estava amarelinho já. Provei e, rapaz!, era uma cobra! Desceu a arrepiaire a boca, a língua, a garganta, o esôfago, tudo até o estômago. Pois puro isso aqui não vai dar, pensei comigo. O que foi que eu fiz então? Tinha também um anis, que minha mulher gosta mais do anis, também vindo do Portugal. Despejei o anis dela noutra garrafa, limpa, prestou atenção?, troquei de garrafa, tapei certinho e pus de volta no lugar. E na garrafa que era do anis, sem lavar, para manter aquele açucarzinho no fundo, coloquei toda a bagaceira dentro. Tá ali há 15 dias. Ontem fui dar uma bicadinha para ver a quantas anda. Já está quase lisa. Quase. Logo vira um veludo. Mas já desceu melhor. É como eu digo: com a bagaceira não se brinca. São 38 graus, tem que misturar.

Contudo há traçados que dão mal, não é? Eu mesmo. Sou português da Pampilhosa do Botão, região de Coimbra, e a certa altura decidi vir ao Brasil buscar o doce da vida. Estou cá faz 50 anos a esperar isso melhorar, tornar-se um bocadinho mais liso, aveludado. Mas cadê? É só bagaceira pura. Não me entendas mal. Sou grato ao país, aos brasileiros, um povo muito decente. Aqui nasceram minha filha e meu neto, agora encarregado de continuar a história da família. Mas, como dizia o Chico Anysio, o maior filósofo brasileiro, pra quem vive do trabalho este país é de mentirinha, não é de verdade, porque só anda de lado como o caranguejo. Se vivo fosse o Chico Anysio veria que anda para trás também, pois não?

O meu lamento é não ter podido me aposentar ainda. Já em Portugal, com uma mixariazita de cento e poucos euros ao mês, mas não no Brasil. É o que se tem. Vamos indo. Estou com 73. Já vivi no Brasil mais que o dobro do tempo que vivi no Portugal. Os dias são assim, assim. Tirando o domingo, que pedalo até o Parque Villa Lobos e também vou ao mercado buscar o que manda a mulher, estou sempre aqui. Minha bicicletaria é de pobre, como podes ver. Não tenho neons, vitrines, ou ajudantes. E faço tudo diante do freguês. Há umas oficinas modernas aí na avenida que levam a bike pros fundos e sentam a marreta. Tóin! Tóin! Tóin! Aquele ruído de ferro no ferro. Às vezes é preciso, sim, martelar um pé de vela preso pela ferrugem, um guidão encarquilhado, mas não se faz isso a seco. Põe-se uma madeirinha para amortecer as pancadas. Precisamente como na vida. Foi assim que aprendi. Além do mais, tenho gosto de trabalhar à vista da rua, embora os que passam e me olham nem tudo enxergam. Uns me veem sentado quieto atrás do balcão e gritam lá: "Ó, Luciano, está triste, ó pá?" Que triste o quê. Nem do fado eu gosto. Estou nostálgico. E a descansar as pernas, pois trato as varizes.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Penso mais nos tempos de miúdo na minha aldeia: nas manhãs de inverno, quando os pastores esperavam o gelo sobre erva derreter para dar de comer às cabras e eu nadava no poço, um laguinho que nós tínhamos atrás da casa. A água era quente, por causa das nascentes que passavam por baixo. Duro era sair dali de dentro naquele frio quando a mãe chamava. Do Portugal só lembro das coisas boas. Mais jovenzinho fui trabalhar de garçom. Nas épocas, o verão, não é?, eu ia a todo canto onde houvesse serviço: cafés, restaurantes, hotéis no Algarve, Aveiro, Cascais. Até por Leiria andei. Foi meu pai quem me ensinou o ofício. Ele era o chefe da sala do Hotel Astoria em Coimbra e um dia me falou:

— Vais começar do zero: pela pia.

Eu lavava cada panela grande assim que dava pra tomar banho dentro. Depois passei a descascar as batatas, as cenouras e os rabanetes. Então pude levar os pratos da cozinha até o aparador. E quando chegou a hora de servir na sala propriamente meu pai me chamou de novo:

— Vês ali? Franceses. Ali? Holandeses. Naquela outra mesa, alemães. E há outros: americanos, ingleses, escandinavos. Se queres trabalhar na sala precisas aprender pelo menos o francês. Senão retornas à pia.

Lembro da minha alegria indo à banca da estação comprar uns fascículos chamados "Francês sem Mestre". Traziam o básico pra gente se comunicar. Savez-vous ce que vous allez commander, monsieur? Acceptez-vous le dessert, madame? Ouais. Comme ci comme ça. Je suis désolé mais le poulet est fini. E assim íamos. Um trabalho muito bom quando se é jovem. Vais daqui pra ali, dali pra aqui, sempre em movimento. Infelizmente durava só três meses, três meses e meio. Depois escasseava, escasseava, até que cessava por completo no inverno.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Quando chegou a hora de me alistar no Exército, um primo meu que já era primeiro-sargento disse assim:

— Entre nos paraquedistas, porque ali um recruta ganha mais que um cabo das forças regulares.

E assim foi. Entreguei os papéis na junta da Mealhada, participei de um treinamento intenso, de meses, e quando me dei conta estava na porta do avião pronto para saltar sobre a Serra da Pedra Verde, no Moçambique. Estávamos nas Guerras Coloniais contra os turras, os terroristas que queriam independência. Eu não. Eu queria um trabalho e um dinheirinho. Meus colegas de formatura, tropa de 1968, ainda hoje se orgulham. Vestem a boina, tiram fotografias e me mandam. "É o nosso dia, Luciano. Dia do combatente!". Eu respondo "Ora, deixem de ser bestas!" Orgulho da guerra, onde já se viu uma coisa dessas? Dos meus vizinhos, clientes e conhecidos e aqui no bairro nenhum conhece o meu passado de paraquedista no ultramar. Não gosto de falar. Nem de recordar. Vi coisas que preferia esquecer. Nós saltávamos já a disparar a metralhadora para baixo nos turras, que nos atiravam de volta. Muitos colegas meus não chegaram vivos ao chão. Minas a explodir os nosso jipes. Marchas intermináveis de 20, 30 quilômetros e, quando decidíamos parar e descansar num sítio que parecia seguro, era bala pra todo lado. Os turras conheciam o terreno melhor que nós e nos pegavam em emboscada. O mais marcante, contudo, foi encontrar a campa do Mário, um rapaz da minha aldeia, um pouco mais velho, que tinha ido à guerra antes de mim. Quando soube que eu ia também a mãe dele me pediu para procurar o local do sepultamento. Reuni algumas informações, perguntei aqui e ali e encontrei, sim. Era um cemitério já todo coberto pela erva tão alta que mal se viam as cruzes. A campa do Mario estava lá. Um nó na garganta, não é?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Foram três anos com os paraquedistas. Quando dei baixa, conheci a minha futura mulher num baile, que era o que se tinha pra fazer naqueles tempos. Ela vivia no Brasil com a família dela e estava de férias na terrinha. Dançamos a noite inteira. E dali a pouco nos casamos em Fátima. Eu não acredito em nada daquilo. Acho que os pastorizinhos de Fátima viram foi uma estrela cadente, não a santa. Mas alguma mística há de existir, pois estamos dançando até hoje. Tem sido muito bom. Casar foi um acerto, mas a decisão que eu tomei em seguida ao casamento foi um erro, desses erros que a gente comete e lamenta por toda a vida. Naquela altura eu tinha uma proposta para trabalhar na fábrica de pneus Michelin, em França. Mas o pai da noiva queria a filha no Brasil, de modo que cedi e vim pra aqui. Ainda consultei o meu avô, já doentinho, coitado. Ele tinha estado no Brasil nos anos 30 e me incentivou:

— Vá, sim, meu filho. É um país lindo, maravilhoso.

Eu vim. Mas se tivesse ido à França estaria com a vida mais cômoda. Amigos meus que foram se aposentaram aos 56 anos, retornaram à aldeia, reformaram as casas da família, até piscinas construíram. A aposentadoria deles beira os 4 mil euros ao mês. Já eu saltei de paraquedas em São Paulo e me enrolei no velame, pois não? Trabalhei em padaria, tive bar na rua 24 de Maio, no Centro, até que em 1994 resolvi cuidar das bicicletas. A vida em bar e padaria é muito dura. Não há sábados, domingos, ou feriados. Não há Natal nem Ano Novo. Os bebuns até que se aguenta. Mas passar o dia todo em pé sobre um estrado de ripas que não dão firmeza às pernas, isso aí no futuro te cobra um preço. É a razão das minhas varizes.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Tirando isso, fico bem. O mais duro é esse arrependimento. Cada vez que penso nele, precisamente todos os dias, aumenta a minha nostalgia. Me acostumei com quase tudo no Brasil, menos com as calças. As daqui têm a cintura muito curta. A gente não pode se abaixar sem que fique à mostra uma parte do rabo. As do Portugal são mais adequadas. Quando vou, volto com a mala cheia de calças, que compro no supermercado por 7,99 euros, e essas camisetas regatas que uso para trabalhar na oficina.

Voltar de vez? Penso, sim, mas é inviável. Tinha que vender tudo aqui para comprar lá, e o real não vale mais nada perante o euro. Quem sabe se eu ganhar na loteria. Jogo toda semana, não falho uma sequer. Outro dia passei perto. Estive a um número de ganhar uns milhões. Não foi a dezena, não. Foi um número só que me faltou. Acertei 14 dos 15. E no décimo-quinto deu o 12 enquanto eu tinha o 13. Foi por um triz. Ó, rapaz, nem me fale. Veja bem, eu me instalaria com a mulher no Porto, viu. O melhor do Portugal está ali. Já fostes à festa de São João no Porto? É tão boa ou mais que a de Santo Antônio em Lisboa. Há um foguetório lindo que eles lançam da Ponte Luiz I e aquilo ilumina o Douro, a Ribeira, muito bonito de ver.

Pois no Porto eu compraria uma casita pra nós dois, outras duas ou três menorzinhas pra alugar, e pronto: passaríamos a tarde tomando eu a minha bagaceira, ela o anis dela e misturando os dois. Dizem que os portugueses somos igual pardal: todo lugar tem um. É verdade. Voamos tudo por aí. Mas o pensamento é de um dia poder retornar, assim é que é.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Luciano Ferreira Sarrudo, 73 anos

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro -- é fundamental parar -- e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.