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Trombadas

A ponte de Priscila

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

15/09/2022 04h01

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Era aniversário do meu avô. A família inteira reunida na mesa e o meu tio falou assim:

— Tá na hora de a Priscila ir pra Coreia.

Todo mundo continuou do jeito que estava, conversando e comendo. Meu tio foi em frente:

— Priscila, dá uma olhada em curso de coreano. Você tranca a faculdade e vai pra Seul ficar seis meses.

Eu só olhando e esperando pra ver se alguém ia me perguntar se eu queria, qual era a minha opinião. Nada. Meu tio continuou:

— Vai ser seu último momento sem responsabilidade. Quando voltar pro Brasil, você vai ser adulta.

Eu tinha 21 anos. Não sabia nem quem eu era, ser adulta me pareceu algum avanço. Então eu fui. Quem sabe eu encontrava um lugar pra mim? Porque eu estava bem perdida. Muito perdida.

Eu sou filha de coreanos nascida em São Paulo. E passei a infância e a adolescência despertencendo. Não me sentia brasileira, muito menos coreana. A minha mãe sempre quis que eu crescesse no Brasil sem fingir que estava na Coreia, só metida dentro da comunidade. Eu saía pra escola e ela dizia pra eu fazer amigos brasileiros, aprender as coisas diferentes e novas que iam aparecer. Eu tentava, mas era difícil estabelecer vínculo com as outras crianças. Elas não me deixavam nem ser Priscila. Eu era a japa, a china, a coreia, a tamagotchi. Quer dizer: eu não era nada. A vez que levei uns colegas em casa pra fazer trabalho foi horrível. "Credo! Como a sua casa fede!", eles falaram. E no dia seguinte ainda espalharam na escola: "A casa dela é muito fedida". A minha avó fazia conservas tradicionais coreanas e algumas cheiravam mal durante o preparo, mas não era pra tanto. Pior foi o vizinho que até chamou a polícia. Denunciou que tinha um cadáver em decomposição na nossa casa. Então, ser brasileira não era legal. Eu queria ser outra coisa.

Mas ser coreana podia ser pior. Eu não era uma menina bonita pros coreanos da colônia em São Paulo. Eles me achavam feia. Porque meus olhos são muito fechados e meu corpo não é tão reto. Resumindo, eu tenho muita cara de coreana. E eles gostam do oposto: de quem não tem cara de coreano. Quanto mais ocidentalizado, melhor. E, ao contrário dos japoneses, que são discretos, o coreano é um povo meio escrachado. As pessoas falam da sua aparência como se dessem bom dia:

— Nossa! Que bom que você emagreceu. Agora vai conseguir casar, né?, me dizia uma senhora que era cliente da loja da minha tia no Bom Retiro, onde eu trabalhei uma época.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Aí lá fui eu me procurar na Coreia. Quando desembarquei em Seul, a primeira coisa que eu notei foi que, pra ser coreana, eu tinha que ser outra. Eu tinha que fazer plástica. Plástica pra arredondar os olhos, plástica pra afinar o rosto, plástica pra afinar o nariz. Tinha também que passar três quilos de maquiagem todos os dias e usar as roupas e as botas da moda que TODAS as meninas usavam. Esse é o padrão de mulher coreana pra eles. Tem propaganda de cirurgia plástica pros olhos em qualquer trem, metrô ou ônibus. É uma coisa banal. Se você não tem plástica, eles perguntam: "Mas cadê as suas dobrinhas nos olhos?"

A magreza das mulheres também me assustou. Não sei se o biotipo delas é assim e o meu não é, ou se todas têm distúrbio alimentar. Mas como eu nunca criei intimidade suficiente com ninguém pra perguntar, fiquei só no achômetro: as mulheres que não tinham distúrbio alimentar não saíam de casa, porque na rua todas só andavam as magérrimas. Bom, mas eu tinha viajado decidida a ser coreana. Eu queria ser alguma coisa, não aguentava mais não ser nada. Então eu comia bem pouquinho, muito pouquinho, e toda manhã, antes de sair de casa, me maquiava por 40 minutos. Não era pra ir pra festa, barzinho. Era só pra pôr a cara na rua.

Só que não adiantava. Me escanteavam mesmo assim. Não me deixavam ser coreana, não admitiam. Eu me sentia uma aberração. E eles adoravam uma amiga brasileira que eu fiz lá. Alta, loira. Ela estudava em Seul pelo Ciência Sem Fronteiras. Paravam ela na rua, queriam fazer foto, conversavam, se interessavam. Comigo era só desprezo. "Como assim essa cara redonda? Como assim sem plástica? Que coreana é essa? Ah, deve ser chinesa." Pra eles eu era só uma garota esquisita que eles não sabiam de onde tinha vindo e nem queriam saber. Não demorou muito pra eu entrar em crise. Um dia que eu saí sem maquiagem, essa amiga brasileira me chamou pra ir numa feijoada com ela. A gente estava a dois quarteirões do restaurante, mas eu me peguei querendo voltar pra casa pra me maquiar. Bom, para tudo que tem alguma coisa muuuuito errada comigo.

De repente eu me vi dentro de uma performance artística que eu tinha feito na faculdade uma vez. Era uma apresentação simples: eu de vestido, trança no cabelo e um novelo de lã preso nas costas. Conforme eu ia fazendo as tarefas domésticas numa cozinha, andava pra lá e pra cá, a lã desenrolava e deixava um rastro emaranhado, uma teia de aranha que ia ocupando todo o espaço. Eu não cortava, não me debatia, não fugia. Só aceitava, me deixava enrolar e sufocar. E naquele dia da feijoada em Seul, bem simbólico por sinal, uma feijoada em Seul!, lá estava eu sufocada pelo meu despertencimento de sempre. Falei "chega!". Parei de passar maquiagem e fui ser turista. Caminhava o dia inteiro. Entrava nos becos, nos templos, nos museus, nas galerias de arte. Andei, andei, andei e voltei pro Brasil mais perdida do que quando saí. Eu não era coreana pros coreanos, nem brasileira pros brasileiros. Que porra que eu era?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Cheguei de volta em São Paulo e piorei. Eu me achava a única coreana fora do eixo na cidade, porque não via mais ninguém sofrendo com essas coisas. Mas eu queria distância da colônia. Eu desejava profundamente não ter nascido na minha família. Até que aconteceu a coisa mais louca e importante da minha vida. Umas meninas me convidaram pra uma roda de conversa formada só por mulheres coreanas tatuadas de São Paulo. Nossa! Que específico, eu pensei. A reunião, que depois se tornaria um coletivo, se chamava Mitchossó, uma palavra que vem da expressão neoneun mitchossó. Significa "Você tá louca?!". É o que toda garota coreana ouve dos pais quando chega em casa com a primeira tatuagem.

Claro que eu achava que só eu tinha ouvido isso na vida, como eu achava que só eu tinha ouvido que eu era feia, que só eu tinha ouvido que a minha casa era fedida, que só eu desejava não ser coreana. Foi no Mitchossó, aos 25 anos, que eu soube que nós éramos várias. Que as dores que eu sentia e outras tantas que eu nem sabia que tinha eram as dores de todas as mulheres reunidas ali naquele fim de tarde. Cada uma ia contando a sua história e eu "caralho, eu também!", "cacete, igual comigo!". Teve uma moça que deu um depoimento muito, muito tocante. Nunca vou esquecer a frase dela, que era assim:

— Eu passei a minha vida inteira me achando insuficiente.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu também! Eu tinha passado a vida inteira não me achando suficientemente coreana, suficientemente magra, suficientemente brasileira, suficientemente bonita. Ai, que dor, viu. Mas, ao mesmo tempo, participar daquela reunião foi como sair de dentro de uma panela de pressão. Eu não sabia de tanta coisa! Não sabia que o que eu procurava era uma conexão. No Mitchossó, ouvindo outras histórias e contando a minha, eu me conectei. O tema tatuagem foi só uma abertura, quase um pretexto. A gente também falou de fetichização dos corpos femininos asiáticos, de preconceito, do modelo de família coreana, de sociedade coreana, digamos, que eu chamo de matriarcado machista, no qual as mulheres ocupam um lugar de força e submissão: elas fazem tudo, cuidam de tudo, porque os maridos se encostam, largam a vida nas costas delas e elas acham que é assim mesmo porque sempre foi assim mesmo. Eu vivi isso, todas nós vivemos, mas só percebi depois que parei de renegar a minha origem e fui ver novela coreana. Todas as mulheres retratadas nas novelas são assim, fortes e submissas, guerreiras e conformadas.

Mas nessa altura eu já tinha dado o passo fundamental, que foi encontrar a minha identidade. As reuniões do Mitchossó me tiraram do lugar de desassossego e me fortaleceram. Tanto que eu, talvez inconscientemente, fui construir uma ponte pra juntar as duas Priscilas que nunca tinham conseguido ser uma inteira: a Priscila coreana e a Priscila brasileira. A estrutura dessa ponte foi a comida. No tempo todo que eu passei brigando com as minhas origens, havia um momento, digamos, mais apaziguado: a minha relação com a comida coreana. Sempre adorei, nunca deixei de comer e de fazer. Desde muito criança eu ajudava a cozinhar em casa e isso os traumas não arrancaram de mim.

Veio a pandemia e eu resolvi fazer umas marmitas de comida coreana pra vender. Deu certo, depois deu errado e acabou dando certo de outro jeito no final: não como negócio, mas como cura. A cultura coreana entrou na moda, eu comecei a fazer vídeos sobre a nossa culinária, ensinando a fazer kimchi e outros pratos e me tornei meio influencer, cê acredita? Tudo mudou. Hoje está tudo diferente pra mim. Eu nunca fui tão tranquila na minha vida, mas não sou tranquila. Não sei se dá pra entender. É que algumas chatices de preconceito, bullying e outras violências continuam. Por exemplo, ocultei as palavras "flango flito" dos comentários dos posts no Instagram, porque tinha muita gozação. Também não respondo comentário de homens que dizem gostar de mim porque eu sou asiática. E outro dia entrou uma mulher falando que era nojento me ver comendo e cozinhando. Aí lá fui eu fazer um longo vídeo contando toda a minha saga de filha de coreanos nascida no Brasil.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ah, sei lá, acho que eu espero fortalecer as meninas mais jovens da colônia. É ruim viver perdida, sem identidade, renegando você mesma. A gente precisa se cuidar, porque parece que todo dia é dia de alguém tentar jogar a gente naquele lugar nenhum, aquela vala, aquele nada. No auge da pandemia, eu estava caminhando com a minha mãe no Parque da Aclimação, passaram dois sujeitos correndo sem máscara e eu falei "Ô, meu, cadê a máscara?" Sabe qual foi resposta? Um grito:

— Não enche o saco! Vocês que trouxeram essa merda de vírus pra cá.

Senti medo, mas um medo diferente, porque eu vi que tinha força pra lidar melhor com esse tipo de coisa. E a força veio justamente do fato de eu ter me encontrado. Hoje eu digo que sou coreano-brasileira. Pras senhorinhas da colônia no Bom Retiro e no Brás eu não sou nada. A mulher coreana jovem é outra coisa pra elas. Ao mesmo tempo, essa mulher coreana jovem que está na cabeça delas não sabe fazer um kimchi tradicional. Eu sei. Modéstia à parte, sou craque. Então eu sou sim coreano-brasileira. Isso quer dizer que eu sou uma coreana diferente das coreanas e uma brasileira diferente das brasileiras. Tudo bem eu ser assim? Tudo bem eu ser eu?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Priscila Jung, 28 anos

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro -- é fundamental parar --- e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.