Topo

Trombadas

Os olhos bem abertos da 'Japonesa Preta'

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

10/11/2022 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Ih, meu amor, tem sushi não. A gente não trabalha com sushi. Tem mais é sarapatel, caldo de mocotó, à noite tem tilápia inteira na brasa, e no PF hoje é uma carnezinha de panela, que ó, não é por nada, eu mesma fiz, a bichinha tá que tá. Acompanha arroz branco e feijão. Prove, homem. Japonesa? Ih, tem japonesa também não. Ai, meu deus, ó a confusão. Sim, a Japonesa Preta sou eu. Mas sou só preta, japonesa nunca fui. Vixe, muitas coisas. Já fui professora, doméstica, babá, cozinheira, globeleza, cê acredita?, fui enfermeira 20 anos e agora sou dona de bar. Júlia! Ô Júlia! Tá me ouvindo, Júlia?! Traga a carnezinha de panela, que o moço não sai daqui hoje sem provar o nosso sabor. A salada de macarrão com aquele presuntinho picado, você pôs o presuntinho, Júlia? Pois ponha, menina. Ponha. Não deixe faltar nada.

Rosangela Santos dos Santos, Trombadas - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Como eu ia lhe dizendo. Quando abri o bar eu ainda trabalhava no PS de Barueri como auxiliar de enfermagem. Largava o plantão às oito da manhã e corria fazer compra pros bares, porque na época eu tinha dois, sempre aqui nessa Carapicuíba. Eu virava a noite no plantão, emendava no serviço no bar e tinha dia que não aguentava. Sentava em algum cantinho e cochilava um pouco. Aí me chega esse rapaz, o Alê, um amigo nosso, e fala assim: "Nossa, a Rô tá cansada hoje. Esse zoinho fechadinho miudinho. Tá que parece uma japonesa preta". Pronto, tava feito.

Antes eu era a Rô, de Rosangela, tanto que o primeiro bar inclusive era Bar da Rô, mas passei a ser a Japonesa Preta. Quase ninguém mais me chama de Rô. E Japonesa Preta, não sei o que é, parece que cria curiosidade nas pessoas, então muita gente chega querendo conhecer a Japonesa Preta. Ontem parou um rapaz de caminhão, ele tinha vindo de São Bernardo fazer uma entrega de tijolo, aí disse que procurou no Google um lugar pra almoçar, achou a gente e veio por causa do nome Japonesa Preta. É diferente, né? Nessa Carapicuíba o que não falta é bar. Numa distância de duas, três ruas pra cada lado tem o do Bil, o do Mineiro, o Miro's, o Boca Aberta um pouco mais pra cima, vixe, tem uma porção. Mas Bar da Japonesa Preta só tem um, o meu. É bom. A pessoa vem por curiosidade, aí já engata na conversa, se ia tomar só uma cerveja, acaba tomando duas, pede uma porçãozinha de linguiça, um caldo, vai ficando.

Rosangela Santos dos Santos, Trombadas - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu gostava de ser enfermeira. Do PS, né? Porque aquele negócio de UBS, ficar sentada tirando pressão, medindo febre, aí não. Meu nível de experiência já estava mais pra PS. No PS é assim: de dentro da emergência a gente sente quem é quem pelo toque da sirene. Você sabia disso? Tem diferença. Quando o Samu dobrava a esquina de sirene aberta a gente já preparava tudo certinho pra casa caso. Corre, que tá chegando baleado. Lá vem um esfaqueado. Agora é enfartado. Atropelado. A gente identificava pela sirene. O esfaqueado é o mais problemático, porque demora pro doutor descobrir onde furou, o que furou, se pegou baço, fígado, estômago, se tem hemorragia. O enfartado, não, o enfartado chega parado, quietinho. Ele entra e nós já vamos pras manobras de ressuscitação. Ano passado eu fui no mercado e tinha um homem enfartando no meio do corredor do macarrão. Afasta, afasta, que aqui é profissional de saúde. Abre, abre, abre. Você, liga pra ambulância. Você, tira os sapatos dele. Você, traz o desfibrilador. Em um-dois eu, zraaaap!, rasguei camisa e comecei as manobras. O rapaz viveu, vixe. Foi encaminhado primeiro pro SUS e depois, como era rico, foi transferido pra hospital particular. Ficou bonzinho. A mulher dele até me trouxe uma cesta de Natal pra agradecer.

Rosangela Santos dos Santos, Trombadas - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Mas teve uma hora que eu comecei a ficar muito desligada do mundo e só ligada na correria, na adrenalina. A vida no serviço de saúde é puxada demais. Eu tive dois livramentos em duas semanas e resolvi dar um tempo. Os dois do mesmo jeito, no mesmo lugar. Voltando do plantão de manhã cedo, numa descidinha assim, eu dormi no volante e quase fui parar dentro do lago com carro e tudo. Aí eu digo: Acorda dessa ganância, mulher. Mas não era ganância de dinheiro, sabe? Era uma ganância de querer provar pro meu pai que eu era trabalhadeira, mulher direita e não era aquela pessoa que ele achou que eu ia ser, tipo uma vagabunda, uma maconheirazinha perdida aí.

Eu nasci em Bacuri, no Maranhão. Bacuri é uma cidade de uma unidade de cada coisa. Uma farmácia, um açougue, um banco, um correio, uma praça, um hospital. A minha mãe trabalhava de copeira na escola e meu pai era lavrador. Seis irmãos intercalados: um homem, uma mulher, um homem, uma mulher. Com nove anos eu já carregava mandioca na cabeça. Nossas roupas eram de chita, blusinha, saia, até a calcinha, que era o tecido mais barato que tinha pra comprar. Comida era mais marreco, sabe o que é? Que pato o quê?, não, vixe. Marreco era carne de pescoço de boi. Uma carne muito ruim. Minha mãe misturava com bastante mamão pra render e era isso que a gente comia. Outro dia comprei um pote de 1 quilo de manteiga, hoje eu compro logo de pote, gravei um vídeo e mandei pra eles lá. Porque em Bacuri a gente comprava manteiga de colher. A minha mãe passava só numa banda do pão e a gente que se virasse. Mas meu pai fazia a gente estudar, apesar de tudo. Ele comprava três lápis, quebrava no meio, dava uma metade pra cada filho e mandava todo mundo pra escola. Cheguei a fazer o magistério, dei aula por um tempo e tudo.

Rosangela Santos dos Santos, Trombadas - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Só que antes, quando eu tinha 11 anos de idade, o meu pai me doou pra uma prima dele que vivia em Belém. Fui trabalhar em troca de comida e roupa. Eu fazia faxina, lavava, passava, só cozinhar que não, cuidava da filha dessa prima, que era deficiente e um pouco mais velha do que eu. Agora você imagina: uma criança de 11 anos tendo que carregar, dar banho, trocar fralda, vixe, eu mal aguentava o peso da menina. Foi uma experiência horrível. A mulher era grossa comigo, me bateu uma vez, me deu um tapa na cara porque eu disse que não ia fazer o que ela tava pedindo, nem lembro o que era. E não me entrava na cabeça que só eu tinha sido doada. Nenhum dos meus irmãos foi. Se era pra viver melhor, os outros tinham que ir também, não é? Mas só fui eu. Por que isso? O meu pai disse que a prima ia ter mais condição de cuidar de mim. Tudo mentira. Eu fui ser tipo uma escrava. Não ganhava roupa coisa nenhuma.

Fiquei dos 11 aos 17 em Belém. Aí eu namorei um homem casado e a prima me despachou de volta pra Bacuri. Cheguei e já cheguei revoltada. Meu pai com aquela cabeça da roça dele estava indignado. Que vergonha você me faz passar, a nossa família é direita, onde é que já se viu? Eu fiquei quietinha, não respondi, mas pensei: quando eu completar 18 eu me pico daqui. O meu pai bebia tanta cachaça que chegava em casa tão torto que eu não sei como ele conseguia pegar o prato de comida pra jogar na minha mãe. Mas arrependo nada, vixe. Eu estava na fase. Tinha 17 anos, uma cinturinha que era isso assim, tudo em cima, 47 quilos, adorava dançar um forró, um samba, tanto que o meu apelido na época era Globeleza, de tão bela que eu era. Eu era top. Então tem arrependimento não.

Rosangela Santos dos Santos, Trombadas - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Em São Paulo eu cheguei passando vergonha. Depois de três dias de viagem, desci do ônibus na Praça Princesa Isabel, era ônibus clandestino, pra ser mais barato, desci ali e a minha instrução era pegar o metrô até a Praça da Sé. Eu nem sabia o que era metrô. Quando o trem partiu, eu não estava segurando nos ferros, caí o rolei lá dentro. Todo mundo rindo de mim, mas ninguém pra me ajudar a levantar. Aí, quando desci na Sé, uma das minhas malas ficou dentro do trem e foi embora. Então, como se diz, eu cheguei chegando nessa São Paulo, né? Fiquei na casa de uns conhecidos. No dia seguinte, fui na banca de jornal e comprei o jornal Amarelinho. Precisa-se de doméstica. Eu digo: É por aí que eu vou começar.

No dia seguinte fui até o local indicado, que ficava na Aclimação. Era um sobrado. Entrei, vi tanta mulher lá dentro que pensei, gente, isso aqui é uma casa de prostituição. Não era. Era uma agência de emprego especializada em serviços domésticos. A dona veio falar comigo:

— Olha, Rosangela, você vai ter que ficar aqui, porque quando as patroas chegam elas querem escolher e já levar.

Rosangela Santos dos Santos, Trombadas - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu digo: tá bom. Dormi 20 noites lá até ser contratada, fui a que mais demorei pra sair. Porque eu não sabia fazer nada. As patroas me entrevistavam e queriam saber se eu fazia pavê disso, arroz daquilo, frango assim, peixe não sei o quê. Eu falava a verdade, né? Sei fazer o serviço todo da casa, mas na cozinha só o básico. Patroa nenhuma me queria. Logo eu pensei: Eu vou é voltar pro meu Maranhão, porque aqui nessa São Paulo não vou andar pra frente. Mas tinha uma senhora bem de idade na agência que saía e voltava, saía e voltava. Era a primeira a ser levada, as patroas se encantavam com ela. Mas a bicha tinha um gênio danado, aí com dois, três dias devolviam ela. Foi essa senhora que começou a me ensinar a cozinhar. Menina, pega esses livros, esses cadernos de receita e vai lendo, senão você vai mofar aqui. E você trate de aprender a mentir também. Quando a patroa perguntar se você sabe cozinhar, diga que sabe, sim senhora. Essa parte foi a mais difícil, porque eu não falava mentira.

Mas não tive escolha. Teve um dia que só ficamos na agência eu e mais uma. Veio a patroa e, enquanto ela entrevistava a outra, aquele negócio de mentir me machucando a mente. Minha vez. Tu sabe fazer estrogonofe? Sei, sim senhora. Sabe fazer lasanha? Sim, senhora. Torta de frango? Claro. Acabou a entrevista, a dona da agência veio até mim:

— Arruma as tuas coisas, que você já vai com a patroa.

Rosangela Santos dos Santos, Trombadas - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Era um apartamento em Pinheiros. Ela era advogada e tinha um bebê de oito meses, então eu cuidava dele e da casa. O marido ficava o dia inteiro fumando maconha e jogando videogame. Não deu uma semana e a patroa me deixa um bilhete. Rosângela, faça um suflê de cenoura pro jantar. Ave minha nossa senhora, que raio era suflê? Fui no caderno de receitas que aquela senhora na agência me deu e tinha suflê lá. Fiz, ficou lindo. Só que quando eu fui servir, três horas depois, tinha murchado que mais parecia uma sola. Menino, pensa numa mulher desesperada. Era eu. Quando a patroa chegou eu estava chorando na cozinha. O que foi, Rosangela? Aconteceu alguma coisa com teus parentes no Maranhão? Você não está gostando de trabalhar aqui? Sabe o que é, doutora, eu tive que mentir que sabia fazer tudo na cozinha pra poder sair da agência. Mas a verdade é que eu só sei o básico. Essas coisas de suflê eu nunca fiz. A senhora me desculpa. Se quiser me devolver eu vou entender.

Ela catou um garfo na gaveta, experimentou o suflê e falou: Que é isso, mulher! Tá uma delícia. Só está frio, porque suflê a gente faz pouco antes de servir. Mas o sabor está maravilhoso. E tem outra. Eu não te escolhi por conta de ser cozinheira. Eu peguei você porque você é professora formada e não vai ensinar meu filho a falar errado. No Nordeste é onde as pessoas falam o português mais corretamente, e eu quero que o meu filho aprenda a falar direitinho, com os plurais, os verbos no tempo certo, sem gíria, essas coisas. Nossa, vixe, aquilo me aliviou de um jeito. Trabalhei quatro anos pra doutora. Eu tinha folga a cada 15 dias, mas nem saía, porque não tinha aonde ir. Então eu ficava adiantando o serviço.

Teve uma vez que ela quis me levar pra Orlando, que eles iam de férias. Tirou meu passaporte, preparou tudo, mas no Consulado dos Estados Unidos me negaram o visto. O homem lá disse que eu não tinha vínculo nenhum no Brasil, não tinha filho, não tinha casa e corria o risco de eu querer não voltar. A doutora ficou uma arara. Brigou, disse que ia chamar a televisão, que o homem estava agindo com preconceito porque eu era negra. E ela estava certa. Falou pro homem: Como é que meu filho vai se alimentar? Ele só come a comida da babá, até quando a gente vai em restaurante eu levo uma marmitinha com a comida dela pra ele. O homem virou e falou bem assim pra doutora: Pois agora o seu filho vai ter que aprender a viver sem SUA babá. Ela ficou mais brava ainda. Mas não adiantou nada. Eu não pude conhecer os Estados Unidos, você acredita?

Rosangela Santos dos Santos, Trombadas - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Depois de um tempo eu comecei a fazer o curso de técnica em enfermagem. Meu apelido na escola era Nove Horas, porque esse era o horário que eu conseguia chegar, só depois de deixar tudo prontinho no serviço. Janta, louça lavada, o menino de banho dado. Mas me formei e antes mesmo de pegar o diploma eu já tinha arrumado um emprego de cuidadora. Fui feliz na enfermagem também, só que me cansei, como eu te disse. Eu acho que fui feliz quase a vida toda, menos no casamento que não. Olha aqui. Tá vendo a cicatriz por baixo da tatuagem? Quem?! O traste do meu ex-marido. Homem bruto, ignorante. Aconteceu que eu trabalhava no Morumbi, esse homem com um ciúme, um ciúme, e quem tem ciúme desse jeito é que está aprontando, você sabe. Nesse dia eu cheguei do plantão, passei no mercado pra comprar umas frutas pro Robert, meu filho. Pêra, laranja, banana, frutinhas bem selecionadinhas, sabe? Cheguei em casa, parei meu Voyaginho na garagem e esse homem gritando. Que eu estava com outro, que plantão coisa nenhuma, que não sei mais o quê, que eu era isso, era aquilo. Aí ele me pega as frutas do menino e joga tudo pela janela.

Eu não falei nada. Subi pra tomar um banho e descansar. Quando me virei assim esse homem me deu um puxão no braço que deu pra ouvir o barulho do osso partindo. Menino, que dor. Aí sim eu conheci sofrimento. Eu gritava, chorava, o meu filho de quatro anos que saiu pra rua pra chamar socorro, você acredita? Tem uma platina e doze pinos. Pontos acho que são uns vinte, conte aí. Mas não vamos falar mais disso não, porque depois eu ainda descobri que esse homem tinha uma filha com outra mulher e até no Ratinho eu fui, pra provar por DNA que a menina era dele. Deixe estar.

Como é que está a carnezinha de panela? Gostou? Não vai beber nada? Olhe, hoje é quarta-feira, não é? Tem jogo do Palmeiras à noite. Venha ver aqui. Você toma uma cervejinha, come um espetinho que eu faço na brasa e assiste o jogo. Pode até trazer a mulher, seus filhos.

Eu agradeço, Japonesa. A carne de panela tá uma delícia, mas o jogo na TV eu vou deixar pra próxima. Aqui é Corinthians.

Rosangela Santos dos Santos ("Minha mãe é Maria da Conceição Santos e meu pai, Itelino dos Santos; aí eu fiquei Santos dos Santos, você acredita?"), 48 anos

- - - - - - - - - -

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar —- e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.