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Trombadas

A surpresa de Julia

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

26/01/2023 04h00

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Até que um dia eu sentei no vaso e comi sabonete. Abri um novinho, aquele azul. Meu deus, que coisa mais gostosa. Comi metade, saboreando, e parei. Não, isso não deve tá certo. Joguei a outra metade fora, fui no Google: É normal comer sabonete? Apareceram umas coisas nada a ver com a minha pessoa. Tipo, uns transtornos, doença mental, gravidez, eu nem cliquei pra ler. E me dava uma vontade, sabe?, uma vontade tão forte, gente, mas de onde é que tá vindo isso? Eu ia no mercado só pra ver sabonete. Ah, e detergente. Cheguei a tomar um golinho também. Uma dor de barriga, um negócio aqui do lado, afe. E não era gostoso como o sabonete. A minha vontade era de sabonete. Só que eu tinha uma paranoia: não comia o do banho ou da pia, tinha que ser novo. Usado não, né?, passou no corpo, nas mãos, tá sujo. Então eu abria dois, três, quatro, que lá em casa a gente comprava pro mês, eu abria, disfarçava de mim mesma e mandava ver. Pedacinhos. Depois fechava direitinho e punha de volta. Aqueles sabonetes lá com as marcas dos meus dentes. Meu pai: Ô Julia, o que é esse monte de sabonete usado e embrulhado aqui no armário?

Isso foi em novembro. Um mês antes eu tinha começado academia. Ia com uma amiga que tem o corpo igual ao meu, assim magrinha. A gente treinava todo dia e eu comecei a reparar: de repente as minhas pernas tavam muito mais fortes que as dela. Caramba, acho que tá pegando pra mim, hein, eu dizia. Tá pegando! Tá pegando demais! As minhas pernas davam duas dessas de hoje, uma beleza. Eu me olhava no espelho pra ver se já tinha os gominhos na barriga, nada ainda. O braços também: continuavam fininhos. Mas as pernas tavam show. Aí eu colocava shorts, blusão, tênis, uma meia até aqui, estilo bombado, chegava na escola e mostrava as pernas pra todo mundo. A academia tá pegando demais, gente, vocês não têm noção. Dali a pouco os meus pés incharam. Eu saí da escola, ali pertinho da Igreja de Achiropita, no Bixiga, e passei na casa da minha irmã. Ai, Talita, olha o meu pé como tá inchado. Isso aí é retenção de líquido, melhor ir no médico pra ver, ela falou. E, junto com os pés inchados, um sono impressionante. Muuuuito sono. Eu ia cedo pro colégio, à tarde trabalhava pra caramba fazendo unha em domicílio, andando pra lá e pra casa em casa de cliente, e à noite academia. Dias longos, uma rotina chata e puxada, taí: pé inchado e cansaço monstro. Era isso.

Eu morava com meu pai em uma ocupação na região da Sé. Nesse dia eu cheguei em casa e ele se assustou. Meus pés tavam enormes. Muita veia saltando. Era veia pra caramba. Vamos no postinho ver isso aí, meu pai disse. Chegamos lá, não tinha médico, voltamos. Depois de uns dias os pés deram uma melhorada, beleza. Aí acordei no meio da noite com fome. Fiz um pratão desse tamanho de macarrão com salsicha, e meu pai: Menina, tu tá estranha. Que estranha o quê. Eu tô com fome. Comi e botei tudo pra fora. Ele: Ai, ai, ai. Não é nada, pai. Comida muito pesada pra essa hora da noite. Pode voltar a dormir, já já eu tô boa. Aí melhorei, continuei com a minha rotininha chata. Umas semanas mais pra frente, bati a barriga num aparelho da academia e senti uma dor insuportável. Parei o lugar, veio todo mundo me ver. Não é nada, gente, não é nada. Só preciso de meia horinha. A dor diminuiu, mas não passou. Fui pra casa, tomei um banho e deitei pra dormir. Meu pai chegou em casa às duas da manhã. Ele é manobrista, trabalha no turno da noite. A dor tinha voltado dez vezes pior.

No Parque Dom Pedro tem uma UPA. A gente ia a pé mesmo. Mas eu dava dez passos e parava pra descansar ou pra gritar de dor. Eu sentava na porta dos bares, das lojas da Sé, tudo fechado, e gritava. Teve até um rapaz, no caso ele estava em situação de rua, né?, ele saiu lá do lugarzinho dele e veio perto de mim. Pôs as mãos nas minhas costas e falou: Moça, fica calma, vai dar tudo certo, viu. E eu chorando, berrando. Moço! Eu não tô aguentando, moço! Tá doendo demais! Não tem o que dar certo aqui não! Ele: Fica calma, moça, fica calma. Super carinhoso, o rapaz. Aí meu pai, que tinha sumido, reaparece com uma viatura da Guarda Civil Metropolitana. Me levaram pra UPA. Pela janela do carro, era estranho ver aquela parte da cidade de noite, com tudo fechado, e eu tonta de dor que nem sabia mais onde doía, doía tudo, parecia um outro planeta.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Na UPA vieram quatro médicas pra cima de mim. Toca aqui, aperta ali e uma delas me diz: Julia, nada grave. Você está com uma cólica renal. Vou te dar um soro e te mandar pra casa. Eu me contorcia. Só faz essa dor parar, doutora, pelo amor de deus! Eu quase desmaiei. Ou desmaiei. Mordi meu pai, mordi as médicas, mordi a grade da maca, xinguei todo mundo ali naquela UPA. Ai, eu pretendo voltar lá um dia pra pedir desculpas, porque foi constrangedor. E parecia que só tinha eu com dor no prédio. Eu não ouvia ninguém mais gritar. Me puseram no soro e aí do nada vem uma enfermeira: Olha, essa menina tá grávida e pode estar tendo um aborto. Ela precisa de um hospital. Agora. Já!

Eu senti meu coração disparar: Grávida?!

Meu pai: Grávida?! Mas onde é que tá o bebê?

A enfermeira: Tá grávida, sim. Essa dores dela são dores do parto. A gente vai mandar ela pra Santa Casa.

Na ambulância eu sentia muito medo e um pouco de raiva. Mas que grávida o quê! Essa mulher tá achando que conhece meu corpo melhor do que eu? Grávida sem barriga? Grávida com ciclo menstrual normalzinho? Grávida sem enxoval?! Que grávida o quê! Quando a ambulância encostou na Santa Casa, veio um enfermeiro que eu achei que fosse aquele rapaz da rua: Moça, fica calma, vai dar tudo certo. Você vai ter um lindo bebê daqui a pouquinho. Daqui a pouquinho?! Ai meu deus do céu! Eu não acreditava, porque eu não via água da bolsa, não via sangue, nem barriga eu tinha.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Foi o tempo de me carregarem de maca até uma sala cheia de gente. Uns cinco minutos. A enfermeira, ou médica, nem sei mais, chegou chegando:

Faz força, Julia! Força!

Moça, se eu fizer mais força eu morro de dor.

Morre nada. Faz mais um pouco de força. Agora! Vai!

Aí ela meteu a mão na minha barriga e empurrou. Meu! Foi uma dor, mas uma dor. Eu lá pensando: e se eu tiver mesmo um filho na barriga? Será que é menina ou menino? Que nome eu vou dar? Mas eu não tenho nada pra ele, nem roupa, como é que pode?

Faz força, Julia! Tá saindo. Tô vendo a cabeça!

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ai, meu deus, que cabeça, moça?!

Vai logo. Força!

Na hora que a minha filha nasceu, foi um momento assim, ai, não sei explicar. Eu só olhei pro lado e dormi. Eu não sentia mais dor, não sentia mais medo, não sentia mais raiva. Eu nem me sentia. Eu achava que não existia mais. Meu deus, como é que eu vou viver agora?

Foi muito assustador. Eu acordei em choque, pedindo desculpas pro meu pai, que tava ali do lado. Ai, pai, o senhor me desculpa? Eu juro que não sabia. Não tava escondendo. Eu não sabia mesmo. O senhor lembra que a gente ia no mercado e eu sempre repunha os absorventes, né? Eu fiquei muito preocupada, porque meu pai já é senhor, tem uns 65 anos, um homem meio bruto. E naquela noite, enquanto eu gritava de dor andando pelas ruas da Sé, parando nas esquina pra descansar, eu vi uma lágrima escorrendo no rosto dele. Depois ele me contou que achou que ia me perder, que eu ia morrer. Eu nunca tinha visto meu pai chorar e isso me abalou pra caramba. Depois de tudo o que ele já tinha passado, mais aquilo, uma neta. Fiquei preocupada com a reação dele.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ai, pai, o senhor me desculpa?

Que desculpa o quê, Julia! A bebê é linda, eu tô muito feliz. Parabéns!

Aí ele me abraçou, disse que só não estava preparado por eu ser a caçula, mas tudo bem, o importante era que eu e a bebê estávamos bem. Foi mágico nessa hora. Seis, somos seis filhos. A nossa mãe morreu quando eu tinha 13 anos.

Aí me trouxeram a bebê. Eu: Mas isso tava dentro de mim? Nessa época eu era meio fria, sabe? Minha cabeça era trabalhar, estudar, ter uma carreira. Nada de filho, imagina. Quem sabe um dia, lá pra frente, mas tão distante. Aí eu lembrei de uma conversa que eu tive tempo de ter com a minha mãe: Mãe, eu quero ser dentista, quero fazer a minha faculdade, ter uma profissão que a senhora, poxa, que a senhora possa olhar pra mim e dizer Parabéns, Julia. Eu perdida nessas lembranças e aí ouço aquela voz me jogando na cara a minha nova realidade: Você é mãe agora. Já sabe o nome? Era a enfermeira me entregando a minha filha. Na hora que eu peguei nela me senti outra pessoa. Eu me senti de verdade, eu acho. Amei essa sensação. Parecia que o mundo todinho se abria pra mim, e eu tava forte pra cair nele. Foi bacana. Até consegui rir lembrando dos sinais que não percebi. A vontade de comer sabonete, o macarrão com salsicha na madruga, as pernas bombadas, os pés inchados, o cansaço absurdo.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Maitê. Ela vai se chamar Maitê, porque lembra o nome da minha mãe, que era Marta, eu respondi pra enfermeira. E também porque eu e o pai dela chegamos a falar sobre isso um dia. Fazia tempo que a gente não tava mais junto. E tem uma coisa maluca nisso, vou contar. Na noite em que nós fomos pra UPA, eu e meu pai, a gente descendo as escadas do prédio, eu ouço o toque do celular que eu tinha posto pro ex. Mas a essa hora? Ele escreveu: Oi, tá tudo bem com você? Tô me sentindo estranho, sentindo você, muito forte. Queria saber se você tá bem. Ele mandou uns áudios também e tava chorando. Eu tô indo pro hospital agora, depois a gente se fala, eu respondi. Como assim? O que tá acontecendo?, ele continuou. Mas eu tava com muita dor, não conseguia falar. Meu pai: Julia, depois você mexe no celular, vamos indo logo. Aí só voltei a falar com ele nessa hora que me trouxeram a Maitê. Liguei e contei: Acabei de ganhar bebê. Ele disse que tinha tomado remédio pra dormir, andava meio esquisito e estava muito assustado. Me mandou dinheiro. Toma já R$ 300 pra ela, compra umas coisinhas, depois a gente conversa. E foi isso. Um cunhado deu mais R$ 200, as irmãs mais um pouquinho, meu pai juntou tudo e foi comprar mamadeira, banheira, fralda, chupeta, cobertas, roupinhas. Voltou com uma sacola enorme. Eu saquei que ia estar sozinha com a bebê e senti muito medo outra vez. Hoje faz um mês que ele não vem ver a filha. Manda o dinheiro dela, ok, é importante, mas eu queria que ela crescesse com o pai por perto, presente. Só que não vai rolar. Ele levou sete meses pra contar pra família dele.

Hoje tá bem difícil, não vou mentir. Difícil pra caramba. Mas já foi mais. Nos primeiros dias eu cheguei a pensar besteira: dar ela pras minhas irmãs criarem, vê se pode. Elas me ajudam bastante, dentro das possibilidades delas, e eu vou seguindo. Agora tô trabalhando fixa num salão. Segunda a sábado, o dia inteiro, é bem puxado. Mas é mais estável e estabilidade é o meu maior sonho no momento. Eu fico pingando aqui e ali na casa das irmãs, mas quero morar com meu pai de novo. Não em ocupação. Eu queria um pouco de privacidade e lá é um quarto com banheiro no corredor. A gente tá conversando sobre isso. Acho que pode rolar. Eu queria uma quitinete, pequenininha, tudo bem, mas um lugar pra gente ficar junto, eu, a Maitê e meu pai, pra tomar café da manhã, conversar, cuidar um do outro, aí eu queria retomar meus estudos, terminar o ensino médio e tentar a faculdade. Será que eu consigo? Tem dias que parece tudo tão difícil, tão complicado, tão impossível. E aí eu choro direto. Mas a Maitê é a minha força. Eu vou conseguir. Nós vamos ficar bem.

Ó meu pai mandando mensagem. Ele me escreve o dia inteiro, só perguntando da Maitê. Maitezinha tá bem? Maitezinha precisa de alguma coisa? Tem danone pra Maitezinha? Hoje parece que vai esfriar, Julia, você levou roupa quente pra Maitezinha? Amor de avô é bonito, né? Forte.

É sim. Infinito.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Julia de Oliveira Sousa, 18 anos

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.