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Fé, arte e elite: a viagem de Maxwell da Rocinha para o circuito europeu

Maxwell Alexandre, artista plástico - Carine Wallauer/UOL
Maxwell Alexandre, artista plástico Imagem: Carine Wallauer/UOL

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

13/02/2019 04h00

"Não sei se dá pra chamar de ambição", afirma Maxwell Alexandre, 28, que parece caçar as palavras com os olhos.

Mas é uma parada que é muito provável pra quem vem de onde eu venho, e consegue vislumbrar um pouco por cima do muro: eu sempre quis ser famoso e rico, tá ligado?

A confissão do artista plástico brasileiro, negro e em intensa ascensão, aconteceu em outubro de 2018, durante a Bienal Internacional de Arte de São Paulo. A primeira exposição de Maxwell Alexandre havia ocorrido sete meses antes, no Complexo Esportivo da Rocinha, com a série de pinturas "Pardo é Papel". A proposta era fazer referência tanto ao tipo de papel usado no trabalho quanto ao tema racial, representado em imagens de jovens com becas de formatura, símbolos de uma infância restritiva, personalidades negras e carros de polícia capotados.

As cores vibrantes e traços distorcidos com os quais Maxwell retratava a Rocinha, sua casa, logo foram para o asfalto, e em poucos meses entraram para o acervo da Pinacoteca de São Paulo e do MAR (Museu de Arte do Rio). Uma das obras da série "Pardo é Papel", "Éramos as Cinzas e Agora Somos o Fogo", foi sensação no Masp (Museu de Arte de São Paulo) na recente mostra "Histórias Afro-Atlânticas".

Ele é um excelente pintor e tem um trabalho revigorante
Adriana Varejão, artista plástica, à revista "Trip"

Com o eixo Rio-SP conquistado, Maxwell zarpou. Ainda em 2018 foi a Londres, convidado para uma residência de um mês na Fundação Delfina. Hoje, quem sabe neste momento, ele possivelmente circula de skate por Lyon, na França, ou então cuida de burocracias até então inéditas em sua rotina. Acostumado a montar suas próprias obras em galpões improvisados, agora ele lida também com notas fiscais, carimbos e assinaturas para que os painéis imensos da "Pardo é Papel", todos com 4,75 x 3,60 metros, entrem no MAC Lyon, o prestigiado Museu de Arte Contemporênea da cidade.

A primeira mostra internacional de Maxwell ocorre pouco mais de um ano após sua largada como artista profissional. O convite do museu para a exposição, que será aberta em 8 de março, faz menção ao tamanho do feito do brasileiro:

Ao criar afrescos monumentais e populares, o artista, através de sua pintura fluida e precisa, celebra o corpo afro-brasileiro em posição de poder

("Quem é Maxwell Alexandre, jovem artista brasileiro que será exposto no MAC a partir do dia 8 de março?", pergunta o museu no post)

Maxwell já pulou o muro que apenas vislumbrava. Conquistas importantes ajudaram a legitimar o seu trabalho numa indústria historicamente branca e elitista, habitualmente oposta à celebração afro-brasileira empoderada citada pelo museu. Com fala sóbria e um cuidado com o próprio visual, ele solta frases que poderiam fazê-lo soar blasé - talvez por isso ele costuma iniciar muitas falas com um 'é foda dizer isso, mas...'

Mas... a postura altiva entrega a consciência de quem enxerga suas obras merecedoras de espaços mais tradicionais, enquanto trata o seu processo artístico como uma questão de devoção religiosa. "Tem essa parada de estar surfando alto, e estar conseguindo manter isso, ainda que muito cedo. Mas qualquer agente que vier aqui e ver esse trabalho... cara, não tem como voltar atrás", diz o artista, direto de Lyon. "Acho isso muito foda, fala muito sobre a fé", completa.

Em nome da arte

Todas as obras que chegam a Lyon saíram de uma travessa movimentada na entrada da Rocinha. Entre som alto, jogo do bicho e carros da polícia, os moradores assistem, muitas vezes sem entender, ao vai-e-vem atípico de arte e pessoas de fora da comunidade.

É ali que funciona seu templo, um apartamento onde ele produz os dízimos - como ele chama suas obras - para uma crença seguida por ele e os artistas (e amigos) Raoni Azevedo e Eduardo de Barros. "Fui criado em berço evangélico, minha família inteira é evangélica, com tio pastor. O acesso à arte e à filosofia foi me ajudando a desconstruir o evangelho", afirma.

O negócio todo se materializou com uma revelação. "Um dia eu fui dormir e acordei com essa nomeclatura, de um pastor como um curador", conta. Mais tarde, o trio fez nascer a Igreja do Reino da Arte, livre das posições de pastores e sacerdotes, mas com a devoção incondicional à inspiração, a que eles chamam de "A Noiva".

"Eu acredito que ela é uma energia que está antes da gente, e que vai permanecer. A forma como a gente conseguiu manifestar essa energia, que é uma energia urgente - talvez tenha outras pessoas fazendo isso em outro lugar do mundo —, foi através da igreja", diz. "É um lugar em que o artista exercita sua fé na arte, um lugar alternativo ao sistema do mercado da arte. É um lugar onde, sobretudo, o exercício da fé é importante", completa.

A fé que lhe rondava na infância, enfim, apareceu. "Hoje eu sou artista. É a minha religião", afirma.

A igreja promove cultos - popularmente conhecidas como vernissage - e o batismo de novos artistas. O carioca Felipe Carnaúba foi o último a comungar e ser devidamente batizado em uma piscina de plástico. "A Noiva", disse Maxwell, antes de mergulhar a cabeça do artista. "Fé, fé, fé", repetiam os presentes. Todos são convidados a tomar um gole da água "batizada" com uma erva "santa", o mate.

domingo passado tivemos o segundo batismo da Igreja do Reino da Arte. Felipe Carnauba (@carnauba.felipe) foi abençoado com a glória da Altíssima Arte. A cerimônia contou também com a presença do Santo Tolezano (@st.tolezano) que transformou a água em vinho, e eu mesmo que consagrei o menino pela sua vontade e sobre o aval da Noiva. Acredito nesse artista desde o início em que vi sua produção. Simbolicamente, ele veio morar na Igreja na virada do ano, e durante o seu retiro artístico era nítida a mudança de postura, sobre tudo o compromisso com suas orações diárias...mulek é uma bala produzindo. Desde o Retiro havíamos percebido que sua fé estava elevada, então o Batismo foi apenas um culto para testemunhar visualmente aquilo que já tinha acontecido em seu coração. Carnauba já estava batizado em espírito, pela Noiva, pela Altíssima Arte. Quando cheguei na Templo no dia da cerimônia e vi suas orações novas, fiquei em choque com a maturidade e desenvolvimento das pinturas e do corpo de trabalho. Sou bem chato com arte, poucas coisas me pegam e naquele dia eu gastei um tempo na frente das orações, tudo muito foda. Então aproveito pra convidar a todos para a primeira entrega individual desse fiel, amanhã às 19h aqui na Igreja - Travessa Mesopotâmia n 13 / Rocinha - para contemplar e celebrar 10% da produção recente desse grande artista. Venham para o Dízimo de Felipe Carnauba. AleluaAmém, Anoiva! #igrejadoreinodaarte #anoiva #fé #pinturassaooracoes #felipecarnauba #maxwellalexandre #rocinha #riodejaneiro #rj #dizimo #retiro __

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O Chamado

Eu sempre tive a noção de ser alguém escolhido. Eu sabia que eu tinha um propósito, e que, se eu optasse por fazê-lo, eu ia fazer bem, ia ter reconhecimento e isso ia reverberar no mundo

Maxwell diz que sempre soube que viveria de arte, mas imaginava que essa virada aconteceria daqui a 10 anos. O chamado divino aconteceu quando ele circulava pela cidade como patinador profissional. "Eu era o melhor do Rio", afirma. "Tinha patrocinadores, mas não ganhava dinheiro. Era como se eu fosse o melhor jogando bola de gude", completa.

Ele estudou design na PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) atrás de conhecimento para divulgar a carreira sobre duas rodas, até que esbarrou na arte contemporânea. Nessa transição, as rodas dos patins serviram para as primeiras manifestações abstratas. O cenário? Um hotel abandonado.

Maxwell passou a retratar as tensões e os valores dos negros, em obras talhadas sob a trilha sonora do rap. Esse atrito é evidente na série "Reprovados", na qual crianças com o uniforme da rede pública interagem com policias com armas em punho - são essas as pinturas que ilustram esta reportagem.

Eu não venho de escolas de pintura, não sou um desenhista exímio. Minha pintura é muito mais uma anotação, uma mediação de coisas que estou costurando na vida. E isso tem um valor capital não só financeiro, mas social muito forte. Abre os caminhos para eu ir costurando as coisas no mundo

Hoje, além de galerias e museus, ele também remenda vivências em jantares e festas chiques. "A galera que está envolvida na arte contemporânea é mais 'fancy' (sofisticado) ainda", observa, desde que fora para Londres.

Tímido e abstêmio, Maxwell costuma ficar de canto nos eventos, observando, como um bom "darwiniano" - é assim que ele se descreve. "A parada é muito sinistra. É um milhão de jantares. É tudo muito sobre interesse", afirma. "A arte contemporânea, dentro dessas classificações, é o que está no topo do jogo, é onde está o dinheiro, é onde está o maior prestígio, só que isso é muito seleto", completa.

Nos jantares, ele conta, é comum os negros apenas servirem. "Arte contemporânea não foi feita pra gente", diz.

Esse trabalho de observação o faz compreender a curiosidade em torno do próprio trabalho. "Se eu não tivesse pintando isso, provavelmente eu não estaria no hype", observa.

O negro hoje, pra ter um certo tipo de entrada, é mais fácil quando ele é político. Porque o campo intelectual não é oferecido como um campo pra gente. A filosofia é pra quem está com tudo sanado, pra quem está a barriga cheia, a gente ainda tem que lutar

Agentes e galeristas querem que o foco do artista seja total: pedem para Maxwell produzir mais, dar menos entrevistas e focar sua energia no reduto da arte contemporânea. "Os caras que estão comigo hoje tem o melhor plano para um artista profissional: melhor residência, melhor coleção, melhor museu. Eu falo: 'para mim isso não serve, vocês têm que levar em consideração a minha biografia'", afirma. "Acho foda, vou usufruir disso, mas preciso transitar. De onde eu venho, não faz sentido nenhum minha arte ser produzida no ateliê e só ir pra galeria", completa.

A preocupação do artista vem desde a época da PUC. Ao se entregar com devoção à arte, ele conta que sua vivência da Rocinha foi invisibilizada. "No final, o que eu fiz foi tentar voltar pra favela. Existe uma não aceitação que não foi verbalizada, mas que é consentida", afirma. "Meu jeito de falar mudou, meu jeito de vestir mudou, não era mais meu comportamento de cria", completa.

Das muitas paradas que aconteceram nos últimos dois anos, essa ainda ressoa forte. Com as portas de um mercado nunca antes imaginado finalmente abertas, ele luta para não fechar as do seu templo na Rocinha.

"Eu tenho que recusar propostas faraônicas, propostas bem grandes, e recusar proposta grande é um degrau de maturidade que eu não tenho ainda. Isso é difícil", afirma. Para continuar com os olhos voltados também aos asfaltos e morros, ele avalia que tem um desafio grande pela frente:

Preciso perder um pouco da ambição, eu quero tudo muito rápido

Maxwell Alexandre - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL