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"Copia e cola" ajuda e algoritmo rebatiza revelação da música brasileira

Fabriccio posa em um intervalo das gravações de seu novo disco - Carine Wallauer/UOL
Fabriccio posa em um intervalo das gravações de seu novo disco Imagem: Carine Wallauer/UOL

Peu Araújo

Colaboração para o TAB, em São Paulo

08/07/2019 04h01

Fabricio Oliveira virou Fabriccio por um capricho dos algoritmos (nada a ver com a numerologia que criou Jorge Benjor) e pela presença de dois homônimos que cantam em espanhol - um cantor de iê iê iê e um astro gospel ultraconservador. "Tem um trabalho antigo meu que foi para a mesma conta deles no Spotify. Ainda bem que é um trabalho que eu não gosto", afirma. Se você der uma busca básica na plataforma de streaming verá os três artistas juntinhos como se fossem a mesma pessoa, se amalgamando na curadoria pouco atenciosa da inteligência artificial.

Aos 30 anos, o cantor, instrumentista e produtor capixaba está em estúdio para lançar um álbum ainda este ano na mesma lógica de seus trabalhos anteriores, gravando praticamente todos os instrumentos. "Eu acho legal quebrar essa ideia do supermúsico. Eu acho legal ser um cara que toca mal, mas que consegue montar as coisas."

Em 2017, Fabriccio ganhou projeção com Jungle, um disco de R&B maduro nas batidas, nas referências e no discurso. As inspirações lá são John Coltrane, Bad Brains, Shabba Ranks, Madlib, Chuck Berry, Miles Davis. Na obra, ele sampleia Racionais MC's e Erykah Badu.

Esse "recorta e cola" de ícones negros aponta para um som muito particular. "Eu faço questão de colocar as minhas referências nas minhas músicas, porque eu sei o valor que isso tem. Eu não estaria conversando com vocês aqui".

A lógica de produção de Fabriccio está muito atrelada ao rap e por isso essa chancela de nomes da cena o deixa tão orgulhoso. Ele explica um pouco o seu processo de criação. "Acho que tem a ver com esse jeito do rap, de produzir enclausurado, de se sentir mais livre pra experimentar". Fabriccio adotou também em sua música as colagens e todo o conceito aplicado ao rap.

Uma das características em Jungle é a presença de samples, como em "Foge Comigo", em que ele faz uma espécie de continuação de "Eu Te Proponho", música cantada por Mano Brown em "Cores e Valores", do Racionais MC's. Bem mais escancarado, ele sampleia em "Amor e Som" uma música da Erikah Badu, "Didn't Cha Know", que por sua vez sampleou a canção "Dreamflower", do Tarika Blue, um grupo de jazz fusion, lançado em 1977.

O cantor Fabriccio dá entrevista em estúdio no bairro paulistano do Jaguaré - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
O cantor Fabriccio dá entrevista em estúdio no bairro paulistano do Jaguaré
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Muitas das referências de Fabriccio também chegaram a partir desses samples, quase como uma colagem de colagem. Ele diz que conheceu Coltrane por causa de Racionais, Luiz Melodia por causa do Max de Castro, para pararmos em apenas dois exemplos.

Mas sua trajetória musical tem outras raízes. O músico começou tocando bateria em igreja evangélica e na adolescência circulou pela cena hardcore capixaba. "Eu comecei tocando batera, mas na adolescência eu comecei a tocar rock e minha função nas bandas era criar os riffs, sempre fui essa pessoa."

Ser negro fora do palco

Frases como: "compositor, pele preta, na rua a polícia me chama ladrão", da faixa "O Negro Quando Canta", que quase passa despercebida com a doçura de sua voz, são flechas certeiras no combate ao racismo e na denúncia contra crimes cometidos contra a população negra no Brasil. Ele conta a inspiração para este trecho da música. "Na saída de um rolê que a gente estava tocando eu fui abordado pela polícia. Nessa época eu estava trampando na noite, e o cara perguntou o que eu fazia. Eu falei que tocava, e ele já tinha me chamado de ladrão. Ele zombou disso. 'Isso é trabalho? Você, músico? Você vive disso?'."

O músico, que se despe um pouco da timidez em cima o palco, fala sobre como é difícil ser um homem negro e estar fora de cena. "É foda. Lá em cima tem essa defesa, porque tudo o que eu quero dizer e não consigo dizer o palco traduz melhor. Quando você sai dali é muito difícil, às vezes muita gente que gosta do som não entende sua vivência". Ele completa. "Isso é uma situação corriqueira, às vezes não como abordagem, mas no jeito que te tratam, até no pré-palco. É foda. É uma expectativa muito esquisita, um modelo muito pronto do que você é."

O Atlas da Violência de 2019, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), corrobora com o sentimento do cantor e aponta que "em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros". O estudo mostra ainda que em 10 anos, de 2007 a 2017, a taxa de homicídios de pessoas negras teve um aumento 10 vezes maior do que o de não-negros.

O cantor e compositor Fabriccio se protege do sol durante sessão de fotos - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
O cantor e compositor Fabriccio se protege do sol durante sessão de fotos
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Sobre esse sentimento de ter um alvo nas costas, o cantor diz evitar, por exemplo, passar perto de um prédio luxuoso nas cercanias da sua casa para evitar sofrer com o racismo. "Sempre alguém olha e muitas vezes até pergunta se eu moro lá."

O artista, que é do morro do Bela Vista, na capital do Espírito Santo, também fala com propriedade sobre a abordagem policial das polícias capixaba e paulista. "A de São Paulo é mais hostil. É mais pesado."

O cantor relembra o primeiro contato com a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). "Na minha primeira semana em São Paulo eu tive contato com essa polícia. Eu estava indo gravar o Jungle às 9h da manhã perto do metrô Jabaquara. Duas viaturas da Rota passaram por mim voando, eu estava fumando um cigarro de palha. Frearam já gritando. 'Você jogou fora'. E eu tentei explicar que era um cigarro de palha. Eu perdi 40 minutos de terror com a Rota". E completa. "Aí entendi que aqui é outro rolê. Que ali perto tem uma quebrada, um lugar menos favorecido, e ali eles se comportam diferente."

Um enquadro e uma muleta

Este sentimento de não-lugar que Fabriccio narra não se restringe apenas ao centro ou à zona sul, em bairros que são vistos como "descolados" também há desconforto. "Mas é foda sendo preto. Eu morei na Vila Madalena, e a galera que morava lá questionava minha presença. Eu estava lá todo dia gravando e questionavam se a chave era dali mesmo, porque eu tinha a chave. São Paulo é mais pesada por isso."

Apesar da hostilidade que a capital paulista pode trazer, Fabriccio fala com muito carinho sobre a capital paulista, cidade em que vive há cerca de dois anos. "São Paulo me deu a segurança de falar que sou cantor, produtor, que escrevo". Ele continua. "Aqui foi a primeira vez que eu entrei em um estúdio com as pessoas entendendo o que eu queria fazer, não torcendo a cara para colocar um sample". Ele conta também que a cidade foi mais receptiva com sua música. "Lá no Bela Vista as músicas do Jungle não batiam, eu não tinha com quem me comunicar. Aqui em São Paulo fui abraçado pela cena do rap, inclusive. Eu sou meio que cria dessa cena do rap de São Paulo também, eu consumi muito isso. Fui alfabetizado musicalmente com isso aí".

E com orgulho ele comenta alguns retornos que recebeu de seu trabalho: "Saber que o Don L ouviu foi louco demais. Saber que o [Mano] Brown também foi um diplominha. O Kamau ter ido ao show".

Sentado confortavelmente no sofá do estúdio no bairro do Jaguaré, na zona oeste de São Paulo, ao lado de sua guitarra Fender, modelo Telecaster branca e preta, Fabriccio, de forma direta, elenca suas lutas. "Minha pele já é uma bandeira". E conclui. "É importante não ser conivente com comportamentos nocivos e ultrapassados como homofobia e transfobia. Poder falar de amor, isso é difícil pra caralho. Poder falar de amor e uma mina preta conseguir ouvir o Jungle inteirinho sem se ofender, sem pular faixa. É difícil falar de amor de uma forma que não caia numa coisa muito boba ou de uma forma que eu não seja o cara que pá, faço o quê, dou um rolê."

Com o auxílio de suas melhores amigas desde abril, as muletas, ele se desloca lentamente para o estúdio com a timidez e tranquilidade que lhe são características. Sem falar muito começa a gravar breves trechos de guitarra e quase num mantra se perde entre os acordes e pensamentos do estúdio. Em breve sai um disco novo e ficaremos aqui com a curiosidade aguçada a espera do que Fabriccio pode nos presentear.

Ele ainda não dá detalhes do trabalho que está produzindo e o processo atrasou por alguns meses depois de um acidente numa travessa da Rua Clélia, na zona oeste de São Paulo. De bicicleta, Fabriccio foi atropelado e o resultado foi a ruptura do platô tibial (acima do joelho), seis pinos e duas placas de metal. O cantor está com a locomoção diminuída e ainda precisa do auxílio de muletas.

Fabriccio, com seu jeito quase frágil de se comunicar, fala também sobre encontrar seu caminho na música. "Eu quero criar a minha linguagem e quero que ela faça sentido pra todo mundo, quero que minha mãe ouça e ache legal mesmo sem gostar, mas que entenda como música."