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Cegos conseguem conhecer o Universo por meio de projeto de astrônomos

Réplica da Lua para cegos ou pessoas com baixa visão - Divulgação/ Universo Acessível
Réplica da Lua para cegos ou pessoas com baixa visão Imagem: Divulgação/ Universo Acessível

Kaluan Bernardo

Do TAB, em São Paulo

13/09/2019 14h02Atualizada em 20/09/2019 10h32

Pessoas que nunca viram o céu e nem faziam ideia de como é a lua tiveram a oportunidade de imaginá-la pela primeira vez graças a um grupo de astrônomos, terapeutas ocupacionais e designers que criaram o Universo Acessível, um projeto que pretende tornar a astronomia acessível a pessoas cegas.

O projeto foi criado por um grupo de nove astrônomos, artistas e designers do Observatório do Valongo, um dos mais antigos centros astronômicos do Brasil, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A ideia ganhou forma após um convênio da UFRJ com o Instituto Benjamin Constant que educa jovens com cegueira ou baixa visão. "A ideia inicial era deixar o observatório todo acessível. Mas após algumas visitas técnicas a escolas especiais, vimos que faltava material básico para o ensino de astronomia para cegos e pessoas com baixa visão. Então resolvemos fazer algo mais abrangente para todos", conta Silvia Lorenz Martins, professora de astronomia na UFRJ e coordenadora do Universo Acessível.

O primeiro passo foi a criação de uma réplica da Lua para os estudantes poderem imaginá-la pelo toque. Os especialistas passaram um ano e meio criando um modelo com 70 centímetros de diâmetro e, principalmente, muitos relevos. Com um mapa lunar, uma bola de isopor e papel machê, recriaram réplicas das crateras e das texturas lunares.

"Fizemos tudo o mais fiel possível aos mapas. Quando perguntamos às pessoas como era sentir a cratera pela primeira vez, descobrimos que eles nem sabiam que a Lua tinha crateras ou que era esférica", conta Erica Bhering, estudante de astronomia na UFRJ e uma das responsáveis pelo Universo Acessível. "Alguns chegavam a abraçar a Lua e chorar. É bem emocionante ver esse contato. Foi então que percebemos que precisaríamos levar conhecimentos ainda mais básicos." Os especialistas decidiram criar cadernos de astronomia para ensinar aos estudantes o movimento do Sol, da Lua, da Terra, o que são os eclipses, as estações do ano etc.

A matriz do material é feita com produtos de baixo orçamento como miçangas e papelão. Há um cuidado especial no uso de cores contrastantes e fontes específicas para ajudar aos alunos de baixa visão.

Caderno de astronomia para deficientes visuais - Divulgação/Universo Acessível - Divulgação/Universo Acessível
Caderno de astronomia para deficientes visuais
Imagem: Divulgação/Universo Acessível

Os astrônomos redigem o texto e simulam as texturas das imagens no caderno. Em seguida, passam para o corpo técnico do Instituto Benjamin Constant, que avaliam as imagens texturizadas e traduzem o texto para braile. Em seguida, a matriz é enviada para uma máquina que derrete folhas plásticas para criar um caderno com relevos.

"Doamos o projeto para que ele possa ser impresso à vontade e distribuído para qualquer lugar do Brasil", conta Silvia. "Quero distribuir esse material para outros observatórios astronômicos e bibliotecas para que mais pessoas cegas ou com baixa visão tenham acesso à astronomia", diz a professora.

O primeiro caderno fez tanto sucesso entre os estudantes que o experimentaram que a equipe rapidamente decidiu produzir uma segunda edição, apresentando o Sistema Solar e outros sistemas.

A equipe do Universo Acessível também está desenvolvendo kits com materiais básicos e guia de instruções para que outras escolas ou organizações possam recriar sua réplica da Lua para cegos e pessoas com baixa visão.

Cortes ameaçam projetos

Entre os profissionais que trabalham no projeto, três estudantes recebem uma bolsa-auxílio de R$ 400 da UFRJ. "Usamos as bolsas para poder custear questões básicas, como transporte e alguns itens", conta Erica. Ainda assim, muitas vezes estudantes e professores bancam o material com recursos próprios.

Em março de 2019, o Ministério da Educação chegou a anunciar o contingenciamento de 41% do orçamento da UFRJ. Recursos para investimentos em desenvolvimento de obras e compra de equipamentos de laboratórios e hospitais tiveram um bloqueio de 31%. Outros cortes de 30% foram feitos a programas de graduação, pós-graduação, capacitação de servidores públicos e pesquisas de extensão.

Estudantes da UFRJ envolvidos no Universo Acessível - Reprodução/Universo Acessível - Reprodução/Universo Acessível
Estudantes da UFRJ envolvidos no Universo Acessível
Imagem: Reprodução/Universo Acessível

Pela escassez de recursos, as bolsas dos três estudantes estão ameaçadas. "Elas deveriam ir até o final de 2020, mas a UFRJ já nos avisou que só tem como garanti-las até dezembro. Depois, não sabemos como será", comenta Erica.

"Estamos operando em média com 50% do orçamento de 2018. Está sendo difícil para manter o mínimo da operação. Vamos dar um jeito de continuar a oferecer tudo para o público, mas ainda não sabemos como isso nos afetará", diz Daniel Mello, astrônomo e coordenador dos projetos de extensão do Observatório do Valongo.

Além do programa Universo Acessível, o observatório oferece outros projetos ao público, como o curso de "astronomia para poetas", aulas de introdução à astronomia ou atividades para levar telescópios e planetários infláveis a escolas. "Temos mais de dez programas de extensão em atividade. São divulgação científica. É algo que surgiu já na década de 1950 e tem se intensificado desde os anos 2000", diz Mello.

Silvia defende que projetos de divulgação de ciência básica, como os desenvolvidos pelo Observatório do Valongo, são importantes para o desenvolvimento do país. "A astronomia, além de ser importante para o conhecimento como um todo, abre portas para atrair pessoas para outras áreas estratégicas da ciência. Deter conhecimento de ciência básica é essencial para desenvolver a soberania nacional. Todo esse conhecimento se conecta a temas amplos e gerais importantes para a economia, mas também para respostas sobre nossa existência", diz.

A professora reforça que, com projetos como o Universo Acessível, o atrativo da ciência é expandido. "Quando levamos o material para o Benjamin Constant, duas meninas que estavam ficando cegas vieram nos dizer que queriam virar cientistas. Havia um professor de física na Unicamp, que também era cego. Esse tipo de iniciativa mostra que é possível a todos". Para acompanhar o projeto, você pode segui-lo no Facebook.