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Por que os homens rebolam mais do que as mulheres no brega-funk do Recife?

San do Passinho, dançarino de brega-funk de Recife com milhares de seguidores - Manoel Marcos/Divulgação
San do Passinho, dançarino de brega-funk de Recife com milhares de seguidores Imagem: Manoel Marcos/Divulgação

Mateus Araújo

Colaboração para o TAB, em São Paulo

01/10/2019 04h00

Em bailes de São Paulo, a maioria dos manos capricha na pose, de preferência de braços cruzados. No Rio, o pé é o protagonista do passinho local. Já no Recife, a pélvis é sem freio, e os homens estão rebolando mais que as mulheres, escancarando as diferentes masculinidades pelo país.

"Pra quem não me conhece, satisfação", escreve San na legenda de uma das suas 300 fotos postadas no Instagram. Mais de 90 mil pessoas seguem o rapaz na rede social - 3 mil delas curtem a foto, outras 50 comentam. "Monstro, papai", diz um seguidor. "Lindo amigo que deus abençoe vc sempre", emenda um segundo.

Aos 19 anos, San, que antes só se preocupava em estudar e jogar bola nas ruas de Água Fria, bairro da periferia do Recife, agora vive ares de celebridade digital. San do Passinho, como é conhecido, ganhou fama de forma inesperada, em agosto de 2018, depois de postar um vídeo caseiro com outros amigos dançando o brega-funk Gera Bactéria, dos MC's Shevchenko e Elloco.

A coreografia viralizou, e o grupo, batizado de Os Lokos, foi contratado para acompanhar a dupla de cantores nos shows. San, Naldinho, Biel e Lön fazem aproximadamente dez apresentações por fim de semana.

Pra quem não min conheçe Satisfação san do passinho

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"Os meninos fizeram a dança. Não tinha celular, aí me chamaram para eu gravar. A gente fez o clipe e colocou na internet. Depois viramos bailarinos", explica San, autoproclamado o "Rei da Brecadeira". O substantivo que, assim como "pentada" ou "bengada", faz referência a um dos passos em que se adapta a famosa sarrada com gestos compassados no ritmo da música. Alguns homens até dançam sem cueca, para realçar a coreografia.

O passinho faz parte da cena brega-funk da cidade, um fenômeno saído das favelas e estourado no Brasil - mistura entre o funk carioca e o brega pernambucano, marcado pelas batidas dançantes e letras bem humoradas, algumas de duplo sentido e cunho sexual.

Apesar de ter o mesmo nome que o passinho de São Paulo, a dança do Recife é bem diferente da homônima paulista - centrada mais nas pernas em movimentos rápidos, em ziguezague. Entre os recifenses, a influência maior foi do quadradinho do MC Dynho Alves, sul-mato-grossense radicado em São Paulo, que remexe a pélvis e a cintura.

Além da música, o passinho recifense tem se tornado também um estilo de comportamento, sobretudo entre os homens jovens que traduzem em coreografias símbolos de uma masculinidade sensual, ostentadora e falocêntrica. É o estilo "maloka", jeito bem recifense de se referir a "maloqueiro".

- Eu vou tacar Assim Msm @mcbaladatropa_ @reidobregaofc @tocahit

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"O povo sempre fica olhando a gente dançar. É legal dançar, é uma música gostosa. E dança jovem, criança, gente velha. Todo mundo", afirma San. A visibilidade é tanta que os dançarinos ficaram mais famosos que os próprios vocalistas das bandas, em alguns casos tornando-se as estrelas dos clipes e das apresentações.

"Não pode faltar a bingada para frente"

Sem camisa, corrente de prata no pescoço, uma ajeitada na bermuda para mostrar mais as coxas e aumentar o volume entre as pernas, leve flexionada dos joelhos, cara sensual e tome "pentada". Esse mise-en-scène é praxe. Talvez você até encontre semelhança com coreografias de gogo-boys.

As referências sexuais, porém, são herança de algumas danças populares, como o forró e o samba, explica o professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) Thiago Soares, que pesquisa cultura pop. "São coreografias que evocam o coito, uma lógica de provocação e sexualização dessa forma de dançar", diz.

"Antes de classificar como algo hipersexualizado ou trazer à tona um olhar a meu ver excessivamente moral para esse tipo de dança, é importante pensar a existência das danças que são feitas a partir da relação com o corpo, a pélvis e a bunda", alerta Soares. "As danças populares têm a ver com esse tipo de formatação, de construção do corpo ligado a lógicas mais dionisíacas."

Embora haja ligação com o funk, o requebrado do atual brega recifense está ligado à swingueira, ou pagode baiano, que já fez muito sucesso nos anos 1990 com dançarinos como Edson Cardoso — o Jacaré do É o Tchan —- e Xanddy, do Harmonia do Samba. Muitos dos bailarinos do brega-funk começaram a experimentar os primeiros passos sensuais com a moda baiana que chegou a Pernambuco. Foi assim com San, nas festas da comunidade, e também com Claudinho, de 23 anos. "Comecei a dançar swingueira nas bandas, mas aí o negócio começou a morgar [desaparecer], e chegou o passinho", lembra.

No caso dele, a relação com dança é mais antiga. Morador da comunidade Chão de Estrelas, na periferia de Olinda, o rapaz começou a dançar aos 11 anos. Fez aulas de dança afro e contemporânea. Precisou até lidar com preconceito, mas não ligou. "É raro homem dançar. Agora os homens 'tão dançando por causa do passinho. O povo antes discriminava, algumas turmas diziam que eu era frango porque dançava. Depois entenderam que dança não era só para mulher." Desde 2014, porém, San entrou para o brega, e atualmente faz parte do balé do MC Pedrinho.

"Rei da Tremedeira", pela forma vertiginosa como chacoalha os ombros, Claudinho diz que faz sucesso porque é bem carismático. Também não hesita em se exibir. "De vez em quando, tiro a camisa nos shows. Mas o empresário disse que agora não pode mais, porque uns contratantes acham ruim. Aí varia. Quando ele [o empresário] deixa, eu tiro."

Não Para Neguin

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Com camisa ou sem camisa, a regra é clara. "Tem que ter o molejo no corpo. Desenvolver os passos. E não pode faltar a bingada para frente. Se não tiver, não é o passinho. E a bermuda também tem que ser mole, que mostra o 'volume'", diz o bailarino.

Parcerias via direct

A internet é aliada do sucesso dos dançarinos de passinho, alçados a influenciadores digitais nas suas próprias comunidades. Todos eles, no Instagram, escrevem nos perfis que estão dispostos a negociar patrocínio e postagens pagas. San do Passinho, com seus 90 mil seguidores, por exemplo, é garoto-propaganda de uma lanchonete, e Claudinho, com 14 mil, divulga a academia onde malha.

Filão em que Jefferson Silva, G Move, de 23 anos, precisa apostar mais. Bailarino e coreógrafo, líder do balé do MC Dadá Boladão, um dos mais conhecidos cantores de brega-funk da capital pernambucana, Move diz que está "devendo muito aos seguidores". "Meu celular teve um problema na câmera, e não estou conseguindo gravar muitos vídeos. Às vezes, pago pra um amigo me ajudar. Mas tenho muita coisa para oferecer a meus seguidores", conta.

G Move mora na mesma comunidade de Claudinho, e começou a dançar aos 9 anos. A trajetória dos dois dançarinos é parecida: da dança afro eles passaram para a swingueira, e, em seguida, foram para o brega-funk. "Há três anos, recebi o convite de Dadá para dançar com ele", conta.

Para ele, o passinho é experimentação e tenta associar as coreografias sensuais do passinho à moda que curte. Na dança, inclui movimentos do frevo, do samba e do pop, e no estilo, procura "uma linha mais social". "Faço um tipo mais avançado. A dança tem figurinos da moda profissional, mesmo. Uma roupa mais social e com bastante estampa", exemplifica.

Segundo o dançarino, o visual se soma à sensualidade da dança. "O passinho é másculo", garante. E a paquera faz parte: "Você tá na frente do palco, é muita mulherada em cima mesmo. Tem muita paquera dos dois lados [tanto de homem quanto de mulher]. Mas a gente leva como o trabalho profissional da gente, eu não misturo. Fã é fã, trabalho."

Balé de homem

A presença dos homens no passinho do maloka inaugurou um comportamento novo no brega-funk, em que os balés eram ocupados em maioria por mulheres.

Para Gabriel Albuquerque, jornalista e pesquisador da UFPE, essa mudança reflete uma maior abertura do homem ao seu corpo e à dança. "Na mídia, víamos a mulher dançar até a boca da garrafa. Os homens assistiam. E basta ir numa festa qualquer para ver que os homens mais balançam do que dançam. O passinho é uma dança majoritariamente masculina, que pode ser simples ou megavirtuosa, convocando qualquer homem a expressar o modo como ele percebe o som pelo corpo. É um modo de liberação", diz.

Jeferson Silva, o G Move, é um dos dançarinos da cena do brega-funk do Recife - Instagram - Instagram
Jeferson Silva, o G Move, é um dos dançarinos da cena do brega-funk do Recife
Imagem: Instagram

O passinho dos malokas do Recife não é uma afirmação da sexualidade, mas a teatralização dela, segundo Albuquerque. "O movimento pélvico é apenas um elemento básico da dança. Há muitos outros passos, que são até mais valorizados na comunidade de dançarinos exatamente porque são mais raros, mais inventivos e mais difíceis", afirma o pesquisador, como a girada de pescoço e os jogos de ombros. O mesmo serve para os roteiros criados nos vídeos, incluindo até planos-sequência das câmeras.

"No passinho dos maloka ocorre a 'celebritização' de corpos que estão fora dos padrões sociais de beleza', acrescenta Gabriel Albuquerque. É o caso da predominância de dançarinos franzinos.

Esses deslocamentos de padrão possibilitam também a reapropriação do brega-funk por outros públicos fora do padrão heteronormativo, fazendo sucesso inclusive em festas LGBT, onde os MCs se apresentam. O que, segundo Thiago Soares, é uma ressignificação da cena através dos corpos: "a dança vaza muito mais. Começa a habitar outros corpos e falar de outros sentidos".

Sobre isso, Gabriel Albuquerque lembra que gays e lésbicas são parte importante do brega-funk e estão sempre presentes em qualquer festa, "sem maiores discriminações". "Os MCs, que muitas vezes se apresentam em festas definidas como LGBTQ+, sabem disso e por vezes se manifestam em apoio aos homossexuais nas redes sociais", diz. "Embora esteja em início de carreira, [a cantora trans] Byanka Nicoli está caminhando para se tornar a primeira MC ícone LGBTQ+ do brega-funk."