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Por que os millennials e a geração Z nunca atendem telefone

Jovens usam seus smartphones (para tudo, menos para falar ao telefone) na baia de Singapura - AFP
Jovens usam seus smartphones (para tudo, menos para falar ao telefone) na baia de Singapura Imagem: AFP

Letícia Naísa

Do TAB, em São Paulo

15/10/2019 04h00

Os anos 1990 e a nostalgia podem estar de volta à moda, mas se tem uma coisa que não pega mais são as ligações telefônicas. Entre os millennials e a geração Z, telefone não está com nada. Linhas fixas são coisa rara, e os celulares já têm aplicativos que bloqueiam ligações de desconhecidos e acusam ligações de telemarketing como spam, facilitando a decisão de não atender. Se a ligação direta já ficou difícil, imagine a ligação urbana. Não tem mais gente pra ligar nos poucos orelhões das cidades.

No Brasil, com uma população de 209 milhões de habitantes, há mais de 228 milhões de celulares ativos, segundo a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). Se quase todo brasileiro tem um celular, por que raios os jovens não atendem quando ele toca?

"Sempre senti incômodo em falar ao telefone, não sei o que é direito, mas não tenho isso quando troco mensagens", conta ao TAB o engenheiro de dados Vinícius Barros, 35. "Quando preciso ligar pra alguém, fico angustiado. Na minha cabeça, vou estar incomodando a pessoa da mesma forma que eu me sinto incomodado quando me ligam", escreveu à reportagem — a entrevista foi por email.

Hoje, adolescentes e jovens adultos já não se telefonam para saber como estão nem para contar um sonho. Eles mandam um zap. E, se apertar a vontade de ouvir uma voz, enviam mensagem de áudio ou fazem videochamada. "O que não é melhor nem pior do que antigamente, apenas diferente", brinca o antropólogo Michel Alcoforado, sócio-diretor da Consumoteca, que pesquisa hábitos da geração Z na América Latina. "Estamos lidando com uma nova dimensão da linguagem, em que as palavras têm uma força que é completamente da entonação, do ritmo, da respiração, do gesto que a comunicação face a face proporciona, e isso tem um impacto na comunicação."

Para Alcoforado, chats e aplicativos de mensagens permitem às pessoas pensarem antes de falar. "Esse controle da persona se dá muito mais fácil quando a gente tem uma conversa por escrito do que numa conversa ao vivo", afirma. A sensação de falar exatamente o que se quis dizer é um fator importante, que explica o medo que os jovens têm de dizer alô.

"Acho que parte das inseguranças ficam pra trás", diz a analista de projetos Larissa Moura, 24. "Sabe quando o boy responde aí você manda pra sua melhor amiga e vocês pensam na resposta juntas hahaha", escreveu ao TAB, durante uma conversa por WhatsApp.

O que está acontecendo no século 21 é a invenção de uma nova forma de se comunicar, uma nova sociabilidade, diz Alcoforado, pautada pelo celular e pela palavra escrita. A geração Y (millennials para alguns) foi a primeira a crescer com internet e linha móvel e, por isso, vive em outro ritmo, diferente das gerações anteriores. As pessoas nascidas entre 1981 e 1994 foram as primeiras a usar o celular como ferramenta de trabalho e, para a psicanalista Rebeca de Moraes, sócia-fundadora da consultoria de tendências trop.soledad, isso faz toda a diferença.

"A gente trabalha o tempo todo, ficamos no celular o tempo todo, então toda ligação é entendida como uma demanda que precisa ser atendida", afirma Moraes. "Estamos pouco preparados emocionalmente e psicologicamente para um mundo em que temos que responder demandas o tempo inteiro. Os millennials trazem esse dilema, podemos ser encontrados em qualquer lugar, mas não necessariamente estamos preparados para atender demandas em qualquer lugar."

Jovens enfrentam fila em Nova York (EUA) se distraindo com seus smartphones - AFP - AFP
Jovens enfrentam fila em Nova York (EUA) se distraindo com seus smartphones
Imagem: AFP

Quando Barros era criança, nos anos 1990, não existia o celular, então todos eram obrigados a ligar no telefone fixo e tentar a sorte. Hoje, estamos todos, tecnicamente, sempre prontos para atender um chamado. "Isso é um problema. Eu não quero e não fico disponível o tempo todo para todos", diz. Uma pesquisa nos Estados Unidos apontou que 75% dos millennials ignoram ligações por consumirem muito tempo.

Para evitar falar ao telefone, o engenheiro Vinícius Barros tenta resolver tudo por email, WhatsApp, Telegram, aplicativos e, no limite, videochamadas. Sempre tentando ser sucinto. Recentemente, Barros comprou um novo celular pela internet e teve um problema na entrega. "Deu pau no sistema deles e eles não processam minha compra e estou brigando com eles e sem celular até agora. Tenho exigido que toda comunicação seja feita por email", diz.

Conexão ininterrupta

Uma mensagem de texto ou um email pode ser respondido a qualquer hora. Uma ligação telefônica exige tempo e energia que poucos têm. Larissa Moura prefere resolver tudo por mensagem de WhatsApp e pelo Instagram, inclusive a vida amorosa. Durante uma festa, trocou número de telefone com um rapaz que gostava de ouvir sua voz. "Ele era bem poético, amava me ligar hahaha", contou. "Mas eu estava na faculdade, no meio do ônibus. Aí pedi pra ele me avisar antes de ligar. E ele nunca mais ligou hahahaha."

Usuária do Tinder, Moura diz que "desenrola" pessoalmente com quem bate papo no app e jura que é uma boa pessoa. "Não gostar de falar no telefone não quer dizer que eu seja antipática pessoalmente, não tenho dificuldade em me relacionar", afirma. "Acho que o fato de a rotina das pessoas ter mudado, muita correria sempre, é difícil sentar e conversar um tempão com alguém", opina.

Para Alcoforado, a tecnologia, as redes sociais e aplicativos fizeram as novas gerações perderem o valor do chamado tempo ibérico. "Sérgio Buarque de Holanda dizia que na América brasileira e na Península Ibérica, a gente tinha o tempo ibérico, a gente se permitia durante muito tempo ficar em contato com o outro sem motivo pragmático. Sentado olhando a rua, jogando conversa fora. Nos outros países, isso não existia. Toda conversa tinha que dizer alguma coisa. Mas hoje a gente não tem mais paciência para isso", diz. "A conversa por chat permite isso. Toda conversa tem um fim, e ela é finalizada sabendo-se que o fim foi alcançado. Na conversa pelo telefone, a gente perde essa dimensão da clareza porque a gente acaba emendando assuntos com assuntos."

No entanto, ao contrário da crença mais ou menos estabelecida de que a tecnologia aproxima quem está longe e afasta quem está perto, uma pesquisa feita pelo trop.soledad aponta que, na América Latina, quem está conectado pela rede se sente ainda mais parte do mundo. No Brasil, 63% dos entrevistados se sentem satisfeitos com o tempo que passam no celular. Entre os latino-americanos, o número é maior: 67% se sentem mais conectados ao mundo e às pessoas, ao usar o smartphone.

"Quanto mais tempo no celular, mais a gente se considera em contato com os outros. Faz sentido, porque passamos muito mais tempo conversando com outras pessoas durante o dia. Isso gera mais conexões e de outros tipos. Gera outras relações", afirma Moraes. "Já o telefone virou o lugar das cobranças", diz.

Jovens usam celular para quase tudo, menos para ligar para as outras pessoas - Folhapress - Folhapress
Jovens usam celular para quase tudo, menos para ligar para as outras pessoas
Imagem: Folhapress

Em 2019, o telefone fixo virou um objeto parado dentro de casa que consome energia elétrica e que, quando toca, é telemarketing, define Alcoforado. Por isso, vem caindo anualmente o número de linhas fixas ativas no país. Atualmente, há pouco mais de 35 milhões de linhas fixas ativas, segundo a Anatel. Em média, o brasileiro gastou 85 minutos ao telefone durante o primeiro trimestre de 2019, segundo a Anatel. Já o gasto em dados móveis no mesmo período chegou a 1.821 MB por pessoa, um número que vem crescendo bastante. Em 2016, o gasto foi de 383 MB por usuário.

"Tem essa peculiaridade no mercado brasileiro: o alto custo da telefonia e os planos que têm WhatsApp gratuito. Existe um jeito de se comunicar que me permite ser pragmático e me traz uma possibilidade de dar conta de ser quem o outro espera que eu seja, traz uma reciprocidade muito grande para a comunicação e, ao mesmo tempo, não custa nada", explica Alcoforado.