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Por que Bolsonaro e Trump estão incensando o novo disco do Kanye West?

Show de Kanye West no Festival Coachella, em abril de 2019 - Rozette Rago/The New York Times
Show de Kanye West no Festival Coachella, em abril de 2019 Imagem: Rozette Rago/The New York Times

Matheus Pichonelli

Colaboração para o TAB

05/11/2019 04h00

Nem todos foram pegos de surpresa. Em 26 de outubro, ao menos uma pessoa já dizia no Twitter, em tom de ironia, que estava só esperando o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) recomendar o último disco do Kanye West.

Na véspera, o rapper americano havia lançado o álbum "Jesus is King", com 11 faixas de temática religiosa que coroavam a conversão cristã do artista marcado até então por uma trajetória, digamos, mais mundana.

Dito e feito: em 1º de novembro, o filho do presidente Jair Bolsonaro, que um dia antes causara polêmica ao defender um novo AI-5 para conter uma possível radicalização da esquerda no Brasil, escreveu no Twitter:

No tuíte, o 03 compartilhou o link da faixa "Follow God" (Siga a Deus), em que o rapper anuncia: "Estou realmente tentando não fazer o caminho da tolice".
A postagem teve 3 mil retweets, 16,1 mil curtidas e, claro, muita polêmica. "Claramente não entendeu a porra da discussão", respondeu uma seguidora. "Esse som não é para você, seu racista", encerrou.

A recomendação do deputado federal era uma cópia barata de um tuíte postado por Donald Trump Jr., na qual o filho do presidente americano — e ídolo da família Bolsonaro — dizia que Kanye West havia decifrado o código da cultura e atingido a epítome da criatividade sem medo e das ideias "perigosas e não aprovadas". "Os esquerdistas sempre tentam silenciar aqueles que estão falando a verdade. Eles estão travando uma guerra contra nossa família e cultura. Kanye é pioneiro", sentenciou.

A mensagem era praticamente uma troca de anéis de um namoro iniciado meses antes, quando o rapper visitou o presidente na Casa Branca e vestiu o boné vermelho com o slogan "America First", que marcou a campanha de Donald Trump - sim, o mesmo boné que Eduardo Bolsonaro usou após se encontrar com o ídolo.

Assim como acontece no Brasil, nos EUA são raros os artistas de destaque que manifestam apoio ao governo local. Kanye West, o rapper mais aclamado de sua geração, era uma espécie de troféu a um presidente que se tornou o alvo preferencial em eventos como o da entrega do Oscar.

Há cerca de um ano, porém, o rapper, que já revelou sofrer de transtorno bipolar, deu a entender que foi usado pelo republicano, a quem já se referiu como "figura paterna", para espalhar mensagens políticas que não compartilha. "Meus olhos agora estão bem abertos e percebo que me acostumei a espalhar mensagens em que não acredito. Estou me distanciando da política e focando completamente em ser artisticamente criativo", escreveu ele no Twitter. Na ocasião, West manifestou apoio também ao controle de armas em território americano, em oposição a uma das principais bandeiras do governo Trump.

Música negra e representação

Os sinais trocados da relação entre o rapper e a família Trump dificultam qualquer análise sobre os que une e o que os distanciam hoje. Kanye West seria, afinal, o pivô de um possível sequestro do cristianismo e da música negra por parte de um movimento político com notória identificação com movimentos supremacistas?

Autor do livro "A indústria da música gospel" e do site RAPresentando, o jornalista Adailton Moura diz ao TAB não acreditar que os filhos de Trump e Bolsonaro estejam se apropriando da música em si, mas que eles encontraram uma forma de usá-la para dizer aos seus seguidores que Kanye West, mesmo sendo negro e rapper, tem abraçado suas bandeiras.

A "capitalização" do álbum causa revolta, segundo ele, porque tanto Trump quanto Bolsonaro usam as palavras do artista como se fossem representativas de toda a comunidade negra, que majoritariamente se opõe a ambos.

Ele lembra que "Ye" (apelido de Kanye e também nome de seu álbum de 2018) já fez discursos contrários à militância negra, dizendo que a escravidão foi uma escolha dos próprios negros e que tratar de questões raciais é uma forma de escravidão mental. "Essas visões são usadas pela direita conservadora, pois é um artista negro altamente relevante falando sobre o assunto. Muitos negros têm questionado esses posicionamentos. Apesar de curtirem a obra, desaprovam tudo que ele tem falado", diz o autor.

O especialista diz que não considera "Jesus is King" um álbum gospel, como o "gospel original" que Ye tem feito nos encontros Sunday Service. "Antes de lançar o disco ele fez vários encontros, passou por várias igrejas, mas com outro estilo musical, valorizando mais o coral, mais o gospel raiz mesmo. O disco mesmo tem uma proposta diferente, que é o rap que ele já faz há um bom tempo, com outra temática. Ele falava de outras coisas, de sexo, tudo mais. Ele transformou isso em letras religiosas. Não é nada revolucionário, mas tem o peso por ser o Kanye West.

Quando ele faz essa mudança brusca, começa a ter outra visão sobre o trabalho dele. A galera se pergunta para que caminho ele está andando e onde quer chegar. Ele vai manter isso ou daqui uns meses vai mudar o discurso? Fica todo mundo sem entender. Mas é um produtor e um artista genial", diz.

Ele lembra que outros rappers cristãos têm feito o mesmo. "Lecrae (Moore) é o maior exemplo. Mas acho um trabalho relevante que consegue fazer a ponte entre cristãos e não cristãos, assim como fizeram Aretha Franklin, Sister Rosetta Tharpe e Elvis Presley. Se a mesma coisa tivesse acontecido com um artista com menos relevância, não teria tido toda essa repercussão", completa.

Made for America

Para Nerie Bento, diretora da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop, o álbum foi pensado para impactar a comunidade negra dos EUA. "Ela é protestante, em sua maioria. Mas essas comunidades não estão desconectadas da luta pelos direitos civis. Aí a gente vê Kanye West dizendo que escravidão foi culpa dos negros."

A ativista diz observar no álbum um "complexo de Deus". "Ele deseja se transformar em um enviado de Deus. Tem uma estratégia acima disso, que é, possivelmente, ele se candidatar futuramente."

West, vale lembrar, já declarou que é o maior artista de todos os tempos e que um dia será eleito presidente. "O que aconteceu, conhecendo a discografia do Kanye West, é que ele quis promover o disco através da família Trump. Não duvido que tenha sido uma ideia dos empresários dele. E a família Bolsonaro, com sua síndrome de vira-lata, só reproduziu [o tuíte de Donald Trump Jr]."

Ela diz não ver nos tuítes dos herdeiros uma tentativa de apropriação. "Apropriação, cultural ou da indústria da música, só acontece quando a pessoa quer fazer um gerenciamento de crise ou um gerenciamento de imagem. E aí ela acha que vai atingir um público específico. Fazendo isso, eles (Trump Jr. e Bolsonaro) não vão atingir nem os cristãos nem a comunidade negra. Não existe essa possibilidade. Há pessoas negras de extrema-direita? Sim. Mas isso não vai mudar. Não é igual 'black money' ou 'pink money', em que artistas usam pautas pretas pra poder vender, ou uma Anitta da vida, que mete um LGBT no meio pra ganhar dinheiro. Da família Bolsonaro, é só para 'babar ovo', mesmo", diz.

Nerie classifica West como um rapper misógino, que cria seitas dentro da família e coloca as mulheres em posição subalterna. "As condutas são questionáveis, e a comunidade negra sabe disso. Não seria estratégico usar isso politicamente."

Segundo ela, West tenta mostrar aos EUA que é possível criar conexão entre pessoas pretas e brancas. "Isso em prol, entre aspas, das pessoas pretas."
Um exemplo é quando ele e a companheira, Kim Kardashian, pedem a Donald Trump o perdão a uma mulher americana de 63 anos que cumpria prisão perpétua no país. Ele e o mandatário, inclusive, já discutiram sobre o sistema prisional americano.

"É uma forma de mostrar que Trump não é inimigo, que é preciso desracializar as questões. Talvez ele queira ser um novo Martin Luther King. O segredo é usar a música gospel como recurso para dialogar com as comunidades negras." A liderança aponta, porém, que quando dois homens brancos, de extrema direita, compartilham o álbum de um homem negro, e um álbum com temática gospel, "ali já se delimita que não existe um diálogo racial". "Se fosse alguém com mais consciência que o Kanye West, eles não teriam feito isso."

Ela diz ainda que "Jesus is King" traz a religiosidade pela perspectiva de uma conexão individual. "As pessoas falam de Jesus e se esquecem dos ensinamentos cristãos, que são voltados ao social. Isso destoa totalmente das pessoas envolvidas na discussão", completa.

Artista inclassificável

O que parece ser unanimidade, além do talento do artista, é a complexidade do personagem. Eduardo Ribas, jornalista e criador do site de conteúdo e podcast Per Raps e um dos jurados do Prêmio Multishow de Música 2019, lembra que em um passado não tão distante o próprio Kanye apresentou uma postura combativa frente ao republicano George W. Bush, após a tragédia do furacão Katrina.

"Diferentemente do seu grande parceiro, que hoje está brigado com ele, Jay-Z, Kanye não traz tanto engajamento racial e político em suas letras, se restringindo a algumas tiradas, que foram ficando mais escassas. Ele disse em uma premiação que concorreria à Presidência em 2020, mas muitos viram como piada, e eu sinceramente não vejo isso acontecendo".

Ele afirma que a associação com Trump se estreitou no momento em que enfrentou uma fase difícil em relação à sua saúde mental. "Ele talvez não esteja notando que está se afastando de sua base de fãs e se aproximando de pessoas que se interessam apenas pelo que ele produz, o que ele entrega ao mundo. Isso esvazia sua obra e o torna substituível, tudo que ele aparenta não querer ser", diz.

Ribas escreve sobre os discos do Kanye desde 2008, quando o artista lançou seu quarto álbum, "808 & Heartbreak" - "mais cantado, cheio de autotune [recurso eletrônico que "corrige" a performance vocal] e trazendo um artista com o coração partido".

Segundo ele, observar essas oscilações de discurso é interessante e bem curioso, "mas ver que sua música está sendo referenciada por um símbolo da extrema direita me deixa confuso e decepcionado". "Conservadores geralmente se apegam à religião e vejo que a fala aqui vem mais nesse sentido, também tentando roubar um pouco do protagonismo do Kanye, que não tem ajudado estando próximo de Trump. Como o filho do atual presidente é ligado à religião e tem Trump como uma grande referência, infelizmente me parece natural que essa fala tenha ocorrido", prossegue Ribas.

Ainda assim ele se diz espantado, já que Kanye West veio do rap — estilo de música combativo e transgressor por essência, jamais conservador e reacionário — apesar de tentativas recentes de apropriação do movimento. "É preciso respeitar a história da cultura hip-hop, que vem por trás da música rap."