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Com premiado 'Parasita', Coreia do Sul espalha seu 'soft power' pelo mundo

Filme "Parasita", do coreano Bong Joon-ho (2019) - Reprodução
Filme "Parasita", do coreano Bong Joon-ho (2019) Imagem: Reprodução

Cláudio Gabriel

Colaboração para o TAB

07/11/2019 04h00

Quando "Parasita" foi coroado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, um projeto de 25 anos foi premiado junto. O novo filme do diretor coreano Bong Joon-ho, que estreia no Brasil nesta quinta (7), fez história e conquistou a crítica no maior festival de cinema do mundo. Essa foi apenas a coroação de um momento já glorioso na sétima arte do país.

Segundo dados do KoreanFilm.or, a audiência do longa em seu país natal foi de 10 milhões de telespectadores, cerca de 20% de toda a população. Um em cada 5 coreanos assistiu a "Parasita".

É surpreendente que, em pouco mais de duas décadas, a Coreia tenha conquistado tamanho público doméstico e força internacional. Parte desse sucesso se explica pelos investimentos governamentais em produção audiovisual, que fideliza público local, e prepara os filmes para o mercado internacional, e a capacidade dos cineastas em elaborar roteiros de gênero misto e flertar com o cinema de autor.

O susto do dinossauro

Em 1994, o "caso Jurassic Park" colocou a indústria sul-coreana de audiovisual em alerta. Nos três meses em que ficou em cartaz, a obra de Steven Spielberg dominou as salas de exibição.

Ato contínuo, o presidente Kim Young-Sam resolveu lançar as bases das primeiras medidas de financiamento do cinema coreano. A Lei do Audiovisual, de 1995, tinha por objetivo criar um fundo de investimento, além de oferecer incentivos fiscais ao setor. No mesmo ano, foi criado ainda o Departamento de Indústria da Cultura.

Foi um projeto de sucesso. Segundo a tese de doutorado de Luana Rufino, esse primeiro momento foi chamado de "Learning from Hollywood" (Aprendendo de Hollywood). Rufino, que é superintendente de análise de mercado da Ancine, também produziu um relatório sobre o mercado sul-coreano. "A bem-sucedida experiência sul-coreana no audiovisual", de 2018, relata que, no espaço de 20 anos (entre 1994 e 2014), a produção local saltou de 2,1% para 57% das produções exibidas no país. A título de comparação, a França, que investe mais pesado em audiovisual, registrou, em 2014, 36,8%. Só EUA e Índia (lar do fenômeno Bollywood) consomem tanto cinema doméstico assim.

Filme "Oldboy", do diretor Park Chan-Wook (2005) - Reprodução - Reprodução
Filme "Oldboy", do diretor Park Chan-Wook (2005)
Imagem: Reprodução

"A força de exportação da cultura pop sul-coreana teve início no final dos anos 1990, e já em 1997 foi consagrada como um fenômeno cultural, nomeada como 'a onda coreana', 'hallyu' pela imprensa chinesa", conta ao TAB Daniela Mazur, doutoranda em Comunicação pela UFF (Universidade Federal Fluminense). "Foi apenas no início dos anos 2010 que o potencial da onda coreana se expandiu concretamente para países além-Ásia."

A indústria audiovisual passou a receber investimento pesado das grandes corporações familiares, intituladas "Chaebols". Empresas como Samsung e Hyundai, por exemplo, viraram investidoras de peso, interessadas em isenção fiscal, aos moldes da Lei Rouanet. O modelo se solidificou até a crise econômica de 1997 balançá-lo.

Mudanças pós-crise

A crise asiática se tornaria um sério entrave ao desenvolvimento da região e desacelerou a economia dos Tigres Asiáticos. A Coreia do Sul teve de pedir emprestados US$ 57 bilhões ao FMI (Fundo Monetário Internacional), e grandes corporações locais decidiram procurar outros mercados.

Conhecido até hoje como "Presidente da Cultura", Kim Dae-jung, que governou o país de 1998 a 2003, enxergava a indústria criativa e do entretenimento como uma via de crescimento para o país. Se o investimento anterior do PIB na área cultural era cerca de 0,4%, sob Dae-jung o montante passou a ser de 1%. A ideia era fazer essa indústria liderar um novo momento econômico na Coreia. Hoje, os números voltaram ao patamar de 0,4% (no Brasil, indústria criativa e de entretenimento recebem 0,02% do PIB).

Mas as bases para a expansão estavam lançadas. O país, até então pouco reconhecido mundialmente pelo seu cinema, começava a colher os primeiros resultados devido a essas políticas. Um levantamento feito pelo TAB mostrou como a participação dos filmes coreanos nos principais festivais de cinema (Cannes, Veneza e Berlim) passou de esporádica a muito frequente. No Festival de Veneza, por exemplo, a Coreia aparece em quase todos os anos, desde 1999. Em Cannes, só não houve participação em 2000.

Os grandes nomes da virada

Dois grandes realizadores despontam no mercado: Kim Ki-duk e Park Chan-wook. O trabalho dos dois explora uma variedade de gêneros, algo bastante acentuado na produção do país. Ki-duk foca o lado dramático e uma busca existencialista/contemplativa, como em "Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera", de 2003. Chan-wook é o realizador do grande sucesso "Oldboy", também de 2003. Em caminho narrativo contrário, o diretor apostou ali em uma ação desenfreada e trama repleta de suspense. A obra chegou a ser escolhida como melhor filme do ano pela associação de críticos de Busan, na Coreia.

Filme 'Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera' (2003) - Reprodução - Reprodução
Filme 'Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera' (2003)
Imagem: Reprodução

Impossível também não destacar a participação de Bong Joon-ho na indústria coreana. Seu longa "Memórias de um Assassino", também de 2003, deixa evidente que o thriller policial seria um dos gêneros fortes da onda coreana.

Como conta Jéssica Gonzatto, diretora, roteirista e sócia do Writer's Room 51, e especialista em cinema coreano pelo grupo de Estudos Coreanos do CRAV Unisinos (RS), "o interesse dos cineastas sul-coreanos em fazer cinema não só continuou como cresceu, também incentivado por essas novas medidas. A partir dos anos 2000, vemos a continuação da onda do Novo Cinema Coreano se transformar na Era Blockbuster, que segue uma linha, abordagem e qualidade de produção semelhantes às produções de grande escala em Hollywood".

Ainda segundo Gonzatto, o cinema coreano tem amplo domínio da linguagem e técnica cinematográficas, realiza um cinema híbrido, mesclando temáticas particulares e nacionais, e conta com ampla participação do público doméstico.

Internacionalização do cinema

A vontade de ganhar o mercado internacional era evidente já no governo de Kim Dae-jung. A indústria coreana passou a inscrever seus filmes em festivais e filmar em locações fora do país. Além disso, melhorou a qualidade do som para facilitar a dublagem.

Mesmo longe de impactar a cultura ocidental como o K-Pop ou a indústria de cosméticos, a produção cinematográfica coreana é aclamada pela sua variedade de gêneros e cineastas.

Philippe Leão, crítico de cinema e professor do Centro Cultural de Artes da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), destaca o trabalho de quatro diretores. "Bong Joon-hoo e Park Chan-wook são os que mais trabalham a ocidentalização como um valor estético. Não à toa, são os que produziram filmes nos EUA [Jong-hoo fez 'Okja' e 'Expresso do Amanhã', e Chan-wook fez 'Segredos de Sangue']. Em Chan-wook há uma violência mais gráfica, além da predileção pela diversidade narrativa de caminhos dentro dos filmes, fazendo com que perambulam entre o suspense, terror e até comédia de absurdo. Kim Ki-duk, que já foi conhecido como 'cineasta do silêncio', adentra a temática da violência em 'Pietà' (2012). Hong Sang-soo trabalha com mais afinco o cotidiano, com inspirações claras de Eric Rohmer e Yasujiro Ozu, perambulando entre um humor bastante peculiar e o drama. 'Certo Agora, Errado Antes' (2015) e 'Na Praia à Noite Sozinha' (2017) são os mais representativos desse estilo."

Filme "Em Chamas", de 2019 - Reprodução - Reprodução
Filme "Em Chamas", de 2019
Imagem: Reprodução

Leão ainda acredita que o cinema sul-coreano é dos únicos movimentos cinematográficos propostos hoje. Contudo, mais do que apenas uma força comercial doméstica, ele agora, a reboque de "Parasita", pode de fato trilhar rumos internacionais. É provável que o filme faça história no Oscar, em 2020 - nunca houve indicação a um filme sul-coreano antes, em qualquer categoria. O alcance do longa foi tanto que se tornou a maior arrecadação por salas nos Estados Unidos em 2019. Em cartaz em apenas 3 salas no país, conquistou uma média de US$ 125,4 mil por cada uma — é a maior arrecadação por sala desde "La La Land", em 2016.

Além disso, ele representa a epítome da mistura de gêneros que é a marca das produções mais recentes no país. O filme, que começa como comédia, vira drama, suspense, terror e thriller social.

"É um dos poucos movimentos com vigor para seguir produzindo, sem perder a essência de sua produção", revela Leão. "Digo isso não por este movimento ser mais valoroso do que outros, mas por saber assimilar, pelo menos até agora, a velocidade moderna em sua linguagem. São filmes que, apesar de orientais (o que infelizmente ainda é uma barreira no Ocidente), comunicam-se muito bem com o Ocidente e com o público de massas."

Gonzatto concorda. "O cinema coreano anda trilhando os rumos de brilhantismo, mas também o da colonização hollywoodiana. Casos de cineastas como Kim Ki-duk, muito críticos ao status blockbuster do cinema coreano, continuam a aparecer e acho que serão a chave da próxima geração. A Coreia anda atraindo mais a atenção estrangeira e acredito que irá atrair mais investimentos financeiros também." Segundo ela, "unido a essa força de vontade podemos ver o cinema mais híbrido na crítica e nos gêneros de Bong Joon-ho, por exemplo, que flerta com o cinema autoral de grande escala. Ainda assim, ele se utiliza de uma linguagem muito hollywoodiana, o que acaba facilitando o investimento estrangeiro e até mesmo a produção do filme".