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Se o Carnaval dialoga com seu tempo, é proibido homem se vestir de mulher?

Homens acompanham o tradicional bloco As Muquiranas, em Salvador, que exige fantasia de mulher - Valter Pontes/Prefeitura de Salvador
Homens acompanham o tradicional bloco As Muquiranas, em Salvador, que exige fantasia de mulher Imagem: Valter Pontes/Prefeitura de Salvador

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

30/01/2020 04h00

O Carnaval começa em algumas semanas, mas muitos blocos (e algumas polêmicas) já estão nas ruas. Quem torce o nariz para a maior manifestação cultural do país repete um mantra conhecido, de que a festa é um símbolo da alienação do brasileiro. Para quem estuda a história da folia, isso não condiz com a história da festa. "É bom saber que o Carnaval é uma festa engajada, e isso remete aos tempos da escravidão", observa o historiador Luiz Antonio Simas. Mas, em tempos em que o engajamento e a consciência política pedem passagem nas redes sociais, algumas práticas andam sendo questionadas até mesmo pelos foliões.

Costume nos bailes (não tão) antigos, o uso do blackface parece que foi banido da festa por seu histórico de racismo. Nos últimos anos, a campanha #IndioNãoÉfantasia, apoiada por personalidades indígenas, conseguiu fazer com que elementos como cocar, penas e pintura corporal perdessem força nas ruas. Mas a lista das fantasias problematizadas parece ter aumentado, pelo menos nas redes sociais.

Uma publicação da Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará, divulgada em 2019 e resgatada no início de janeiro de 2020, jogou mais lenha na discussão. A campanha visa a conscientização na hora de bolar a fantasia e atualiza a lista das vestimentas "canceladas".

Além do blackface e dos indígenas, devem-se evitar fantasias de Iemanjá, padre, muçulmano (por desrespeito às religiões) e ciganos (que, como no caso dos indígenas, seria uma forma de marginalizar as tradições culturais do povo). Um clássico absoluto da folia, que sempre foi problematizado, mas resistia no mar de foliões, também aparece na lista: os homens vestidos de mulher. "Tem mulher cis e trans, travesti, gender fluid e queer. O mundo das identidades é vasto e certeiro: não é fantasia, é realidade", diz a postagem.

Se o Carnaval tem o engajamento político na origem, é natural que as pautas identitárias estejam no centro da festa hoje, observa Simas, pesquisador de cultura popular, samba e Carnaval, e autor de "Dicionário da História Social do Samba", vencedor do Prêmio Jabuti em 2016. "O Carnaval dialoga com seu tempo. O Brasil é um país que tem homofobia, misoginia, racismo. É estrutural, evidente que isso repercuta no Carnaval."

E isso ganha outra dimensão na era do cancelamento das redes sociais. "De certa maneira, as redes sociais alteraram o comportamento do folião. Hoje você não tem mais o folião que busca, com uma fantasia, estar escondido, estar velado. Você tem o folião que quer aparecer, o cara se fantasia e coloca no Instagram, diz a que blocos ele foi, fica acompanhando as redes sociais para ver quantas curtidas a fantasia dele teve", explica.

A questão central, que promete render muita discussão, é como trabalhar essa pauta sem matar a irreverência dos blocos. "É preciso saber separar o joio do trigo."

Simas exemplifica com as marchinhas clássicas, consideradas homofóbicas e racistas. "Teu Cabelo Não Nega", por exemplo, ainda toca no Cordão do Bola Preta, centenário bloco do Rio de Janeiro. "Se tem um bloco que não quer cantar 'Teu Cabelo não Nega', não deve cantar e acho ótimo que não cante. Mas não sou eu que vou subir no carro do som do Bola Preta e dizer para não cantar", observa.

O historiador reflete que certas fantasias realmente carregam elementos preconceituosos. "Tem coisas que são intoleráveis, ninguém vai querer um sujeito fantasiado de nazista, usando blackface, que tem uma trajetória de racismo, mas por outro lado, fazer uma patrulha excessiva em relação às fantasias é complicado."

Festa do inverso

Se tem algo que impulsionou o surgimento da festa foi a inversão de papéis. Com a expansão do Cristianismo, o Carnaval ficou conhecido como a "Festa dos Loucos", por exigência da Quaresma. Afinal, as penitências precisavam ser antecedidas de algo que servisse a outros propósitos. Vivia-se ali, durante alguns dias, a vida de forma idealizada, invertida, livre de hierarquias, dos dogmas religiosos e das leis do Estado.

Em busca dessa liberdade, tudo era permitido. Nessas representações, sempre foi muito comum as pessoas trocarem de papéis, como o homem se vestindo como mulher — e vice e versa. A brincadeira ia além das vestimentas e estavam também nas ações. Durante esses dias, o patrão recebia ordens dos seus serviçais e homens profanos agiam como clérigos, dando sermões.

O Entrudo, festa muito popular no Carnaval de Portugal, foi trazido para o Brasil no século 16, e também propunha essa troca. "O Carnaval é uma festa de inversão. Se você começa a estabelecer muita regra, vai começar a ordenar, numa perspectiva inclusive moral, uma festa de rua que é complicado de se trabalhar", observa Simas.

Fantasia de freira é um dos mais tradicionais do Bloco Carmelitas, no Rio - Douglas Shineidr/UOL - Douglas Shineidr/UOL
Imagem: Douglas Shineidr/UOL

Se as sugestões que circulam nas redes sociais vão ganhar força nas ruas, ainda é cedo para dizer. Pode ser que vejamos o fim de blocos tradicionais, como é o caso do Bloco das Carmelitas, nascido nos anos 1990 em Santa Teresa, bairro que teve sua fundação ligada ao Convento das Carmelitas. A folia ali é formada em torno da lenda de uma freira que pulava o muro do convento para curtir o Carnaval e voltava para a clausura na terça-feira. Virou logo uma tradição: todo ano, homens e mulheres se vestem de hábitos de freira, para que a "fujona" possa se infiltrar à vontade.

Em Salvador, vai ser difícil alguém mudar o hábito do bloco das Muquiranas, tradicionalmente masculino, desde que o folião esteja com traje obrigatório: roupas de mulher. "A gente tem que encontrar a ponderação. Não dá para achar que o [bloco do] Cacique de Ramos não deve sair desfilado de índio. Daqui a pouco você tem um enredo indígena, como é o da Portela esse ano, e não sai ninguém de índio", observa Simas.

O historiador diz que o debate é sempre saudável, mas pondera. "O Carnaval de rua é uma festa que tem suas pulsões, e a gente tem que ter muito cuidado com a patrulha excessiva, porque aí seria a morte da próprio fundamento de uma festa."

Túlio Gadelha e Fátima Bernardes curtem o Cacique de Ramos, em 2018 - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Túlio Gadelha e Fátima Bernardes curtem o Cacique de Ramos, em 2018
Imagem: Reprodução/Instagram