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A nudez na arte clássica é 'soft porn' para os homens da elite?

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

19/03/2020 04h00

Feche os olhos e imagine uma série de corpos inteiramente nus: silhuetas exuberantes, seios fartos, peitorais musculosos, pênis livres, leves e soltos, bundas ao alto; uns solitários no divã, outros entrelaçados, explícitos, transpirando sexo. Parece pornográfico?

Agora, imagine uma moldura pomposa ao redor desses corpos, contemplados, admirados e alvos de selfies de multidões pretensamente cultas nos maiores museus e galerias do mundo. Parece arte?

"Soft porn (pornô leve) para a elite... É o que o nu está sempre sob o risco de ser", criticou a acadêmica Mary Beard, apresentadora do programa "The shock of the nude" ("O choque da nudez", em tradução livre), da agência britânica BBC. Segundo a autora, durante séculos os quadros foram feitos por homens e encomendados por homens, voltados para o deleite masculino — a nudez majoritariamente feminina, portanto, desperta questões sobre arte, pornografia e política até hoje.

"Qual é afinal a diferença entre arte e soft porn?", questionou Beard, professora de arte clássica na Universidade de Cambridge e autora de "Mulheres e poder: um manifesto" (2018), que trata do silenciamento das mulheres ao longo da história ocidental.

"Pense na dimensão sexual e na dinâmica linha tênue entre arte e pornografia. 'A origem do mundo', de Gustave Courbet, é o exemplo mais óbvio: o que impede o quadro de ser definido como pornográfico? Bom, o fato de estar pendurado em uma galeria em uma sofisticada moldura dourada", diz Beard ao TAB, referindo-se à famosa tela do século 19 que traz um close-up de uma genitália feminina, exposta no Museu d'Orsay, na França. "Se estivesse em uma sex shop, seria pornô", acrescenta Beard.

Entre 2015 e 2017, o majestoso museu de Paris lançou uma campanha com o slogan "Emmenez vos enfants voir des gens tout nus" ("Tragam seus filhos para ver gente nua", em tradução livre). "É a função da arte: incomodar, questionar", declarou à época a diretora de comunicação da casa, Amélie Hardivillier.

Museu secreto

Não entenda mal: Beard quer provocar e levantar discussões, mas não defende reprimir corpos nus. Quis, inclusive, sentir na própria pele a vulnerabilidade da nudez: aos atuais 65 anos, a professora posou nua para a artista britânica Catherine Goodman, durante três sessões que lhe renderam seis retratos.

"Não defendo censura, mas penso que nós precisamos encarar o fato que há muita carne exibida. Vamos a galerias e vemos uma série de peitos nus. O que eles nos dizem?", diz Beard ao TAB.

De tempos em tempos, setores conservadores pressionam para censurar a nudez na arte. Em fevereiro de 2020, aconteceu com três exposições no Brasil: "Ruína", que mostra o ânus da artista Luluca L., foi fechada um dia depois da estreia na Galeria Municipal de Arte de Balneário Camboriú (SC); "Cine Desejo", que trata da iconografia da indústria pornô, e "Lavra", que inclui uma ilustração da Virgem Maria nua e dotada de pênis, foram censuradas no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, no Rio.

Nos últimos anos, as exibições "Queermuseu", em Porto Alegre (2017) e no Rio (2018), e "Histórias das sexualidades" (2018), no Museu de Arte de São Paulo, o Masp, também despertaram polêmica. Entretanto, a discussão sobre a presença da nudez na história da arte é antiga. Foi um museu, aliás, que criou a palavra "pornografia".

Entre 1755 e 1857 foram descobertos afrescos e esculturas de teor sexual, espalhados pelas ruínas da antiga cidade romana de Pompeia, soterrada em 79 d.C. Por ordem de Carlos 3º de Bourbon, os itens foram escondidos em uma ala secreta do museu de Nápoles, conhecida também como "Museu Secreto", conta o filósofo espanhol Paul B. Preciado, no artigo "Museu, lixo urbano e pornografia" (2008), traduzido e publicado na revista acadêmica Periódicus, da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

No século 19, então, o historiador alemão C. O. Müller usou a palavra grega "pornografia" (que quer dizer "escrita acerca das prostitutas") para se referir ao acervo do museu. No Dicionário Webster de 1864, o verbete literalmente diz: "pinturas obscenas utilizadas para decorar os muros das habitações de Pompeia, cujos exemplos se encontram no Museu Secreto".

Que abundância

Os tempos mudaram, a pornografia mudou, a arte mudou. Mas, no século 21, ainda se considera pornografia algo associado a obscenidade e indecência. A arte clássica exposta nos museus, porém, continua a exibir milhares de mulheres como vieram ao mundo.

A abundância do nu feminino é criticada por Beard, que questiona como o corpo sexualizado das modelos atende aos desejos masculinos.

Ao escrever sobre a estátua "Afrodite de Cnido", feita pelo escultor grego Praxíteles por volta de 350 a.C., a historiadora norte-americana Nanette Salomon vai mais longe: como a deusa grega estrategicamente esconde o púbis, o observador da obra se torna um voyeur a violar a intimidade da observada, construindo a imagem da mulher como "perpétua vítima de estupro na arte europeia", escreve a autora no artigo "The Venus Pudica", publicado no livro editado pela artista feminista sul-africana Griselda Pollock, "Generations and geographies in the visual arts" ("Gerações e geografias nas artes visuais", em tradução livre).

"É a história que privilegia o nu feminino sobre o nu masculino", sintetiza Salomon.

A crítica feminista também inspira o coletivo anônimo de artistas e ativistas Guerrilla Girls, que já fez projetos, pôsteres e intervenções, de Nova York a Shangai, passando por Istambul, Londres e São Paulo. No Masp, elas fizeram uma releitura de "A Grande Odalisca" (1814), de Jean-Auguste Dominique Ingres, incluindo uma máscara de macaco, com os dizeres "As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?". Segundo o coletivo, apenas 6% dos artistas do acervo em exposição eram mulheres, mas 60% dos nus eram femininos.

"A nudez sempre esteve presente na representação feminina, mas suas razões e seus propósitos mudam muito ao longo do tempo. Seria redutor fixar um só sentido para a nudez, perderíamos uma série de usos e reveses de poder das mulheres ao simplificá-lo ao uso instrumental dos homens — que existiu, claro, mas não foi só isso", pondera a socióloga Isabelle Anchieta, autora de "Imagens da Mulher no Ocidente Moderno", lançada recentemente pela Editora da USP.

Nas imagens de bruxas europeias, por exemplo, a nudez era indício de sexualidade desenfreada e indesejada, imoral. Nas imagens de índias tupinambás, oscila entre a inocência e a selvageria. O peito da Virgem Maria, amamentando Jesus, destaca o lado maternal. O corpo de Maria Madalena simboliza a pecadora que se arrepende.

Depois, a nudez representará o poder das cortesãs. "São as primeiras mulheres comuns a ter um retrato realizado pelos grandes pintores de sua época como Tintoretto, Paolo Veronese, Palma Vecchio. Imagens que não só representavam sua beleza, como a produziam e publicizavam. O que, na prática, era fonte de fama e enriquecimento dessas mulheres", afirma Anchieta.

"Se o nu deleitava os homens (o soft porn), foi também um importante elemento para a construção do poder feminino e do belo sexo. Isso não quer dizer que as mulheres foram automaticamente condicionadas e objetificadas pelo olhar masculino, mas usaram e mesmo subverteram o uso dessas imagens a seu favor, como Verônica Franco, a cortesã italiana que inclusive foi convocada pelo corpo colegiado político de Veneza para negociar uma aliança com o rei da França", exemplifica.

Belo sexo

Tempos depois, a nudez também se tornou instrumento para contestar padrões no século 20: muitas mulheres passaram a utilizar o corpo nu como arma simbólica em performances e protestos — entre elas, artistas como a norte-americana Carolee Schneemann e a sérvia Marina Abramovic.

Além da nudez feminina como ato político, hoje há movimentos de pós-pornografia e pornô feminista. Discute-se a presença de mamilos no Instagram, erotismo no Tumblr e algoritmos do Facebook incapazes de distinguir a linha invisível entre arte e pornografia.

"As fronteiras entre o erótico e o pornográfico no campo da arte são tênues e movediças, ou seja, conceitos que variam ao longo da história da arte e refletem os valores socioculturais", diz Afonso Medeiros, professor titular de estética e história da arte da Universidade Federal do Pará e autor de "O imaginário do corpo entre o erótico e o obsceno" (2008). "Há um mote cínico ainda hoje repetido entre críticos e historiadores da arte: 'Se é pornografia, não é arte. Se é arte, não é pornografia'."

Cenas de nudez e sexo explícito, por exemplo, provocam alvoroço em parte da crítica e do público, deslocando determinadas obras a salas separadas e de acesso restrito a adultos. Mas, na Antiguidade, eram bastante apreciadas e livremente exibidas.

"No Ocidente, a coisa muda de figura a partir do Renascimento e o nu é permissível (desde que tenha um caráter idealizado, 'erótico'), mas a sexualidade explícita ('pornográfica') é interditada", conta Medeiros, que pesquisa imagens "pornoeróticas". Nos últimos anos, tais tipos de imagens se tornaram foco de estudos acadêmicos sérios, os porn studies, nos Estados Unidos, ou a pornologie, na França.

Quanto à arte como soft porn, o autor questiona: será que hoje os nus femininos serviriam apenas ao bel-prazer de homens héteros?, lésbicas estariam impedidas? "Quantos artistas gays encontraram no nu idealizado um disfarce perfeito para a expressão de seus desejos homoeróticos? Quantos espectadores puderam ver seus mais recônditos desejos contemplados em uma pintura ou uma escultura? A arte mexe com nossas libidos, que são variadas e dissonantes", pondera.

Para Medeiros, a nudez e a sexualidade na arte devem ser celebradas, pois tocam a dimensão humana: "Nosso próprio corpo, nossa imanência, com todas as suas paixões, desejos e idiossincrasias. Nenhum artista, homem ou mulher, deve sofrer censura por representá-las e expô-las".