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Angelicais ou malignas, mulheres não escapam de clichê nos filmes de terror

Kyliegh Curran em "Doutor Sono" - Reprodução
Kyliegh Curran em "Doutor Sono" Imagem: Reprodução

Luiza Pollo

Da agência Eder Content, em colaboração para o TAB, de São Paulo

29/10/2019 04h00

Se você é fã de terror, provavelmente está aguardando ansiosamente a estreia do cinema para o Halloween de 2019. "Doutor Sono", continuação de "O Iluminado", chega aos cinemas do Brasil em 7 de novembro.

Também baseado em um livro de Stephen King (assim como o clássico de 1980), o longa traz o personagem Danny Torrance adulto (interpretado por Ewan McGregor), de volta às lembranças aterrorizantes do hotel de sua infância. Mas, além de Danny, o filme tem uma garota negra entre os personagens principais. Pelo trailer, dá para saber pouco sobre ela, mas já fica clara a intenção de quebrar os estereótipos do gênero. Tema cada vez mais presente no debate cultural, a representatividade feminina costuma deixar a desejar em filmes de horror.

Não é uma questão de visibilidade ou voz. Uma pesquisa do Google e do Instituto Geena Davis de Gênero da Mídia revela que o horror é o único gênero em que as mulheres aparecem mais em tela que os homens, com 53% de tempo. E é também nos filmes assustadores que elas mais têm voz: 47% das falas são proferidas por personagens do gênero feminino. Para fins de comparação, em geral as mulheres têm 36% de tempo em tela e 35% do tempo de fala nos filmes. A pesquisa usou como base os 100 filmes americanos com maior receita entre 2014 e 2016.

Mas o simples fato de elas terem mais espaço não significa que estejam bem representadas, já que cinema ainda é um campo bastante masculino. Entre 2017 e 2018, 81,5% dos postos atrás das câmeras nos 100 filmes que mais geraram receita eram ocupados por homens, de acordo com levantamento da Women and Hollywood, iniciativa pela diversidade e inclusão na indústria do cinema.

"Os dois clichês mais enraizados são: de um lado a mulher como monstro, que representa os perigos do feminino enraizados no corpo e, de outro, a mulher como vítima, o feminino como sinônimo de fragilidade e a necessidade do amparo masculino", afirma ao TAB a historiadora e pesquisadora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Gabriela Larocca, especialista em cinema de horror.

Ewan McGregor e Kyliegh Curran em "Doutor Sono" - Reprodução - Reprodução
Ewan McGregor e Kyliegh Curran em "Doutor Sono" (2019), sequência de "O Iluminado"
Imagem: Reprodução

Os clichês femininos são fortes e históricos em todos os tipos de filme, lembra Luciana Rodrigues, professora do curso de Cinema e coordenadora da pós-graduação em Gestão de Produção e Negócios Audiovisuais da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado), em São Paulo. "O que salta aos olhos no horror é muito a questão da fetichização da mulher sendo tratada como objeto. Muitas vezes, até sob o pretexto de se abordar o estupro, você acaba fetichizando a violência contra a mulher e coloca isso na tela como uma forma de dar prazer aos homens", explica.

'Final girl'

Os slashers são o maior exemplo disso. O subgênero nasceu no final da década de 1970 e é identificado por algumas premissas básicas: no enredo, um grupo de pessoas é assassinado por um psicopata que costuma usar uma arma com lâmina, como um facão, e fica anônimo até o clímax. É nessas histórias que nasce um dos maiores clichês da mulher no horror: a final girl.

Em oposição às amigas, a final girl costuma ser a personagem que não bebe, não usa drogas e — mais importante — não faz sexo. É ela que sobrevive até o fim do filme e derrota o assassino, mesmo que momentaneamente.

Após estudar a representação do corpo feminino em três filmes do gênero, entre eles os slashers "Halloween" (1978) e "Sexta-Feira 13" (1980), Larocca explica que a final girl surgiu dentro de um contexto histórico muito claro dos Estados Unidos. "Os anos 1960 e 1970 foram marcados pelo feminismo de segunda onda, além do movimento LGBT, o estudantil, as reações contra a guerra do Vietnã, causando uma contestação da ordem e das hierarquias", lembra. A pílula anticoncepcional era aprovada, as mulheres começavam a sair mais para trabalhar, o número de divórcios aumentava.

A atriz Sissy Spacek em "Carrie, a Estranha" (1976) - Reprodução - Reprodução
A atriz Sissy Spacek em "Carrie, a Estranha" (1976)
Imagem: Reprodução

"A partir do final da década de 1970 e no começo dos anos 1980, há um revés de tudo isso, um forte movimento conservador que vai tentar recuperar o que chamaram de 'excessos', com uma luta muito forte no campo do gênero", afirma a historiadora, lembrando também da descoberta do HIV no início dos anos 1980.

O cinema não fica de fora desses assuntos e começa a reagir às questões políticas e sociais. No horror, os slashers acabam surgindo como uma maneira de discutir essas ansiedades e medos em relação ao novo papel feminino e da família, aponta Larocca. Ganha espaço o controle sobre o corpo e as decisões da mulher. São os anos de governo do Republicano Ronald Reagan, que junto à mulher, Nancy Reagan, vão à TV várias vezes falar da importância dos laços familiares.

Jamie Lee Curtis em "Haloween" (1978) - Reprodução - Reprodução
Jamie Lee Curtis em "Haloween" (1978)
Imagem: Reprodução

"Há um excesso de violência contra o corpo feminino. Os homens morrem nesses filmes de uma maneira muito diferente. No primeiro 'Sexta-Feira 13', eles morrem muito fora de cena, e de forma não tão gráfica, enquanto as mulheres morrem logo depois de terem transado. Ou então se faz questão de mostrar que elas estão nuas", exemplifica Larocca. "É muito significativo, e precisamos entender que o cinema está dentro dessa disputa de gênero e sexualidade."

Condutoras do mal

O desejo sexual feminino também é motivo de repressão em "Carrie" (1976), terceiro filme estudado por Larocca na dissertação. Em vez de final girl, a personagem que dá nome à obra é a assassina. Carrie descobre seus poderes sobrenaturais após a primeira menstruação e usa-os contra quem fez sua vida virar um inferno.

A atriz Kate Dickie em "A Bruxa" (2015) - Reprodução - Reprodução
A atriz Kate Dickie em "A Bruxa" (2015)
Imagem: Reprodução

Stephen King, autor do livro que deu origem ao filme, disse com todas as letras que a história tem a ver com o movimento de libertação feminina da época. "É muito mais sobre como as mulheres encontram seus próprios canais de poder, e sobre o que os homens temem nas mulheres e em sua sexualidade", escreveu em seu livro "A Dança Macabra", em que analisa o entretenimento de horror.

Final girl ou assassina, a figura feminina no horror em geral não é complexa. "Você tem de um lado a mulher virginal, boazinha, que se mantém 'pura' e consegue sobreviver, e de outro as mulheres como condutoras de todo o mal", observa Rodrigues.

A professora remete essa imagem a histórias bem mais antigas, como a tragédia grega "Medeia", de Eurípedes, com a mulher que se rebela e chega a matar o filho. "É uma figura muito forte, no sentido de ser a mulher vista como louca, insana. Ainda não conseguimos superar completamente essa lógica da mulher bárbara", afirma.

Mudança para melhor?

Se, por um lado, a relação com a história traz em alguns momentos narrativas mais conservadoras, por outro pode ter efeito contrário, diz Larocca. "Na mesma época há filmes que trazem crítica social, debatem racismo, o sonho americano e o consumismo", afirma. Por isso, a pesquisadora prefere não falar em uma melhora linear na representatividade da mulher no cinema de horror. Para ela, há exemplos bons e ruins, em momentos simultâneos.

Gabriela Larocca cita "A Bruxa" (2015) como uma representação menos clichê. "Mostra um feminino mais complexo. Por mais que discuta a questão do mal, a personagem feminina principal é complexa, tem dúvidas e questiona o que é bom e o que é mau", exemplifica. Outro exemplo é Sidney, protagonista de "Pânico" (1996), que é vista como uma final girl com mais autonomia. "Ela é mais assertiva e independente, mas ainda representa uma mulher branca, bonita, de classe média", afirma.

Luciana Rodrigues lembra também das mulheres por trás das câmeras que ajudam a melhorar a representatividade nas telas. As cineastas Kathryn Bigelow e Claire Denis no exterior, e Juliana Rojas, Gabriela Amaral Almeida e Anita Rocha da Silveira no Brasil são alguns exemplos que ela aponta como grandes nomes no gênero.

Poster de "Nós", filme de terror de Jordan Peele - Reprodução - Reprodução
Poster de "Nós", filme de terror de Jordan Peele
Imagem: Reprodução

Mulheres negras passam praticamente despercebidas no gênero, lembra ela. A personagem de "Doutor Sono", assim como as de "Nós" (2019) e "Corra!" (2017) — ambos do diretor Jordan Peele — apontam para uma mudança, ainda que incipiente.

Larocca não acredita que a indústria esteja somente repensando valores, mas em parte está respondendo ao mercado. Com um público mais atento à representatividade nas telas, filmes que tragam essa complexidade ganham destaque e geram mais lucro na bilheteria.

Seja do ponto de vista social ou mercadológico, as pesquisadoras percebem espaço para mulheres mais complexas no horror — uma demanda inclusive de público. "É engraçado que, apesar de você ter cineastas mulheres bem conhecidas que andaram por esse gênero, existe uma ideia de que mulher não gosta de filme de terror", diz Luciana. "E essa ideia está absolutamente errada."