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Renda básica e educação podem determinar futuro do trabalho pós-pandemia

Do UOL

29/05/2020 18h17

O cenário já instável de dominância da economia compartilhada, do neoliberalismo e da inteligência artificial complicou-se com a chegada da Covid-19. Como devem ficar os empregos e a renda? Em um país como o nosso, com milhões de autônomos, o que pode acontecer? O que será do trabalho que conhecemos?

Essas perguntas foram discutidas no UOL Debate desta sexta-feira (29). O programa reuniu Nina Silva, executiva de TI e sócia fundadora do Movimento Black Money; Felipe Moda, sociólogo e pesquisador; Jamil Chade, correspondente em Genebra e colunista do UOL; e Maitê Lourenço, psicóloga e fundadora do BlackRocks Startups. A mediação ficou a cargo do antropólogo Michel Alcoforado, colunista de TAB.

Pandemia escancarou um sistema falido

A crise econômica trazida pela Covid-19, definitivamente, piorou relações de trabalho e índices de desemprego no Brasil, mas os convidados foram unânimes em lembrar que ela só expôs falhas preexistentes da economia. "O sistema já era cruel com uma parcela gigantesca da população, o Estado já não existia para essas pessoas", disse Jamil Chade, abrindo o primeiro bloco do UOL Debate.

Nina Silva chamou atenção para a "romantização da quarentena", que ignora a realidade vivida no Brasil — com mais de 12 milhões de desempregados e cerca de 30 milhões de trabalhadores informais. "A gente fala muito nesse 'novo normal', mas o grande questionamento é: para quem era bom o 'antigo normal'? Há muito romantismo na ideia de ficar em casa, usando a quarentena para se redescobrir, mas precisamos falar de feijão com arroz. O cenário pós-Covid desnudou a situação de um sistema de caos que já estávamos presenciando, mas que não estava em pauta antes, porque não estava impactando grandes empresários", opinou.

Para Maitê Lourenço, a crise também coloca em evidência o que a própria população negra experiencia desde antes da pandemia, por conta da discriminação e da ausência de medidas niveladoras de oportunidades. "Viemos de retrocessos. A precarização de trabalho da população negra nunca foi a pauta central, é sempre tratada como um diálogo em paralelo. Importante pensar, nesse cenário pós-pandemia, quais serão os grupos que terão uma manutenção de privilégios", disse.

Que futuro é esse que estamos discutindo? Para quem estamos falando sobre esse futuro? Quem são esses interlocutores que falam desse futuro do trabalho?
Maitê Lourenço, fundadora do BlackRocks Startups

Mesmo que o cenário no mercado financeiro seja considerado o pior desde as crises de 1929 e de 2008, como pontuou Chade, Felipe Moda frisou que, ainda assim, há quem siga concentrando riqueza. "A gente colocou esse pensamento de que a crise se generalizou na sociedade, mas também não é verdade que ela atingiu a todos. O mundo acabou de criar seu primeiro trilionário: Jeff Bezos, da Amazon. Enquanto a crise afeta uma parcela considerável da população, alguns empresários da tecnologia conseguiram concentrar ainda mais riqueza."

Acesso à educação determinará o futuro das profissões

Enquanto se fala de uma era digital provocada pelo isolamento social, os convidados destacaram que uma boa parcela da população mundial — entre eles, 70 milhões de brasileiros — não possui acesso à internet e à educação digital e financeira. Portanto, como será possível falar de um futuro do trabalho, especialmente do digitalizado?

"A gente sabe que, quando falamos do futuro do trabalho, pensamos em ocupações que envolvem tecnologia. Estamos na era digital há 20 anos e, agora, deparamos com uma pandemia que está colocando em xeque o trabalho de quem não está digitalizado", afirmou Silva.

Lourenço afirmou, também, que é necessário pensar em quais profissionais poderão de fato experimentar a digitalização de ocupações e de negócios da mesma forma que as classes mais privilegiadas. "A questão não é saber quais serão as profissões do futuro, mas quais oportunidades serão oferecidas para qualquer grupo acessá-las. Quando a gente fala de quem faz as startups, os 'faria limers', a gente está falando da manutenção de privilégios de alguns grupos. Precisamos desenvolver esse processo educacional para pensar em novas profissões."

Chade também alertou para a falta de condições sanitárias básicas, que afetam o acesso ao pleno trabalho e renda de pessoas no mundo inteiro.

A OMS pede que as pessoas lavem as mãos para evitar a proliferação do vírus, mas 1,6 bilhão de pessoas não tem água encanada em casa. Lavar as mãos aonde?
Jamil Chade, colunista do UOL

O correspondente lembra que, "na questão da digitalização, o mundo acabou de ultrapassar a marca de 50% da população com acesso à internet", ou seja: metade da população mundial ainda não vive essa vida digital. "Se queremos reinventar esses novos futuros, teremos que dar um passo para trás e colocar o estudo como um direito básico. Quem pode trabalhar e estudar em casa? Qual parte da sociedade pode ter acesso a isso? Para isso, é preciso ter um projeto, mas a parte dramática é que esse processo não existe", completou.

Aplicativos garantem apenas o mínimo

Muito se fala na importância dos aplicativos, criados por empresas de tecnologia, que oferecem serviços de delivery. Para o sociólogo Felipe Moda, tais trabalhos informais revelam uma precarização preocupante do trabalho. "Existe uma tendência predominante no Brasil, que é a piora nas condições de trabalho. Começa com o aumento explosivo no desemprego e uma proliferação muito grande de trabalhos informais, dos quais as pessoas dependem para garantir o mínimo de renda. As pessoas seguem indo para a rua, se arriscando, porque não têm outra alternativa."

A gente vê uma pessoa que está dirigindo um carro ou fazendo uma entrega e chama essa pessoa de empreendedora. Isso não é empreendimento, é um não-trabalho"
Nina Silva, sócia fundadora do Movimento Black Money

Austeridade não é a saída da crise

Para entender o impacto futuro que a pandemia terá no trabalho que conhecemos, os convidados frisaram a importância de que o Estado garanta condições para que a população possa sobreviver à crise.

Chade explicou a forma como a União Europeia está lidando com a crise no continente. "A parte positiva é que os europeus viram o que aconteceu em 2008 com a crise financeira. A de hoje é muito maior, mas eles aprenderam que, ao adotar políticas de austeridade, ao estrangular a sociedade para salvar as contas do governo, geraram a proliferação dos movimentos extremistas — especialmente da extrema-direita, de gente que colocava o ódio no centro da história", destacou. "Europeus estão criando a renda mínima para evitar uma situação ainda pior, como foi o Brexit, deixando a União Europeia extremamente fragilizada. Existe esse caminho 'positivo' dentro da crise."

O Estado mínimo, coroado pelo neoliberalismo, foi colocado em xeque pela pandemia do novo coronavírus — especialmente com governos do mundo todo aprovando pacotes emergenciais de resgate da economia para garantir o emprego de milhões de pessoas. No Brasil, Felipe Moda diz que o auxílio emergencial ainda não é o suficiente para garantir dignidade à população.

"O discurso de que o estado atrapalha sempre foi vitorioso no Brasil. Temos que perceber que a população tem direito a mais do que apenas subsistir. Isso impregnou na cabeça das pessoas, que o Estado só deve garantir sua subsistência. Os R$ 600 oferecidos pelo auxílio correspondem a pouco mais do que meio salário mínimo. O que tem na cabeça de quem que pensa que uma pessoa deve subsistir com metade de um salário mínimo? É difícil ser otimista com o mundo do trabalho. O que acontece hoje não é uma questão de escolha: ou você aprende a se virar ou você morre de fome. A visão por trás da renda básica não é melhorar a vida das pessoas, mas apenas garantir a subsistência."

Silva defende que programas sociais de renda mínima serão necessários, inclusive, para ajudar pessoas a se encontrarem no mercado profissional. "Temos que falar desse lugar. A renda mínima pode e deve oferecer possibilidades de acesso à internet e até mesmo de ter mais calma para entender em que lugar do mundo você quer estar. Para quem vive num mundo de miséria, ter a renda mínima dá espaço para ter espaços cognitivos, para pensar em outras coisas."