'As cidades brasileiras são ocupadas de maneira desastrosa', diz arquiteto
Mais de cem dias já se passaram desde o início da pandemia de Covid-19. A vida de muita gente mudou, de um dia para o outro. Aos trancos e barrancos, foram aplicadas políticas de isolamento social pelas cidades, especialmente nas maiores metrópoles. No final de abril, pesquisas conduzidas por duas instituições perguntaram a cidadãos do Rio e de São Paulo do que sentiam falta. No Rio, os cariocas sentem saudades da praia, segundo um estudo da ESPM. Moradores de São Paulo contaram sentir saudade do comércio e dos shopping centers, de acordo com a Rede Nossa São Paulo.
As respostas demonstram como é diferente a relação que cada grupo desenvolve com os espaços públicos. Durante o ápice da Covid-19 na Europa e em Nova York, imagens de ruas e calçadas vazias e pessoas nas janelas impressionaram o mundo inteiro. Agora, com a reabertura de muitas cidades, o "novo normal" delimita os espaços a serem ocupados. Na América Latina, com pouco ou quase nenhum planejamento, como as cidades irão se reinventar?
"A pandemia ressignificou nosso espaço privado", afirma Silvana de Souza Nascimento, professora de antropologia da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora do LabNAU/USP (Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana), em entrevista ao TAB. "Quando a gente fica dentro de casa, tem que repensar o espaço doméstico. Nesse momento de reabertura, que é muito arriscado, houve uma invasão dos espaços de sociabilidade em todos os lugares. Algumas práticas culturais urbanas permanecem as mesmas", diz. Para ela, a volta à vida urbana passa agora pelo controle dos corpos, de cada um e o dos outros, para tentar frear o contágio da doença.
Mobilidade e desigualdade
Para Alessandro Lopes, arquiteto e pesquisador do Observatório Sociospacial da baixada de Santista da UniSantos, novas condutas para frequentar áreas públicas, como centros comerciais e supermercados, farão parte do nosso cotidiano. "A limitação de ocupação é algo que vai acontecer", afirma. A utilização de equipamentos urbanos da cidade, como a malha de transporte público, também deverá sofrer alterações. "Temos que rever os transportes pautados na ideia de aglomeração. Algumas cidades europeias estão aumentando os espaços de mobilidade ativa, calçadas mais largas e ciclovias, por exemplo", aponta Bianca Tavolari, professora do Insper e pesquisadora do Cebrape (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Urbano).
Ônibus lotados não são novidade nas grandes cidades brasileiras. Ao contrário das metrópoles mundo afora, o país teve dificuldade em aplicar políticas de isolamento social e a pandemia evidenciou problemas de desigualdade e também de infraestrutura. Um dos principais exemplos é o acesso e uso do transporte público.
A tendência a manter o trabalho remoto (home office), por exemplo, deve influenciar a cara das cidades. "Haverá um rodízio de gente circulando, muitas empresas de tecnologia estão trabalhando com essa possibilidade. O urbanismo está sendo revisto", diz Lopes.
Mas, e para quem não pode ficar em casa? "Uma das coisas que estamos vendo com a pandemia é que ela esgarça as desigualdades, mas não é só a de renda, que afeta as pessoas de maneira diferente. A desigualdade tem uma dimensão territorial", Tavolari. "Onde você mora vai ter importância e determinar o quanto você pode ser infectado ou corre o risco de morrer", lamenta.
Quem mais sofre com a Covid-19 no Brasil é o morador de periferia. "A pandemia foi pior devido às nossas carências. A ocupação das cidades brasileiras é feita de uma maneira absolutamente desastrosa", analisa o arquiteto Ciro Pirondi, arquiteto e professor da Escola da Cidade, em São Paulo. "Os erros que cometemos são primários, não estamos falando de grande urbanismo, mas lugares para as pessoas se encontrarem, calçadas para andarmos", afirma.
Cidades mais fraternas?
Para o especialista, a pandemia trará uma reflexão sobre cidades mais fraternas, que passa pelo conceito de periferia, por exemplo. "Temos que acabar com o conceito de periferia, ele é a síntese da desigualdade social. Apenas rompendo essa barreira, traremos a possibilidade de desenhar cidades mais justas", opina.
Tavolari conta que alguns conglomerados urbanos, como Paris, têm revisto os conceitos de centro e periferia com a ideia de "cidade de 15 minutos". "O objetivo é que cada bairro tenha pequenos centros para que a pessoa possa resolver tudo em 15 minutos. Mas, em cidades não desenvolvidas isso é quase uma utopia, porque elas não têm o básico. No entanto, mudar as estruturas é um assunto que está na mesa para boa parte das cidades que estão encarando essa situação [da pandemia] como um desafio."
Abandonadas pelo poder estatal, grandes comunidades, como Paraisópolis, em São Paulo, reorganizaram seus espaços de forma autônoma. "É ótimo que tenham feito isso, mas é absurdo que façam sem respaldo do Estado. A sociedade civil segurou o número de mortos na pandemia. O Estado não atua para pensar um planejamento, é uma situação trágica", diz Tavolari. É pela tragédia, inclusive, que as ruas voltaram a ser ocupadas para protestar.
Aglomerações em forma de protesto foram vistas com preocupação por profissionais de saúde, mas como necessárias para especialistas. "É uma tentativa de ocupação da rua que não é o ideal, porque ninguém quer colocar seu corpo em risco, mas ela volta a ser central de novo e de um jeito diferente: algumas cidades fizeram marcas no chão para manter o distanciamento, estamos vendo uma reinvenção de viver o espaço público para reivindicação", diz Tavolari. Para ela, os protestos mostram que a dimensão de espaço público vai além do conceito de lazer.
Para a antropóloga Nascimento, as manifestações são uma forma importante de enfrentamento. "Tem muita gente indignada nesse momento tão frágil e as pessoas resolveram se arriscar. O risco faz parte da vida. E isso revela que as pessoas não estão adormecidas em suas casas, mesmo com a pandemia."
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