Ninja na pandemia: primeiro mestre japonês do século 21 já viveu no Brasil
A pandemia passa para Genichi Mitsuhashi como um dia comum na pequena vila de Ishikawa, nos arredores da cidade de Iga, na província de Mie, no Japão. Discreto e moderado nas palavras, o japonês de 45 anos conquistou destaque internacional em julho ao ser laureado o primeiro mestre ninja do século 21. Literalmente mestre: o primeiro a concluir um curso de mestrado sobre estudos de ninjas no mundo.
Ninjas foram agentes secretos no Japão feudal, especializados em artes da guerra, digamos, não tão honrosas como as dos samurais. Ninjas são lembrados como mestres da espionagem, manejando um arsenal de arcos e flechas, estrelas e espadas em ações de sabotagem, assassinatos silenciosos e táticas de guerrilha.
"Entre os séculos 14 e 16, de fato era assim. A partir do século 17, entretanto, ninjas se tornaram parte do Xogunato Edo [1603-1868], morando nos castelos e ajudando a garantir a segurança oficial", diz o acadêmico Yuji Yamada, professor do International Ninja Research Center, da Universidade Mie.
Ali, no campus de Iga, a cerca de 450 quilômetros da capital Tóquio, Mitsuhashi passou dois anos estudando história, tradições e técnicas ninjas, incluindo artes marciais e estratégias de sobrevivência. "Mitsuhashi realmente se mudou para as montanhas para tentar viver a vida tal qual o povo do passado de Iga. É muito dedicado, um modelo para outros estudantes", afirma Yamada, que atualmente orienta outros sete alunos no núcleo ninja. Além de artimanhas e peripécias, ninjas têm um conhecimento histórico a compartilhar sobre harmonia com a natureza, diz o "sensei".
"Diante da pandemia de Covid-19, as pessoas das cidades grandes estão enfrentando dificuldades para tudo, trabalho, necessidades diárias, exercícios físicos. Na minha vila? Sem problemas", conta Mitsuhashi ao TAB. "Comida, por exemplo: normalmente, nós, da vila, estocamos arroz para cerca de um ano e, no dia a dia, colhemos vegetais frescos da horta de casa. Carne fresca, como javali e veado selvagem, sempre temos. Água? Nas cidades grandes às vezes só há uma fonte fresca. Aqui, temos os rios — muitas vezes precisamos ferver a água, mas, ainda assim, é mais abundante", descreve o novo ninja.
Até 22 de julho, o Japão contabilizava cerca de 26 mil casos e 988 mortes por Covid-19. Enquanto a capital concentra quase 10 mil casos e cerca de 300 mortes, foram reportados 58 casos e apenas uma morte na província de Mie.
Mitsuhashi vem passando a pandemia assim: mediante distanciamento social dos amigos agricultores na vila, colhendo as próprias hortaliças e arroz, caçando se necessário e é isso. A ideia é viver de forma independente, aproveitando a natureza para a própria sobrevivência. "Acontecem diversos desastres no Japão, então nós precisamos aprender habilidades para sobreviver. Ninjutsu [a cultura ninja] está entre elas", diz.
"Muitos imaginam o ninja como um assassino solitário, mas, na verdade, muitas vezes se trata de um fazendeiro independente que trabalha para proteger as vilas e a natureza. É alguém que pode se encaixar tanto em tempos de paz quanto em tempos de emergência", define. "Imagine agora quantas pessoas querem morar na área rural, devido a Covid-19...".
De Pompeia a Ishikawa
O campo vem atraindo cada vez mais japoneses, conforme reportou a Deutsche Welle: a tendência é sair do ritmo acelerado das metrópoles e viver um tipo de refúgio rural, trocando os arranha-céus de Tóquio por ar livre, bosques de bambu e montanhas. De acordo com a agência alemã, pré-pandemia, um estudo de fevereiro revelou que 49,8% dos japoneses imaginam viver no campo, no futuro.
Mitsuhashi nasceu na cidade de Nagano (capital da província de Nagano), mas considera como lar a cidade de Hirakata (na província de Osaka). Hoje, está instalado na vila de Ishikawa, onde nasceu o lendário ninja Ishikawa Goemon (1558-1594), um tipo de Robin Hood nipônico que roubava ouro para dar aos pobres.
"Minha vila não é nada especial. No Japão, quase 70% é montanha, coberta de floresta. Isto é, há florestas, arrozais, rios", conta. O cotidiano pandêmico, portanto, não mudou muito para ele: buscar água nos rios, cultivar arroz e hortaliças no quintal de casa, colher cogumelos na floresta, treinar artes marciais nos campos e castelos isolados.
No mestrado, Mitsuhashi teve acesso a antigos documentos da história dos ninjas e dos samurais, que não estão disponíveis para leitura comum. Primeiro, portanto, aprendeu a ler o estilo antigo das letras dos tempos de Edo — período da história do Japão que foi governado pelos xoguns da família Tokugawa — para depois aprender a interpretá-los, junto a um especialista de literatura japonesa. "Na época, os samurais eram líderes, enquanto os ninjas agiam como espiões, na inteligência e na busca de informações", explica.
Embora tenha feito mestrado, Mitsuhashi não pretende emendar um doutorado. Isso porque, nos seus primeiros dias no vilarejo, "um velho" lhe questionou: "Se Iga for vista como patrimônio japonês, governo, agências de viagens, turistas vão querer visitar e usar nossa área. Mas nós precisamos proteger natureza e vilas. Por que ninguém presta atenção a nós?"
Assim, Mitsuhashi não vislumbra mais um PhD pioneiro, mas atuar para preservar a sustentabilidade das vilas de Iga e Koka (outro reduto ninja histórico). "Minha vila tem mais de 1,2 mil anos. Os habitantes daqui são descendentes de ninjas. Os tempos são outros, mas nós pretendemos primeiro manter a prosperidade sustentável das vilas e depois reviver seu estilo de vida, investigar as relações entre o trabalho nas florestas e nas hortas com o ninjutsu", relata ele, que agora está dando aulas de artes marciais na área, incluindo os estilos Togakure-ry e Iga-ry.
"Ser ninja no século 21 é mais do que ter habilidades, é parte do estilo de vida. Nas vilas de Iga e Koka, nós designamos 'jisonjiei' e 'kyozonkyouei', quer dizer, ser independente não é ter dinheiro, mas ter o bastante para as necessidades diárias e para o que for preciso no caso de emergência. E cooperar junto com os vizinhos, o que vale também para tempos de paz", define.
Pré-Ishikawa, pré-pandemia, pré-ninja, Mitsuhashi passou quase um ano como estudante de intercâmbio na Fundação Shunji Nishimura de Tecnologia, fundada pelo imigrante japonês Shunji Nishimura no fim da década de 1980, na cidadezinha paulista de Pompeia, que hoje conta 21 mil habitantes, a cerca de 450 quilômetros da capital, São Paulo. Tempos depois, a unidade se desdobrou em polo educacional do infantil ao superior, totalizando mais de 2 mil alunos.
"Era perto de Bauru. Na época do colegial, vivi em uma vila brasileira, foi a minha primeira lição de como sobreviver na área rural. [Foi] o princípio de educação junto a nikkeis [descendentes de japoneses nascidos fora do Japão] e isseis [imigrantes japoneses]", lembra Mitsuhashi, que guarda fotografias da época e ainda se lembra um pouco do português.
Hoje, ele escreve também em espanhol e inglês. Mas há expressões que só a língua mãe pode manifestar: "Quero expressar 'ongaeshi'", diz, referindo-se a uma palavra japonesa que, em bom português de 2020, pode ser traduzida como "gratidão".
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