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Muito além do TikTok: como a comunidade negra moldou a cultura dos patins

Em tempos de quarentena, os patins retrô invadiram as redes sociais - Getty Images
Em tempos de quarentena, os patins retrô invadiram as redes sociais Imagem: Getty Images

Mariana Tramontina

Colaboração para o TAB, de Lewisburg (EUA)

26/07/2020 04h01

Toda vez que o vídeo de uma moça vestida de amarelo dançando sobre patins reaparece nas redes sociais, alguém manifesta estado de hipnose. É mesmo improvável não se fascinar pela energia de seus movimentos tão leves e cheios de estilo, girando e deslizando os pés como se o asfalto fosse uma manteiga. Oumi Janta é muito cool.

Senegalesa radicada em Berlim, Janta, de 29 anos, viu um de seus vídeos de Instagram viralizar. Repostado pela atriz Viola Davis (da série "How to Get Away with Murder"), ele teve mais de 1,7 milhão de visualizações e, em três semanas, Janta passou de 53 mil seguidores para mais de 600 mil.

Enquanto isso, em Los Angeles, nos Estados Unidos, outra patinadora arrasava no TikTok. O vídeo em que a atriz e dançarina Ana Coto, também de 29 anos, aparece patinando na rua, toda sorridente ao som de "Jenny from the Block", de Jennifer Lopez, já foi visto mais de 15 milhões de vezes. E contando...

Em tempos de pandemia, tudo isso parece existir em um universo paralelo. Assistir a essas mulheres se movimentando nas ruas enquanto muitos ainda cumprem a quarentena dentro de casa traz uma espécie de alívio: ainda existe vida lá fora.

Os patins vieram com uma alternativa de atividade para realizar ao ar livre e com distanciamento social —assim como esportes individuais, como o skate e a bicicleta. É verão no Hemisfério Norte, e novas marcas vêm confeccionando os patins quad, aquele clássico dos anos 1970 e 1980, em modelos modernos, coloridos e charmosos. Todo mundo quis entrar nessa onda.

Janta e Coto são frequentemente apontadas como as responsáveis por desencadear essa busca incomum pelos patins retrô. O pico de vendas nos últimos quatro meses foi tão inesperado que esgotou o estoque das mais tradicionais varejistas internacionais do ramo.

Michelle Steilen, fundadora da badalada Moxi Skates, diz que há "uma escassez de patins" e garante que "todo mundo está esgotado". Executivos de marcas tradicionais concordam que é uma demanda sem precedentes. "Lançamos nossos patins quad Pastel Fade durante a quarentena e esgotou no mesmo dia", conta Matt Hill, executivo-chefe da Impala Rollerskates.

No Brasil, a procura por patins ainda não explodiu, mas Angelo Oliveira, gerente da loja especializada Traxart, diz que já observa um "aumento gradativo pelo interesse do esporte", embora não tenha entrado em detalhes sobre vendas. A desportiva Decathlon optou por não falar de números, já que patins não são o foco deles no momento. Pode ser só uma questão de tempo.

Cultura negra

Patinação - Getty Images - Getty Images
Comunidade afro-americana em pista de patinação em Chicago, em 1941
Imagem: Getty Images

De olho nos milhares de vídeos e tutoriais no TikTok e a variedade de perfis criados no Instagram exclusivamente como um diário de novos patinadores, é tentador dizer que os patins estão de volta. Os entusiastas desde sempre diriam que a patinação sempre esteve viva e muito bem, obrigada, mantendo sua relevância especialmente na cultura negra.

A patinação tem um histórico de racismo muitas vezes ignorado. Nos EUA, ela foi uma ferramenta de empoderamento político. Durante todo o século 20, afro-americanos desafiaram a segregação nas pistas não apenas em busca de diversão, mas também como parte de uma luta por igualdade racial, como cita a autora e professora de história americana Victoria W. Wolcott em seu livro "Race, Riots and Roller Coasters: The Struggle over Segregated Recreation in America" (em tradução livre, "Corrida, motins e montanhas-russas: a luta pela recreação segregada na América").

26.ago.1963 - Ledger Smith foi de patins de Chicago a Washington para assistir ao discurso de Martin Luther King Jr. - Getty Images - Getty Images
Ledger Smith, que foi de patins de Chicago a Washington
Imagem: Getty Images

Em 1963, Ledger Smith, conhecido como "Roller Man", patinou mais de 1.000 km durante dez dias, de Chicago a Washington, para assistir ao discurso de Martin Luther King Jr. (o famoso "Eu Tenho um Sonho"). Smith carregava um cartaz no pescoço que dizia "liberdade" e quase foi atropelado de propósito por um motorista racista. Ele virou um símbolo para a comunidade negra de patinação.

Naquela época, os patinadores negros eram muitas vezes impedidos de entrar nas pistas ou relegados à "Black Night", uma noite por semana aberta à comunidade. Anos depois, com o fim da segregação explícita, o racismo nas pistas tornou-se mais sutil, mas ainda estava lá. "Black Night" não era mais um termo aceitável, mas outros nomes codificados de marginalização começaram a aparecer, como "Soul Night", "Gospel Night" ou "Adult Night". Todos tinham a mesma intenção: separar a presença de negros e brancos nas pistas.

"Até hoje os horários de pista para negros são diferenciados, os eventos são policiados e envolvem detectores de metal e diversas restrições que não existem para os brancos", conta o professor de patinação Richard Humphrey, 68, que vive com a família em San Francisco, na Califórnia (EUA). "Eles proíbem do uso de rodinhas menores, que são geralmente utilizadas pelos negros, ou vestimentas, como calças largas ou moletom com capuz."

Richard lembra um episódio recente. "Estávamos em uma pista em San Jose (Califórnia) e o gerente pegou o microfone, cortou a música e disse: 'Vocês não podem mais dançar no meio da pista'. E falamos: 'Mas a gente sempre fez isso'. E a primeira coisa que saiu da boca dele foi: 'Seu povo'. A gente se olhou: 'Ele realmente disse o que eu acho que ele disse?'. Foi horrível. Mas é o tipo de tratamento que a gente tem e continua tendo. Isso não mudou. Eles só encontram novas formas de continuar nos discriminando."

Profissionalmente, os patins entraram em sua vida em 1978, e ele segue firme em cima das oito rodinhas. "Não é meu escape; é a minha realidade todos os dias, na pista ou fora dela. Há uma luta constante por justiça e igualdade. E, mesmo que eu me distraia dos problemas enquanto patino, em algum momento vou tirar meus patins e sair pela porta para enfrentar as mesmas adversidades de sempre."

Dos direitos civis ao hip-hop

A música é um elemento importante na patinação. "Preciso de músicas alto astral e com boa vibração, como funk ou eletrônica, mas adoro músicas dos anos 1990, R&B e hip-hop", diz Oumi Janta.

A ascensão da cultura dos patins nas décadas de 1970 e 1980 tornou-se uma incubadora para o hip-hop —fato retratado no documentário "United Skates" (2019), produzido pelo músico John Legend e disponível na HBO Go.

Nas décadas de 1980 e 1990, as pistas de patinação ofereciam espaço para os rappers que não tinham onde mostrar seu talento. Foi nesse ambiente que começou a carreira de artistas como Dr. Dre, Queen Latifah, Salt-N-Pepa, Mary J. Blige e o grupo NWA.

Uma comunidade de acolhimento

Ana Coto, a influencer que bombou no TikTok, entrou na rede social em fevereiro com a ideia de manter uma espécie de diário de patinação. Mas ela, que é de Porto Rico e tem ascendência cubana, também quis trazer um propósito ao seu canal. "Quero ter uma presença online para incentivar pessoas a terem conversas sobre patins, sobre feminilidade, cultura latina, cultura negra", diz Coto. "Patinar não é apenas o esporte de uma pessoa branca."

Ela, que não se vê como responsável pelo ressurgimento online do patins, acredita que a atividade nunca teve tanto espaço na mídia mainstream porque "são as pessoas marginalizadas que realmente mantêm a patinação viva. Os locais de patinação são geralmente lugares seguros para as comunidades LGBTQ+, crianças e negros."

Vivendo na Europa e patinando há seis anos, Oumi Janta diz que nunca sofreu qualquer tipo de racismo na patinação e que, apesar de se falar em um "branqueamento" na cultura dos patins pós-TikTok, ela não vê cores. "Estou feliz que muitos patinadores negros ganharam mais visibilidade e que há amor por eles. A comunidade de patins é, acima de tudo, sobre amor e acolhimento."

Richard Humphrey diz que tem visto a popularidade do patins oscilar nos últimos 20 anos. "Vi muitos dizendo que os patins eram irrelevantes desde os anos 1970. Mas o que temos feito? Os patins sobrevivem por causa da comunidade afro-americana e nossa capacidade de incluir todas as pessoas que desejam aprender", ele diz. "Agora vamos ver se isso se mantém quando a pandemia passar, porque é a primeira vez que eu vejo algo assim, tão estrondoso, na patinação."

Enquanto isso, é possível que o youtuber Felipe Castanhari ainda esteja preso naquele vídeo de Oumi Janta: