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Para filósofo, é melhor sermos finitos; crença na eternidade banaliza ações

Greg Rakozy/Unsplash
Imagem: Greg Rakozy/Unsplash

Humberto Maia Junior

Colaboração para o TAB

30/07/2020 04h01

Muitos de nós lembramos do dia em que descobrimos nossa finitude: um dia morreremos. Uns encaram com tranquilidade, outros preferem fingir que isso não vai acontecer — mas, no fundo, a consciência da morte nos afeta de forma tão profunda que expressamos esse medo de inúmeras maneiras: com arte, religião, hedonismo e, também, na busca de conhecimento científico.

A extinção humana é uma certeza. Se tudo der certo, ou seja, se não destruirmos o planeta e escaparmos de raios gama ou cometas, em cinco bilhões de anos o Sol deve iniciar um movimento de expansão com boa probabilidade de atingir a Terra.

Mas há grandes chances de sermos extintos bem antes disso. Os candidatos são conhecidos: guerra nuclear, queda de asteroide ou mudança climática.

Fato é que, um dia, todos os vestígios da presença humana no Universo - das pirâmides do Egito aos quadros de Van Gogh às sagas bíblicas — serão apagados do cosmos. E, sem a presença humana, desaparecem valores morais que dão sentido à vida e à existência do planeta (isso acreditando na hipótese de que não há vida inteligente além da humana).

Para Thomas Moynihan, historiador de ideias e filósofo com doutorado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, lutar pela preservação da nossa espécie é importante justamente porque somos nós que damos sentido a tudo isso. Sem a presença humana, o que sobra é um grande vazio. "Pensar na extinção é pensar na responsabilidade que temos conosco como seres morais dentro de um cosmos estéril", afirmou ao TAB.

O historiador das ideias Thomas Moynihan - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O historiador das ideias Thomas Moynihan
Imagem: Arquivo pessoal

Em outubro, Moynihan lança o livro "X-Risk: how humanity discovered Its own extinction" (Riscos Existenciais: como a humanidade descobriu a própria extinção, em tradução livre), em que conta a história do despertar da humanidade para a sua finitude.

Por e-mail, ele conversou com TAB.

TAB: Por que você decidiu adotar como linha de estudo a extinção do ser humano?
Thomas Moynihan: Sempre me interessei pelo conceito da extinção. Na infância adorava fósseis. O filme "Parque dos Dinossauros" teve papel importante nisso. Mais velho, me inspirei nos escritos de Stephen Jay Gould sobre história da biologia e evolução. Na universidade, passei a me interessar por filosofia. Comecei a estudar filosofia contemporânea, mais especificamente pelas linhas "anti-humanistas", que estavam na moda. O objetivo dessa linha é desmontar a imagem do que significa ser humano, criada pelos iluministas. Alguns sugerem que deveríamos até desistir da ideia do "projeto humano", já que, segundo esses pensadores, somos uma espécie tão cheia de falhas que nossa extinção seria benéfica para a natureza e o planeta. Mas, à medida que comecei as ler os textos dos filósofos iluministas, especialmente Kant, me deixei levar pelas ideias idealistas sobre a razão, dignidade e potencial do ser humano. Então, adquiri um entendimento diferente sobre nós: temos falhas, mas podemos nos tornar melhores. Isso significa que nossa responsabilidade é sobrevivermos para atingirmos todas as nossas potencialidades. Não podemos mais ser cínicos ou pessimistas desiludidos. Precisamos de visões esperançosas sobre o futuro e do nosso destino.

TAB: Seu livro conta a evolução da preocupação humana com a própria extinção. Quando encaramos pela primeira vez que o risco de nossa extinção?
TM: Pensamos no fim do mundo desde tempos imemoriais. Mas pensar no fim da espécie humana -- e de todos os nossos valores morais -- é muito mais recente e começou há cerca de 300 anos, a partir do Iluminismo.

TAB: Por que isso aconteceu?
TM
: As razões para isso são complexas. Antes do Iluminismo, acreditávamos que os humanos e os valores humanos eram parte integrante do cosmos, e que o cosmos consistia de vários mundos, habitados por outras formas de vida inteligente. Também era comum a crença de que, se morrêssemos aqui, algo ao menos parecido como nós apareceria novamente. Então, por que se preocupar com a extinção?

TAB: Quando passamos a encarar esses riscos já havia a confiança de que pudéssemos impedir a extinção?
TM
: Assim que passamos a nos preocupar com a extinção e reconhecê-la como um acontecimento trágico único, passamos a imaginar formas de evitá-la. Quando deparamos com o risco de um cometa destruir a Terra, passamos a discutir a ideia de um míssil que desviasse a trajetória do cometa. E, quando despertamos para o risco de o planeta perder as condições que hoje permitem nossa sobrevivência, passamos a discutir soluções de engenharia que permitissem a continuidade da vida.

Vastidão do universo - Yash Raut/Unsplash - Yash Raut/Unsplash
Imagem: Yash Raut/Unsplash

TAB: Como o debate em torno da extinção humana evoluiu?
TM
: No começo, filósofos e cientistas pensavam no assunto de uma forma muito especulativa, sem profundidade e com pouco valor. A discussão era muito distante do dia a dia das pessoas e não afetava nossa tomada de decisões. No começo do século 20, futuristas como H.G. Wells, J.D. Bernal e J.B.S. Haldane tornaram a discussão mais concreta e compreensível às pessoas comuns, mas ainda faltava rigor - o assunto era tema da ficção científica. A partir da Guerra Fria, a extinção entrou na cultura popular, mas apenas pequenos grupos pensavam seriamente em como esse risco deveria afetar decisões de políticas públicas.

TAB: E como é a preocupação atual com o risco de extinção?
TM:
Há muito mais rigor no debate. E é por isso que o assunto está ganhando a seriedade que merece. Agora temos um "kit conceitual" para pensar no tema da forma correta. Em boa parte, devemos isso a centros de estudo como o Instituto para o Futuro da Humanidade, da Universidade de Oxford, e pensadores como Nick Bostrom, Anders Sandberg, Toby Ord. Outra mudança dos nossos tempos é a crescente preocupação em torno da inteligência artificial, algo que não ocorria antes dos anos 2000.

TAB: Podemos confiar na nossa capacidade de inovação para evitar a nossa extinção?
TM
: Sim, nós podemos controlar e direcionar nosso futuro. Seres humanos são únicos na habilidade de manipular o ambiente. Quanto maior o poder sobre o ambiente, maior a nossa capacidade de melhorar as coisas. Mas também é maior nossa capacidade de provocar danos. A mudança climática é o exemplo mais óbvio. Mas isso não pode ser entendido como um sinal para desistirmos de nossa vocação para melhorar o mundo e a nós mesmos.

Bomba atômica explode nas Ilhas Marshall, em 1º de julho de 1946 - Science in HD/Unsplash - Science in HD/Unsplash
Bomba atômica explode nas Ilhas Marshall, em 1º de julho de 1946
Imagem: Science in HD/Unsplash

TAB: Vivemos num período que os cientistas batizaram de Antropoceno, que pode estar provocando a sexta extinção em massa. Sabemos que nossas ações podem provocar nossa própria extinção, mas não conseguimos conter os impulsos que podem nos levar ao fim. Como explicar essa contradição?
TM: Futuristas gostam de dizer que somos primatas com poderes divinos. A verdade é que nossos apetites e preferências evoluíram para garantir nossa sobrevivência. Não herdamos nossos impulsos de uma ordenação racional. Por isso nossas ações servem aos desejos básicos de curto prazo. Também há quem goste de dizer que somos o produto de uma enorme engenhosidade, com o apetite de uma fera. Isso nos levou aos problemas do mundo moderno -- da corrida armamentista à poluição.

TAB: Um dia vamos considerar os impactos de nossas ações?
TM
: Nós estamos melhorando. Nossa espécie tem pensado nos reflexos de longo prazo das nossas ações. O processo é passível de erros e, à medida que nossos poderes aumentam, os riscos aumentam. Um erro para a civilização mesopotâmica do passado tem um efeito muito menor do que o mesmo erro para uma civilização globalizada e com grande poder de influência sobre o planeta hoje. Justamente por isso, precisamos ser mais responsáveis.

TAB: Dê um palpite: qual será a causa de nossa extinção? Algo provocado por nós ou algo natural que não podemos controlar?
TM: Muita gente tem estudado isso, principalmente a partir dos anos 1960. As causas naturais apresentam um risco baixo. Os maiores riscos estão ligados às nossas ações e decisões. Embora não seja algo que possa ser comprovado, acredito que nosso fim pode estar ligado à insaciabilidade dos nossos desejos biológicos. Com a tecnologia, nos tornamos bons em saciar nossos desejos mais primitivos, como apetite pelo sal ou pelo doce. O mundo moderno é definido por estímulos exagerados que confundem e excitam nossos apetites. Pense na pornografia ou nas redes de fast food.

Escola destruída em Chernobyl, na Ucrânia - Yves Alarie/Unsplash - Yves Alarie/Unsplash
Escola destruída em Chernobyl, na Ucrânia
Imagem: Yves Alarie/Unsplash

TAB: O que dizer aos que pensam que, já que seremos extintos, não precisamos nos preocupar em nos tornarmos melhores?
TM: Os niilistas reconhecem que não vivemos num mundo moral. Ainda não vivemos num mundo regido pela moral. É nosso dever criá-lo.

TAB: Aceitar o nosso fim pode nos tornar melhores e mais altruístas?
TM
: Quando admitimos que o universo é indiferente, entendemos a responsabilidade em proteger nossos valores. É uma questão ética. Somos seres morais num cosmos que, ao que tudo indica, é estéril e silencioso. A matéria morta é regra, e não exceção. Pensar na extinção é pensar na responsabilidade que temos como seres morais dentro de um cosmos estéril.

TAB: Por que devemos fazer isso?
TM
: Devemos nos importar com isso justamente porque se importar é algo escasso no Universo. A extinção da humanidade marcaria o fim da moralidade. Essa é a tragédia. Muitas visões do mundo pré-moderno eram definidas pela crença na eternidade do tempo. Isso significa que o que quer que aconteça hoje voltará a acontecer infinitamente, seja aqui ou em outro lugar do cosmos. Se isso é verdade, por que nos esforçarmos em salvar uma espécie animal, se ela pode existir em outros mundos? O mesmo vale para nós. A crença na eternidade banaliza nossas ações e nos impede de assumir responsabilidades. O reconhecimento de que o tempo é finito nos leva a aceitar que existe uma quantidade escassa de tudo que podemos considerar valioso, inclusive nossos valores. Não importa como se define o valor: se em termos de beleza, diversão, utilidade ou prazer... Há um tempo finito para ele. Não existe imortalidade. O universo coloca um limite na quantidade de experiências que podemos criar, enquanto pessoas e enquanto humanidade.