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Arroz tá caro? Alta em preços de alimentos já provocou revoltas populares

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Imagem: iStock

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

03/10/2020 04h00

"O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema", já dizia Ferreira Gullar (1930-2016), muito antes deste Brasil de 2020, onde o preço do arroz tem cabido muito bem em tweets e em textões de Facebook. Pudera: o pacote de cinco quilos está em torno de R$ 30 nos supermercados.

Historicamente, subida de preços de produtos alimentares — ou escassez dos mesmos — costuma ser o gatilho para descontentamento popular. Não pode faltar o pão, de acordo com a máxima panem et circenses, da Roma antiga. "Essa associação entre carestia, fome e eventuais subidas de preço a movimentos de contestação, revolucionários ou não, é uma tradição muito antiga da historiografia, seja na história econômica de orientação marxista ou não", pontua ao TAB o historiador Marcelo Cheche Galves, professor da Uema (Universidade Estadual do Maranhão). "A própria Revolução Francesa [1789-1799] é um marco desta interpretação, de se associar a fome às condições para que a revolução explodisse."

Mas não é porque o prato básico do brasileiro está caro que as pessoas vão sair às ruas. Isto porque a carestia é apenas um ingrediente desse caldo, ainda que a insatisfação sempre possa se configurar como um movimento organizado.

"Podemos pensar em dois momentos da história recente do país, relacionados à alta dos preços e ao comportamento da sociedade. O primeiro, talvez não tão recente assim, remete à Greve Geral de 1917, causada, entre outros fatores, pela reação do operariado e sua drástica diminuição de poder de compra em função de salários estagnados e também de parcas condições de trabalho", afirma ao TAB o historiador Diógenes Sousa, pesquisador da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). "A estes foram se juntando outros trabalhadores e trabalhadoras de outros setores, que culminou num grande ato grevista, com diversas represálias e morte de vários adeptos à greve."

Sousa lembra ainda de outro momento, já na década de 1980. "Diz respeito ao Plano Cruzado, em que o governo Sarney, na tentativa de conter a inflação em níveis exorbitantes, congelava os preços dos alimentos e fazia com que a população denunciasse os supermercados que vendessem seus produtos com preços diferentes daqueles estabelecidos numa tabela, criando assim os chamados 'Fiscais da Sunab' [em referência à Superintendência Nacional de Abastecimento]. A moeda do momento era o Cruzeiro. Cortaram três zeros e mudaram o nome: virou Cruzado. No início, parecia que daria certo, mas o consumo aumentou muito — e os produtores não queriam vender naquelas condições, o que causou um esvaziamento das prateleiras dos supermercados, com filas e racionamento. Consequentemente, a inflação voltou com mais força até a criação do Plano Real, em 1994."

Greve geral de 1917, em São Paulo - Wikimedia Commons  - Wikimedia Commons
Greve geral de 1917, em São Paulo
Imagem: Wikimedia Commons

Quebra-quebras

E, claro, houve momentos em que a insatisfação popular culminou em movimentos revoltosos de fato. Galves lembra de episódio ocorrido no Maranhão: a Revolta dos Balaios ou a Balaiada, que durou de 1838 a 1841. Os balaios eram os vaqueiros, lavradores, artesãos, negros, sertanejos, indígenas e escravos. Eles se voltaram contra as autoridades da província, os latifundiários e os comerciantes.

"A Revolta teve como pano de fundo a elevação do preço da farinha de mandioca, por conta do avanço do cultivo de algodão sobre as terras de subsistência", explica Galves, citando estudo publicado no ano 2000 pelo historiador Matthias Röhrig Assunção, da Universidade de Essex, da Inglaterra.

Pesquisador de alimentos na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), o engenheiro Luiz Gustavo Lacerda considera a Balaiada "uma das mais marcantes revoluções da história nacional". "As motivações são complexas e a alta no valor dos alimentos aparece. O evento foi impulsionado, entre outros motivos, por conflitos entre pequenos produtores e grandes proprietários", avalia ele, ao TAB. "Historicamente, registrou-se que as condições de vida foram muito afetadas por conta do monopólio de carne e também por conta do comércio de farinha, realizado por portugueses. Não foi só isso: o algodão era a principal fonte de riqueza da região, mais especificamente a sua exportação", explica Lacerda. "Porém, o mercado internacional enfrentou uma forte concorrência com os Estados Unidos — e os lucros caíram. Como resultado, houve a disparada de preços de alimentos para o mercado interno. A crise estava instalada."

Entre 1872 e 1877, a Revolta do Quebra-Quilos também movimentou o nordeste brasileiro. Neste caso, a questão foi decorrente de uma lei que padronizava a venda de víveres pelo sistema métrico, o modelo francês. "Os custos do novo sistema acabaram sendo repassados aos fregueses, ou seja, encarecendo os preços", diz Galves. Isto porque, com a proibição dos antigos padrões, os instrumentos de medição novos precisavam ser comprados ou alugados das câmaras municipais.

O quebra-quebra se iniciou em uma vila de Campina Grande, na Paraíba, mas logo o movimento se espalhou por dezenas de outras localidades nordestinas.

No início do século anterior, em 1710, o litoral paulista viveu a Revolta do Sal. Na época, o produto era explorado sob monopólio, de acordo com as regras da Coroa Portuguesa. Para forçar o aumento do preço, os que detinham o controle do sal tinham alguns estratagemas: armazenar grandes quantidades e distribuir menor quantidade do que o usual. Indignado com a situação, um fazendeiro paulista chamado Bartolomeu Fernandes de Faria formou um exército com seus escravos e decidiu ir do Vale do Paraíba até Santos.

Eles tomaram a cidade, arrombaram os depósitos de sal, carregaram tudo o que puderam — e pagaram o preço que consideravam justo, recolhendo inclusive os tributos cabidos à Coroa Portuguesa.

Revolta do Quebra-Quilos, em 1874 - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
Revolta do Quebra-Quilos, em 1874
Imagem: Wikimedia Commons

No século 20

Historiadora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e pesquisadora do Museu Paulista, Eliane Morelli Abrahão, ressalta ao TAB que, ao longo do século 20, também houve episódios no Brasil que levaram à alta de preços. "Em 1936, o Brasil enfrentou dificuldades de abastecimento de farinha de trigo, que era importada principalmente da Argentina", exemplifica.

Em fevereiro de 1952, um fato ocorrido em Belo Horizonte fez com que uma rádio de Moscou noticiasse o "início da Revolução Socialista no Brasil", conta a historiadora. "A população, revoltada pela indiferença das autoridades ante aos aumentos constantes nos processos dos gêneros alimentícios, depredaram estabelecimentos comerciais, açougues e cinemas", narra ela. "A alta vertiginosa foi principalmente da carne e do leite."

"Os protestos contra a alta do custo de vida aconteceram também em Porto Alegre e Recife", acrescenta a historiadora. "No caso desta última cidade, chamavam para uma greve branca: 'deixar de comer carne hoje para defender o bife de amanhã'". Para Abrahão, contudo, há uma diferença fundamental entre o momento atual e os episódios anteriores: a disponibilidade. "Hoje o arroz está muito caro, mas você o encontra e pode comprar, se quiser. Em outros tempos, você não tinha o produto", compara.

Mas não se pode esquecer daquele não tão distante ano de 2013, quando as ruas foram tomadas por milhares de descontentes em todo o país. Havia a bandeira da tarifa de ônibus, havia um misto de insatisfações, havia a semente do impeachment. Mas também estava ali a revolta pela inflação do quilo do tomate.

A discussão, portanto, passa pela preocupação governamental com a chamada segurança alimentar. "Acredito que a política de acesso à alimentação por parte do governo, seja em que esfera for, deva sempre ser primordial, não se tratando aqui do conceito de pão e circo, mas sim de uma necessária sobrevivência do indivíduo", defende o historiador Sousa. "Isto posto, o que deve ser levado em consideração e ser debatido é o modo como tal política é desenvolvida. Se é tão somente um caráter assistencialista ou autopromoção de um determinado governante — ou se, de fato, pretende aplacar um pouco das mazelas e das diferenças entre os setores da sociedade e seus respectivos acessos à alimentação e outros direitos fundamentais."

Como diz o historiador Galves: "em termos de história, miséria é o que não nos falta".