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'Salário emocional': precarização do trabalho ou valorização do bem-estar?

Em discussão sobre "salário emocional", muita gente diz que prefere sua parte em dinheiro - Getty Images
Em discussão sobre 'salário emocional', muita gente diz que prefere sua parte em dinheiro Imagem: Getty Images

Júlia Pessôa

Colaboração para o TAB, de Juiz de Fora (MG)

27/10/2020 04h00

"O salário emocional vai muito além do dinheiro". Como cada rede social possui suas linguagens, gramáticas e condutas específicas, a frase, viralizada nos últimos dias no LinkedIn e no Twitter, ganhou contornos muito diferentes em cada uma destas plataformas, no Brasil e em Portugal.

No LinkedIn, rede que tem foco nos relacionamentos profissionais — ou, como se diria por lá, especializada em "fazer networking" — a ideia de "salário emocional" circulou associada à necessidade de uma preocupação com o bem-estar em detrimento de um foco exclusivo na remuneração financeira.

O post de Paula Santos, sócia e responsável pela gestão de pessoas da empresa 4advisory, de Belém (PA), foi um dos que alcançou quase 28 mil curtidas e mais de 450 comentários na plataforma. A publicação trazia exemplos práticos do que seria essa modalidade salarial, como "ambiente interno agradável", "reconhecimento pelo trabalho realizado", "poder expressar suas ideias", entre outras. A maioria absoluta dos comentários reverbera a interpretação da relevância de que um emprego promova, além de pagamento em dinheiro, a integridade da saúde emocional.

"Foi-se o tempo em que só salários altos eram suficientes para reter os colaboradores. Hoje é essencial conseguir vender para candidatos às vagas abertas um ambiente agradável, em que se tem autonomia, flexibilidade, desenvolvimento pessoal, comunicação clara com a liderança, entre muitos outros pontos que constituem o salário emocional", explica Santos.

Já no Twitter, rede em que se comenta os últimos ditos e feitos pelo mundo afora — e por isso mesmo um berço de tretas, cancelamentos e 'exposeds' — a ideia de um salário emocional não foi bem recebida. Reproduzindo postagens da rede vizinha semelhantes às de Santos, os tweets denunciavam, em sua maioria, um discurso que busca legitimar a precarização do trabalho.

É a avaliação que o gerente de marketing Luiz Cunha, 35, faz do termo, em conversa com o TAB. "Um bom ambiente de trabalho não deve ser 'parte de um salário', é o mínimo que se espera. Além disso, esse tipo de termo normalmente é cunhado pela liderança. Quem está na parte de baixo entende da mesma forma? Essa, para mim, é a pergunta principal".

Nomenclaturas diferentes ocultam práticas exploratórias

Para a psicóloga e Gestalt-terapeuta Carolina Duarte, é preciso, como sinalizou Luiz Cunha, entender por quem e como é feita a argumentação em defesa da ideia de um salário emocional.

"Não deveria ser benefício ou privilégio ter um ambiente saudável de trabalho, um plano de carreira, e todo um conjunto de fatores que prezam pela saúde mental do trabalhador. Também é perigosa a ideia deste salário como um artifício de mercado para 'reter' o 'capital humano' na empresa. Que termo é esse, capital humano? Estamos falando de pessoas, não de máquinas. O capitalismo fagocita os discursos em seu favor, então o salário emocional pode, sim, representar uma precarização: basta ver o que se diz de motoristas e entregadores de aplicativos como 'empreendedores', com 'flexibilidade'", diz ao TAB.

Professor da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) e doutorando do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o antropólogo Oswaldo Zampiroli também entende a proposição de um salário emocional vinculada a uma lógica da exploração capitalista. Segundo ele, é possível associá-lo, na antropologia das emoções, com a promessa de um futuro, manifestada pelos conceitos de "projeto" (associado a uma posição social que se ocupa) ou "sonho" (relacionado a alguma aquisição material).

"Quando um banco fala, por exemplo em 'sonho da casa própria', está falando de um financiamento para atingi-lo, e buscando uma maneira de fazer as pessoas aderirem a esse sistema visando ao futuro. Quando falamos em salário emocional, vejo como um projeto, pensando sobretudo nessa juventude que se enxerga muito mais em termos como 'colaborador', 'associado', 'empreendedor'... Neste contexto, o salário emocional vende coisas que eram entendidas como inerentes, mas aparecem como diferenciais. Mudam-se os nomes, mas a relação de trabalho entre empregador e empregado não só continua a mesma, mas se torna cada vez mais precarizada."

'Nada substitui os direitos trabalhistas'

Segundo o doutorando em direito pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) Ramon Costa, "salário emocional" é uma premissa legalmente inconcebível. "A ideia de salário no direito trabalhista envolve um direito basilar do trabalhador, que compõe sua remuneração e deve ser adequado ao seu trabalho. A concepção de um salário vinculado aos supostos benefícios emocionais que trabalhadores podem receber no exercício de suas profissões configura-se como algo vago, sobre o qual a lei trabalhista não prevê uma regulação."

O advogado menciona que algumas condições incluídas como parte de um salário emocional já são previstas por lei para que as relações de trabalho alcancem o que está disposto contratualmente, como direitos e deveres de empregados e empregadores.

"Algumas questões previstas legalmente já garantem condições básicas de dignidade para o trabalho. É o caso da jornada de trabalho fixada constitucionalmente em até oito horas diárias. Assim, 'salário emocional' não pode se tonar um mecanismo para minar direitos trabalhistas ou entender condições básicas como benefícios extras."

A especialista em gestão de pessoas Paula Santos afirma que esta seria uma interpretação equivocada do conceito. "Nada substitui direitos trabalhistas. O salário emocional vem para agradar as pessoas, torná-las mais felizes, e com isso elas 'performam' melhor, 'vestem a camisa' da empresa, é algo saudável para os dois lados".

'Débito ou crédito?' 'Passa no salário emocional!'

Depois de pedir demissão de um emprego que a deixou com crises de ansiedade, problemas de autoestima, e sequelas físicas como dores no braço e inflamação no nervo ciático, a designer Kamila Tostes, 27, afirma que preocupar-se com o bem-estar dos funcionários não é, de forma geral, uma realidade no mercado.

"Depois de passar por essa experiência de ter zero salário emocional, para mim é algo importantíssimo, até mais importante do que o dinheiro, pessoalmente. Mas é uma ideia que tem que ser criticada sim, porque é muito fácil que pessoas mal-intencionadas usem esse argumento para não oferecerem uma remuneração justa."

Apesar de criticar essa possibilidade de apropriação do discurso sobre o salário emocional", a psicóloga Carolina Duarte frisa, citando Freud, que não se pode "jogar a água do banho com o bebê". Para ela, é essencial pensar sobre as recompensas subjetivas do trabalho. Neste sentido, ela menciona que algumas pesquisas levam em conta outros medidores de qualidade de vida que não o poder aquisitivo, mencionando o indicador FIB, Felicidade Interna Bruta, criado em 1972, no Butão.

"Ele é medido por critérios como acesso à cultura, educação, uso do tempo, relação com meio ambiente, entre outros fatores que não só o consumo, o dinheiro. Medir o PIB de uma aldeia indígena de cultura preservada pode levar a um índice baixíssimo, mas certamente haverá um FIB elevado. Valorizar os aspectos subjetivos tira a gente da mecanização, da ideia de trabalhar para pagar conta."

A relação com as contas apareceu como piada no Twitter, com usuários anunciando que vão passar as contas "no salário emocional" ou dizendo que ele "não paga boletos". A especialista em gestão de pessoas Paula Santos rebate tais críticas.

"Lógico que não se paga contas com salário emocional. Mas se eu não me sentir feliz, provavelmente vou ser demitido ou pedir pra sair do emprego, aí e não pago as contas do mesmo jeito. Quando vejo esses comentários, noto pessoas que ficam pouco tempo em empresas, que são reativas em redes sociais, entendem que trabalho só paga conta, e não se preocupam com o emocional. Preciso ser feliz onde passo a maior parte do meu tempo, e claro, preciso ser remunerado financeiramente. São duas coisas importantes e diferentes".

Carolina Duarte pontua que, na busca pelo equilíbrio entre os valores imateriais e a remuneração em dinheiro, a definição do que constituiria o salário emocional é extremamente variável de pessoa para pessoa, não podendo ser uniformizada.

"Para algumas, o que provoca felicidade, estabilidade emocional, é a segurança, o emprego garantido. Já para outras, essa noção está associada à liberdade, flexibilidade de horários, outros valores. Desta forma, o que traz a felicidade em termos de profissão não é só quanto se ganha no fim do mês. O trabalho é uma forma de estar no mundo, e a ideia de um salário emocional pode aparecer de múltiplas formas para pessoas diferentes", conclui a psicóloga.