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No ECLA, bar socialista do Bixiga, em São Paulo, a esquerda não racha

Claudimar Gomes dos Santos é dono do Espaço Cultural Latino Americano, apontando informalmente como um "patrimônio" da esquerda de SP - Marie Declercq/UOL
Claudimar Gomes dos Santos é dono do Espaço Cultural Latino Americano, apontando informalmente como um "patrimônio" da esquerda de SP
Imagem: Marie Declercq/UOL

Marie Declercq

Do TAB

05/11/2020 04h00

O Espaço Cultural Latino Americano, conhecido como ECLA ou Toca do Saci, é uma mistura nostálgica de como seria um diretório acadêmico dos anos 1970 e um boteco de fim de noite. Para uns, o local é um grande reduto da esquerda "cirandeira"; para outros, é um espaço sem frescura para beber uma cerveja com companheiros de militância.

Definitivamente, o ECLA não tem frescura. Aberto há 11 anos no bairro do Bixiga, no centro de São Paulo, o espaço resiste como um dos poucos — senão o único — declaradamente de esquerda, onde se reúnem diversos movimentos sociais como Democracia Corinthiana, secundaristas de São Paulo, trabalhadores do Sesc e os Entregadores Antifascistas. O clima é de improviso: mesas espalhadas pelo salão são de diferentes modelos, assim como as cadeiras. Gotas de água, remanescentes da chuva que dominou São Paulo durante a semana, escorrem pelos cantos do salão, deixando a madeira inchada de umidade.

Assim que o cliente enfrenta o segundo lance de escadas em um dos prédios na Rua da Abolição, dá de cara com um desenho na parede feito por Carlos Latuff — notório chargista da esquerda, conhecido por seus desenhos excessivamente óbvios. Disputando espaço com a obra de Latuff, um anônimo escreveu "vou cortar sua pica" ao lado da assinatura, lembrando uma antiga briga de movimentos feministas com uma charge do cartunista que criticava uma suposta atitude autoritária. Não vou apagar o que o pessoal escreveu, mas porra", reclama Claudimar Gomes dos Santos, dono do ECLA, da intervenção na parede.

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Desenho feito por Carlos Latuff decora a entrada do bar, que também funciona como um cineclube
Imagem: Marie Declercq/UOL

Com o ambiente vazio e ausente do som das conversas afiadas entre militantes, políticos, acadêmicos e simpatizantes de qualquer ala progressista que dominavam o espaço nos dias pré-pandemia, as imperfeições do local se destacam. Antigamente, o espaço era coberto por inúmeros quadros de figuras notórias da esquerda como Chico Buarque, Che Guevara, Marx e um pôster com um Evo Morales sorridente. Se prestar bem atenção nos escritos das paredes, é quase possível traçar a linha do tempo de manifestações políticas nos últimos cinco anos no Brasil: "Fora Temer"; "4,00 Não"; "Lula Livre" e "Fora Bolsonaro".

A decoração antiga foi retirada por causa da eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), no final de 2018. Foi uma medida protetiva para evitar problemas, justifica. No dia em que o resultado foi divulgado, Gomes fechou todas as janelas e afastou as mesas descortinadas da janela. O clima de polarização política o preocupava. "Fiquei com medo de que jogassem alguma coisa aqui dentro", conta.

Quem ainda resiste no bar é um Vladimir Lênin enorme de isopor. Para sinalizar que, afinal de contas, estamos ainda vivendo em um contexto de pandemia, o Lênin ganhou uma máscara de proteção contra o novo coronavírus. A estátua foi comprada em uma loja de usados e, depois que passou a decorar o ECLA, frequentadores que trabalham no Sesc disseram que o Lênin de isopor fez parte de uma das peças do dramaturgo Roberto Alvim, demitido em 17 de janeiro da Secretaria Especial de Cultura após fazer um pronunciamento inspirado em um discurso de Joseph Goebbels.

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Estátua de isopor de Vladimir Lênin ganhou uma máscara para se proteger da Covid-19
Imagem: Marie Declercq/UOL

O ECLA sobreviveu à eleição, mas não à pandemia. Assim como a maioria dos estabelecimentos, as contas e o aluguel atrasado se acumularam durante os meses. Sem saída, Gomes resolveu anunciar na página oficial do bar que iria fechar as portas definitivamente. A reação ao fechamento veio em seguida e foi criada uma campanha para manter o espaço vivo por meio de contribuições. A solidariedade emociona Gomes, que conta orgulhoso como cada frequentador se mobilizou aqui e acolá para ajudá-lo com a manutenção do estabelecimento. Respeitando as diretrizes de abertura, o ECLA reabriu as portas no final de outubro, mas o movimento está longe de ser o que era antes do isolamento social. "O pessoal que vem aqui é mais consciente e não sai de casa", explica.

Nascido e criado na capital de São Paulo, Claudimar Gomes dos Santos tem 62 anos e atuou por mais da metade da sua vida como militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Aos 18 anos, nos primeiros anos da ditadura militar, tentou junto com um amigo entrar para a Vanguarda Popular Revolucionária, organização política fundada por Carlos Lamarca. Os encontros com o contato do VPR eram feitos na areia da praia de Santos, local considerado seguro de possíveis grampos. Para a infelicidade (ou sorte) de Gomes, o seu contato desapareceu antes que pudessem ser recrutados para a luta armada. Depois disso, se afiliou ao PCB, do qual fez parte até 2010. O desligamento, segundo ele, não foi político.

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Grande parte da decoração temática do ECLA foi retirada após as eleições presidenciais de 2018. Segundo o dono do bar, para evitar problemas
Imagem: Marie Declercq/UOL

Em 2009, Gomes resolveu criar o cineclube Walter da Silveira, focado em filmes produzidos na América Latina. Já o nome "Espaço Cultural Latino Americano" surgiu por causa dos países de origem de cada amigo que ajudou a fundar o bar. A ideia foi posta em prática junto a uma companhia de teatro e uma parte do PSOL, mas logo caiu por terra pela disputa de espaço físico em uma casa na Santa Cecília. "Você sabe como é esse pessoal do teatro, né?". Convencido de levar a ideia do cineclube para frente, alugou um prédio na Rua Abolição, localizada no bairro do Bixiga. Na época, a rua estava abandonada e deteriorada, mas o aluguel era barato. Para manter o cineclube, Gomes teve uma ideia simples: montar um bar para vender bebidas a quem vai ver um filme e deseja ficar depois para uma cervejinha. Vingou.

Junto com o estabelecimento, Gomes também virou um personagem cativo do ECLA. Conversa com todos os frequentadores e abre o espaço para todos os tipos de eventos de movimentos sociais. Divorciado e sem filhos, administra quase tudo sozinho — as redes sociais são feitas por uma amiga. Além do bar e do cineclube, também fundou um bloco de rua, batizado de Bloco Saci da Bixiga, que desfila uma vez por ano pelas ruas do bairro.

Em mais de uma década, o espaço exibiu centenas de horas de filmes e documentários latino-americanos, abrigou saraus, shows, debates e encontros de movimentos sociais progressistas e líderes religiosos. Nesse último, Gomes aponta para um Marx na parede e diz que foi um pastor batista que resolveu eternizá-lo ali. No rol de visitas ilustres está desde Sâmia Bonfim, deputada federal pelo PSOL; o ex-prefeito Fernando Haddad ("ele até tocou violão pro pessoal"); Raphael Martinelli, um dos fundadores da Aliança Nacional Libertária (ANL) e até Cesare Battisti, ex-ativista do Proletários Armados pelo Comunismo, que foi deportado para Itália recentemente, para ser condenado por crimes cometidos nos "anos de chumbo" italiano. "Quando o César estava aqui, lembro de ter dito 'É, César, você deveria ter buscado exílio em Cuba ou na União Soviética'". União Soviética? "Isso, na Rússia".

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Desenhos do Marx e frases políticas ainda estampam as paredes do ECLA. O espaço permaneceu fechado por causa da pandemia
Imagem: Marie Declercq/UOL

Por ser ponto de encontro das esquerdas, Gomes conta que vez ou outra testemunhou a vinda de policiais militares infiltrados no bar, especialmente na época das manifestações contra o impeachment de Dilma Rousseff, em 2015. "Você sabe quando é P2", diz. "Os caras aparecem com uma certa postura, fazendo perguntas sem sentido. Teve um até que ficou fazendo anotações no bloquinho de notas dele".

Por coincidência, um frequentador anônimo chegou a comentar comigo que teve uma discussão calorosa com Gomes e foi chamado de infiltrado. "Acho que ele é um pouco paranoico com P2", comentou.

Gomes diz que nunca ocorreram contratempos por causa de clientes de outro espectro político. "Nunca devem ter pisado aqui, esse bar realmente funciona na base do boca a boca". E caso vierem? "Bom, acho que nem passariam pela porta ao baterem o olho no Che Guevara". Antes de fechar por causa da pandemia, ele lembra de um cliente que apontou para a estátua do Lênin, perguntando quem era. Com receio de criar uma dor de cabeça desnecessária, disse que era um bandeirante. "Ele tirou foto e mandou para a irmã dizendo que o bar tinha uma estátua do Raposo Tavares", conta, rindo.

De certa forma, o bar se tornou um pequeno patrimônio cultural das esquerdas paulistas, aonde nem as mais ferrenhas disputas e rachas políticos (inevitáveis) conseguem se sobrepor à proposta de união de Gomes. Relembrando de eleições passadas, o próprio afirma que não era incomum testemunhar mesas lotadas de dirigentes do PT, ao lado de um grupo do PSOL ou perto de outra mesa com pessoas do PSTU. Na política, adversários. Na Toca do Saci, companheiros de cerveja. "A esquerda só se une na cadeia ou no ECLA", brinca Gomes, escondendo o sorriso simpático por trás da máscara, assim como o Lênin.