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'Só dormi dois dias', conta motoboy que gravou morte de João Alberto

Câmeras de segurança registraram os últimos momentos de João Alberto Silveira Freitas no Carrefour, em Porto Alegre - Divulgação/Polícia Civil
Câmeras de segurança registraram os últimos momentos de João Alberto Silveira Freitas no Carrefour, em Porto Alegre
Imagem: Divulgação/Polícia Civil

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o TAB, de Porto Alegre

06/12/2020 04h01

José* tinha acabado de fazer compras de supermercado como shopper delivery naquele fatídico 19 de novembro. Dos caixas, caminhou até o estacionamento do Carrefour da zona norte de Porto Alegre. Já tinha subido na motocicleta e se preparava para partir quando foi fisgado pela cena que hoje tira seu sono. À porta do mercado, dois seguranças agrediam um cliente negro, identificado como João Alberto Freitas, 40.

Ele viu Beto, como era conhecida a vítima, com o braço esticado para trás como se tentasse se livrar. Presenciou o soco de Beto e a sequência de agressões dos seguranças. Viu gente aglomerar, testemunhas de um assassinato, como ele. Ele viu tudo. O relato abaixo reúne entrevistas com duas testemunhas, José e Sara*, além de informações incluídas em seus depoimentos à polícia de Porto Alegre.

Passados 14 dias da morte do cliente negro, José só conseguiu dormir duas noites, por puro cansaço. Ao deitar a cabeça no travesseiro e fechar os olhos, relembra tudo que aconteceu. As cenas aparecem em sequência repetitiva. É como se ele voltasse para aquele lugar, ouvisse os socos, os gritos, as vozes. Recorda inclusive de uma mulher filmando com o celular e tapando os olhos do filho. "Foi horrível", nas palavras dele. Um pesadelo.

João Alberto Silveira Freitas morreu após ser agredido por segurança de Carrefour e PM temporário - Divulgação - Divulgação
João Alberto Silveira Freitas
Imagem: Divulgação

O registro

O crime se desenrolava a três metros de distância. José puxou o celular do bolso e começou a gravar o que via. Segundo relatou à polícia, chegou mais perto dos seguranças para tentar fazer com que parassem. Falou alto que estava gravando, mas o alerta não surtiu efeito. Não demorou muito para que a agente de fiscalização Adriana Alves Dutra, 51, o alertasse que poderia prejudicá-lo, o "queimando" na loja. Ele respondeu que o que estava sendo feito com Beto não estava certo.

Os seguranças intimidavam quem tentasse ajudar a vítima ou tentasse apartar. "Todo mundo pediu para eles pararem", conta José. Um deles era mais agressivo e tentava pegar os celulares das pessoas que filmavam. Um funcionário de paletó evitava a aproximação de gente. Ao menos 14 pessoas estavam em volta, assistindo, imóveis. Três conseguiram gravar. O vídeo captado pelo celular de José circula pela internet desde a noite do crime. "(Havia) uma preocupação maior por parte dos funcionários com as filmagens das pessoas do que com a vida da vítima", disse à polícia Antonio*, marido de Ana*.

Nem mesmo a esposa de Beto, Milena Borges Alves, 43, foi poupada. Um deles a puxou pelo braço quando ela tentou se aproximar e outro, o de paletó, a empurrou com a lateral do corpo.

Adriana estava aos gritos com as pessoas que acompanhavam a cena. A funcionária insistia que "o público" não sabia o que tinha acontecido no interior do mercado, que recebe diariamente mais de 4 mil pessoas. Adriana aparentava estar "bem transtornada, muito nervosa", pelo que relatou à polícia um colega.

No chão, havia sangue espalhado por toda parte.

Dentro de 15 minutos, Beto já não apresentava mais resistência, nem falava mais. A boca estava roxa, as pontas dos dedos da mão tinham cor diferente. Nesse meio-tempo, os espectadores gritavam que os seguranças haviam matado Beto, que jazia desmaiado. Os seguranças olharam para os presentes e perguntaram se alguém sabia checar sinais vitais. Um senhor de cerca de 70 anos se aproximou, analisou Beto e avisou que ele havia morrido.

Ao ouvirem aquilo, os seguranças Magno Braz Borges e o policial militar temporário Giovane Gaspar da Silva teriam ficado desorientados e se afastaram, pouco a pouco. Cerca de 25 minutos depois, paramédicos do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) chegaram ao local, junto com a Brigada Militar. O local foi isolado e quem estava acompanhando teve de desocupar.

José esperou a chegada da segunda ambulância. Mesmo de longe, escutou o massageador cardíaco gritar: "tente mais forte, tente mais forte".

O motoboy permaneceu cerca de uma hora ali. Nas costas dele estavam esquecidos os produtos comprados no Carrefour. Sem ter mais ter o que fazer, aproximou-se da esposa de Beto e entregou um bilhete com o número de seu celular, caso ela precisasse de testemunhas. Em seguida, subiu na motocicleta e foi embora. Ao chegar à casa do cliente, pediu desculpas e explicou o que tinha presenciado. O consumidor arregalou os olhos e fez cara de apavorado. "Ele me disse: 'olha, se eu fosse você eu ia para casa descansar'. Ele me acalmou, sabe? Por que eu cheguei lá nervoso", relembra José.

Manifestação em frente à loja do Carrefour em Porto Alegre (RS) onde João Alberto Silveira Freitas, 40, foi espancado até a morte - Hygino Vasconcellos/UOL - Hygino Vasconcellos/UOL
Protesto contra a morte de João Alberto em Porto Alegre, em 27 de novembro
Imagem: Hygino Vasconcellos/UOL

Dali, foi para casa. Aquela foi a última vez que subiu na motocicleta para trabalhar com tele-entregas. Já tentou voltar a usar o veículo, mas, toda vez que dirige, sente um mal-estar inexplicável e perde a vontade de seguir viagem. Agora, o colete e o baú das entregas ficam guardados em uma peça da casa. José parou com o trabalho de motoboy, que servia como complemento de renda — no horário comercial ele vende material de construção.

A insônia mexeu com seu casamento e já provocou brigas e discussões, além de cansaço ao longo do dia. Sem ver mudanças, decidiu procurar uma psicóloga. Na primeira consulta, contou tudo o que viu no Carrefour e o que estava sentindo. Na segunda conversa, desatou a falar das cenas, mas foi interrompido com a pergunta: vamos tentar esquecer?

Mas como?

Selvageria gravada

Sara* é a mulher que gravava a cena enquanto tentava cobrir os olhos do filho de sete anos. Seu marido, Antônio*, já estava desconfiando da movimentação dos seguranças ainda no andar de cima, próximo dos caixas.

Como José, ela também também teve dificuldades para dormir e percebeu o filho mais agressivo nos primeiros dias. Procurou a ajuda de amiga da igreja para tentar esquecer. Ainda acorda assustada no meio da noite, e se levanta para ver se o filho está respirando. Depois tenta novamente dormir. Não toma calmantes, pois recentemente descobriu um cisto nos ovários e tem ingerido uma porção de remédios.

A agente de fiscalização Adriana Alves Dutra que tentou impedir a gravação das agressões a João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour - Reprodução - Reprodução
A agente de fiscalização Adriana Alves Dutra que tentou impedir a gravação das agressões a João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour
Imagem: Reprodução

Sara diz que fez a gravação pois tinha receio de que os funcionários do Carrefour apagassem as câmeras de segurança. O celular por pouco não foi levado por um deles, mas outras pessoas se aproximaram e deram proteção.

Ela permaneceu com a família até a chegada das ambulâncias. Depois, os três saíram em direção ao carro e tomaram o rumo de casa. Desde então, os gritos de socorro de Beto não lhe saem da cabeça.

*Nomes trocados a pedido dos entrevistados