O cheiro do ralo: máscaras e entulho mudaram nosso lixo durante a pandemia
Foi o carro fazer a curva na direção da Estação de Tratamento de Esgoto de Barueri para um cheiro bruto atravessar a máscara e invadir o estômago. Cheiro de lixo, cheiro de lodo, cheiro do Tietê. A ETE (Estação de Tratamento de Esgoto) da Sabesp é a maior da América do Sul. Trata 60% do esgoto que a região metropolitana de São Paulo lança efusivamente por privadas, ralos e bueiros. O material contido em suas grades, durante o pré-tratamento, dá uma mostra da relação de parte da população com o lixo que produz, agora com nuances da pandemia.
Na ETE de Barueri, a seleção de lixo sólido mais imediata e grosseira é feita num poço de 34 metros de altura e 19 metros de diâmetro, para onde o esgoto é enviado de início e dali distribuído para a estação. Grades com espaçamento de 10 cm por 10 cm barram troncos, pneus de bicicleta, eletrodomésticos, pernas de manequim. Peças grandes de material de construção também batem ali — nos últimos tempos, em volume considerável, algo que talvez possa ser atribuído a covid-19. Pessoal fez mais reformas, chamou o carreto e não se interessou pelo destino do entulho.
Às vezes, longe até demais.
No primeiro fim de semana de fevereiro, a prefeitura do Guarujá recolheu, em esquema de mutirão, 750 toneladas de material inerte, como restos de demolição, pedras e sucatas de ferro, numa área de descarte irregular de lixo na Marginal Piaçaguera, em Vicente de Carvalho. Caçambeiros viriam de outras cidades, entre elas São Paulo, para depositar à luz do dia ou no breu da noite bateladas de entulho de construção no local. A multa para um flagrante desses varia de R$ 538,28 a R$ 9.808. Aos poucos, o entulho veio voltando nos dias seguintes. É um ponto viciado.
Lixo indiscriminado
Na estação de Barueri, a segunda triagem acontece mais para frente, em gradeamentos de 15 mm e 6 mm, onde fica represada coisa fina, como embalagens plásticas, garrafas de PET e suas tampas, camisinhas, cotonetes, absorventes, bitucas de cigarro, fraldas, mais material de construção e, nos últimos meses, máscaras.
Um levantamento da Sabesp a pedido da reportagem de TAB mostra que, em 2020, houve aumento de 19% na quantidade de materiais sólidos retirados nessa fase de pré-tratamento. Se, em 2019, foram 3.318 toneladas, em 2020 chegou-se a 3.955 delas, somada à seleção das cinco ETEs da Sabesp. Só na de Barueri foram 3.231 toneladas no ano passado, com aumento significativo de tecidos vindos de máscaras faciais. Dava para ver algumas delas, emaranhadas numa camada densa, temperada com material orgânico, que se movimentava em vaivém à porta das grades, além de exemplares avulsos em caçambas. Longe do nariz, longe do coração.
A Sabesp não segrega esse material, como o faria uma cooperativa. As quase 4 mil toneladas de lixo sólido, equivalentes a 4 mil bois parrudos, vão para um aterro em Caieiras, na região metropolitana, tudo junto e misturado. O objetivo do gradeamento é evitar a quebra de equipamentos e o entupimento de bombas da própria ETE, que poderiam comprometer as etapas seguintes do tratamento.
Entrando pelo cano
Outra questão é o óleo de cozinha descartado pia adentro, aquele que sobrou do frango a passarinho, da batata frita, da coxinha, do tempurá. Um litro de óleo pode contaminar até 25 mil litros de água, causando descontrole na quantidade de oxigênio disponível nos rios e a morte de peixes.
Se peixes já não há, o prejuízo é com a parede das tubulações. O óleo assim despejado forma como que placas nas "coronárias" do sistema, estrangulando o fluxo - isso quando não provoca um infarto na rede coletora. Nessa situação, o morador pode se surpreender com os encanamentos regurgitando esgoto dentro de casa. Recomendável é acumular o óleo em garrafas PET e levá-las a postos de reciclagem. Ou despejá-lo no galão destinado a isso que alguns prédios mantêm na área de serviço.
Nada também de jogar papel higiênico no vaso sanitário. Como explica Nivaldo Rodrigues da Costa Jr., superintendente de Tratamento de Esgotos da Diretoria Metropolitana da Sabesp, há países em que o papel é totalmente solúvel em água e as tubulações são mais largas, donde tudo bem dispensar o papel na privada. No Brasil, ele nem sempre se dissolve, pode empelotar e entupir os dutos. "Deve ser jogado no lixo do banheiro", afirma. Outros que estão proibidos de entrar pelo cano: algodão hidrófilo, cotonete, fralda descartável e fios de cabelo.
Ao apurar o olfato na Estação de Tratamento, dá para destrinchar aquele fedor que impactou no início. Tem o cheiro vindo da Attend Ambiental, ali do lado, que lembra o adocicado da queima da cana-de-açúcar nas usinas do interior do estado. A Attend é uma empresa que trata de resíduos não domésticos. Tem ainda o cheiro de ovo estragado do poço distribuidor, o nauseabundo do setor de gradeamento, o acre do lodo ativado.
Os adjetivos para odores não são universais, tampouco as sensações que emanam. Funcionários da ETE de Barueri, por exemplo, se dizem acostumados com os cheiros do lugar e controlam a qualidade dos processos. Os odores são ferramentas profissionais. Quando muito criança, eu mesma gostava do "cheiro de rio podre" do Tietê quando usávamos a Marginal para chegar à zona leste. Significava que estava chegando a São Paulo, minha cidade, minha casa. Nem eu nem meus amigos tínhamos referência de cheiro de rio limpo, e educação ambiental não era pauta em casa nem na escola. O esgoto corria pela rua, situação que metade da população do país ainda precisa inalar.
Na saída da ETE, um córrego escuro já na região de Carapicuíba está margeado por levas de material de construção. Sugere mais um ponto viciado. Um jabuti se aproxima do portão de uma das casas ribeirinhas. Não sei se estava autorizado pelo Ibama a viver ali. Dizem que jabutis têm olfato bem desenvolvido. Que avaliação seu nariz estaria fazendo do lixo humano?
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