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Por que comprar uma obra disponível na internet? Entenda a 'cryptoart'

Bixa orellana (urucum), obra da artista Monica Rizzolli - Monica Rizzolli
Bixa orellana (urucum), obra da artista Monica Rizzolli Imagem: Monica Rizzolli

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

01/03/2021 04h00

Em setembro de 2020, o artista Matt Kane vendeu uma obra de arte por US$ 100.422. Dificilmente isso seria notícia, mas "Right Place & Right Time" chamou atenção por ser a primeira criação em cryptoart a ultrapassar a barreira dos 100 mil dólares. O trabalho é uma imagem que retrata visualmente a volatilidade do valor da criptomoeda bitcoin ao se renovar automaticamente a cada 24 horas, e deve continuar se atualizando diariamente por pelo menos mais dez anos.

Hoje, ele já vale mais de US$ 400 mil. Ou melhor: mais de 260 "ethers" — a criptomoeda na qual seu valor está registrado na plataforma async.

Qualquer pessoa que queira ver o resultado da obra consegue acessá-la a qualquer momento, atualizada, no site e no Twitter do projeto. Por que então alguém desembolsaria centenas de milhares de dólares para chamá-la de sua? E o que afinal é cryptoart?

Não é só quadro de bitcoin. Cryptoart é o termo usado para classificar toda arte vendida em blockchain — uma tecnologia que permite registrar e rastrear transações, como um livro contábil distribuído e acessível por todos com acesso à rede. Calma, não precisa sair correndo se você não entendeu nada. Na prática, com arte funciona assim: um artista se cadastra em uma plataforma de NFT (que em inglês significa non-fungible token, mas já já explicamos o que é isso), e faz um processo chamado de minting. É a mesma palavra em inglês para o ato de cunhar uma moeda — quando o Banco Central faz isso, está atribuindo um valor àquela fichinha de aço. Na cryptoart, mint significa transformar uma arte em um item que pode ser vendido na tecnologia blockchain. Quando alguém vê a obra e decide comprá-la, acessa sua conta da plataforma usando uma carteira de cripto ativos e dá um lance ou desembolsa o valor pedido pelo artista em cripto moeda (geralmente ether). Nesse momento, o valor pago entra na carteira do artista, e o token de arte vai para a carteira do comprador, explica ao TAB Bernardo Quintão, especialista em blockchain .

Respira fundo, e vamos definir NFTs. Um non-fungible token (não ajuda muito traduzir, mas em português significa token não fungível) é um item que tem valor único. Um bom comparativo no "mundo físico" é a própria obra de arte: enquanto você não pode trocar a Mona Lisa (token não fungível) por uma réplica, um real (token fungível) é sempre um real, não importa se estiver na sua conta do banco ou em uma moeda na sua carteira, compara Quintão.

Beleza, e por que fazer esse processo todo com uma obra? O mundo da arte se baseia grande parte em escassez, certo? O quadro "A Caipirinha", de Tarsila do Amaral, só foi vendido por R$ 57 milhões porque há apenas um no mundo pintado pela Tarsila. Isso não ocorre com um gif, com uma fotografia digital ou com a imagem da volatilidade do bitcoin. Não há escassez no mundo da arte digital. Ou melhor: não havia. Com a cryptoart, cada obra ganha seu atestado de originalidade no momento em que passa pelo processo de minting, explica ao TAB o artista-programador Carlos Oliveira, conhecido pelo nome artístico Vamoss, Não que o valor da arte esteja atrelado apenas ao dinheiro pago por ela, mas essa "exclusividade" também ajuda o artista ou a artista a imprimir originalidade sobre a obra e, pela característica de rastreabilidade da blockchain, saber por quais mãos ela passou. O processo também permite "fracionar" a propriedade sobre um trabalho. Em vez de criar dez cópias de uma ilustração à mão, um artista pode vender dez NFTs de um mesmo gif, por exemplo, quase como ações que podem se valorizar ou desvalorizar no mercado crypto.

Quem compra recebe o quê, exatamente? Pode ser um item físico, mas pode também ser um arquivo, um aplicativo, um código ou o que quer que o artista esteja vendendo. No caso de obras digitais, o que você compra é o contrato de uso daquele NFT, que pode vir com alguns arquivos. A artista Monica Rizzolli, por exemplo, que é autora da obra que abre esta reportagem, conta que junto com seus gifs à venda ela disponibiliza sempre uma imagem em PNG para que o comprador possa imprimir e expor a obra em casa, se quiser. E além daquilo que é definido pelo contrato, você leva, é claro, o prazer de ter a obra na sua carteira de cripto ativos para qualquer um ver. "É como se você tivesse uma galeria de arte no seu bolso, e isso para o colecionador tem um valor muito grande", diz Vamoss, que é também diretor de tecnologia da SuperUber, onde foi responsável pela direção de tecnologia do Museu da Língua Portuguesa e diversos outros projetos no Brasil e no exterior. "Talvez você se lembre de quando era criança e colecionava fichinha de cartão telefônico, papel de carta, tampinha. Tem gente que tem mais dinheiro, então compra arte. Para o colecionador, a arte se encaixa numa narrativa que ele está construindo, ele olha para cada obra como se fosse um pequeno trecho de uma história que ele está querendo contar." Rizzolli lembra ainda que a "tokenização" de uma obra traz uma espécie de certificação. "A gente pode concordar ou não, mas a arte hoje está muito baseada na institucionalização. Eu poderia expor um gif numa galeria usando um tablet, por exemplo, e ele ganharia uma espécie de certificação, um valor a mais — porque de alguma maneira foi institucionalizado. Mas na internet ele pode ser reproduzido, copiado. Como você expõe e institucionaliza isso? Eu diria que uma boa resposta é a cryptoart."

Como está o mercado no Brasil? Artistas como Vamoss e Rizzolli já colocaram trabalhos à venda em plataformas de NFT como OpenSea e Rarible — que não possuem curadoria —, mas reconhecem que a cryptoart no país ainda é embrionária. Tanto que ainda é difícil ver alguém falando em cripto arte, assim, abrasileirado. Por enquanto, os artistas estão conhecendo melhor esse nicho e tentando apoiar uns aos outros — inclusive doando trabalhos, como costuma acontecer com iniciantes na pintura, conta Rizzolli. Vamoss criou, junto do colega Marlus Araújo, um grupo no Telegram para debater o tema, além de um documento para nortear quem está pensando em se aventurar nesse mercado. O debate com artistas internacionais costuma ocorrer nas próprias plataformas de NFTs, pelo Twitter ou pelo Instagram.

E quais os possíveis problemas? Os artistas citam custos altos de transação e questões ambientais como dois dos maiores dificultadores. O processo de mint, a mineração das criptomoedas (e consequentemente a venda de um cripto ativo) demandam muita energia, que fica registrada abertamente em cada transação. Vamoss confessa que se questiona com frequência sobre sua entrada na cryptoart por conta disso, mas, ao mesmo tempo, lembra que é exatamente a transparência da blockchain que permite conhecer esse custo ambiental. "Eu não sei quanto de energia gasta um Pix, quanto gasta uma transação de cartão de crédito. Mas eu sei exatamente quanto gasta uma transação no blockchain", pondera. Quintão, que trabalha no Mercado Bitcoin, plataforma brasileira de criptomoedas e ativos digitais, conta que já existem inclusive formas de comprar tokens de neutralização de carbono, calculando e compensando a emissão de CO2 com transferência de recursos para projetos de conservação de florestas. Outra questão que pode gerar dúvidas é a fraude e lavagem de dinheiro — problemas do mundo da arte "física" e que podem parecer mais fáceis nas transações imateriais. Para Quintão, a blockchain resolve parte desse problema, mas abre espaço para outros. "Ao mesmo tempo que tudo fica público, pelas transações serem rastreáveis, tudo é pseudo-anônimo também. Não necessariamente você consegue linkar uma carteira x, y ou z com uma pessoa real. Podem estar acontecendo transações fraudulentas. A vantagem é que você consegue sempre auditar", explica.

Qual a chance de a cryptoart pegar? Todo esse papo pode parecer bem impalpável e longe da realidade para quem nunca fez uma transação com um cripto ativo. Mas isso tende a mudar nas próximas décadas, opina Quintão. "Quem tem filho, sobrinho, ou convive com alguma criança, sabe que, quando vai dar presente de aniversário, eles querem crédito no jogo x, no aplicativo y, querem moedinha virtual", exemplifica o especialista. "O que eu acredito e o que eu vejo acontecendo no mercado de blockchain é a tecnologia se tornar cada vez mais invisível no dia a dia." Rizzolli e Vamoss também veem nas novas gerações uma possibilidade maior de público para cryptoart, tanto na produção quanto na compra desses ativos. "Criptomoeda ainda é uma coisa muito recente, a gente ainda não tem uma clareza do funcionamento dessas estruturas, e não é algo que fez parte do nosso aprendizado, então a gente tem que correr um pouquinho atrás. Mas para as gerações que estão vindo, isso vai ser cada vez mais natural", acredita Rizzolli.