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Dar comida e ouvir: o trabalho em um centro de acolhida temporária

Amanda Moraes, 23, nutricionista que trabalha no CTA Canindé, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL
Amanda Moraes, 23, nutricionista que trabalha no CTA Canindé, em São Paulo
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Thaís Regina

Colaboração para o TAB

04/03/2021 04h01

"A melhor parte do trabalho é trabalhar. Nada como ter suas coisas, não depender dos outros. Se eu pudesse, arrumava mais um serviço ainda pra eu sair logo dessa vida de abrigo." Juliana Querentino, 24, é tímida e chama todo mundo de senhor. Ela mora em um centro de acolhida no Brás, em São Paulo, mas das 7h às 16h, troca de papel.

Desde abril de 2020, Juliana trabalha na limpeza do Centro de Acolhida Especial para Famílias Canindé. Do trauma de 4 anos de desemprego, a jovem paulistana se viu imersa em uma rotina intensa de trabalho e treinamentos com a ONG Médicos Sem Fronteiras — de súbito, Juliana era uma trabalhadora essencial à sociedade na pior crise sanitária do século.

O CTA Canindé, ou CTA 18, é uma parceria público-privada que dá assistência a famílias em situação de vulnerabilidade social. A AEB (Associação Evangélica Beneficente) cuida do funcionamento e da ocupação dos 48 quartos.

Em uma rua colada na marginal Tietê, o espaço se destaca pelo portão azul. Uma grande área externa anuncia o galpão ao fundo, onde ficam cozinha, despensa/escritório, refeitório, banheiros coletivos e os quartos separados com drywall azul e cinza, com uma janela por dormitório. Na lateral, a lavanderia comunitária tem varais de chão e de teto.

Juliana Querentino, 24, agente operacional do CTA Canindé, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Juliana Querentino, agente operacional do CTA Canindé
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Comida e limpeza

Juliana vive em abrigos há 5 anos. Antes, chegou a viver com o companheiro e a sogra, depois de sair da casa do pai, que não aceitava o namoro. Chegou ainda a dividir um aluguel com uma mulher, quando arrumou um bico de vendedora de sapatos, mas um desentendimento a levou de volta ao abrigo. "Nunca mais saí."

A equipe de limpeza tem 10 pessoas, 8 no turno da manhã e 2 no da noite. É bastante serviço: áreas comuns, lactário, fraldário, banheiros, corredores, canil. "Imagina limpar maçaneta por maçaneta, porta por porta, vidro por vidro", conta Juliana, olhando para o lugar, sentada em um dos bancos do refeitório. Ela não se permite reclamar do volume de trabalho, e com frequência conclui seu raciocínio entregando nas mãos de Deus: ele sabe o que faz.

"Tenho me sentido orgulhosa, porque as pessoas precisam desse serviço", conta a faxineira. "Me sinto útil, uma coisa que não sentia há muito tempo. Quatro anos sem trabalhar, sabe? Você começa a perder as esperanças, ainda mais morando num lugar desse. Do nada, você arruma um emprego que é super importante."

Quando a pandemia começou, Amanda Moraes, 23, trabalhava em outra cozinha da Golden Alimentação, empresa terceirizada que atende o CTA Canindé. Há 4 meses, a cozinheira e nutricionista foi transferida e está à frente da rotina alimentar da unidade. É seu primeiro trabalho em centro de acolhimento — diferente de tudo que já viu.

Amanda chega às 8h, quando o café da manhã já está acabando. Entra na despensa, que também é o escritório de uma mesa só, e começa a organizar a parte administrativa da cozinha: faz pedido, organiza as demandas de RH da equipe, confere se tudo anda em ordem para a sequência das próximas refeições.

Às 11h30, o almoço começa a ser servido. Amanda se posiciona no refeitório para organizar a fila e insistir para que os moradores coloquem máscaras. E corre de volta para o escritório.

No fim do dia, a equipe da nutricionista provê por volta de 540 refeições, em 5 atos: café da manhã, almoço, café da tarde, janta e ceia. Além disso, como se trata de um abrigo familiar, o leite é disponibilizado à livre demanda. Três caixas azuis ficam na boqueta entre refeitório e cozinha, de forma que os responsáveis possam pegar e preparar mamadeiras a qualquer momento. É nesse cuidado nos detalhes que Amanda vê beleza.

Pátio e área de convivência do CTA Canindé, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Pátio e área de convivência
Imagem: Keiny Andrade/UOL
Fila no refeitório para o lanche da tarde no CTA Canindé, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Fila no refeitório para o lanche da tarde no CTA Canindé, em São Paulo
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Escuta e conforto

Renata Ambrósio não passa despercebida nos corredores. É "ei, tia!" de um lado, uma história pra ouvir do outro. Ela atua como orientadora socioeducativa há um ano. "O orientador consegue intermediar várias situações, desde uma briga até a falta de algo. Nosso papel é fazer com que a casa trabalhe e as pessoas criem rotinas", explica.

Desde a chegada da covid-19, a carga de trabalho aumentou. Os orientadores receberam a ONG Médicos Sem Fronteiras, que auxiliou tanto com a conscientização sobre a pandemia quanto com a implementação de novos procedimentos, como a medição diária de temperatura de conviventes e funcionários.

"Sobre saúde mental, o que eu digo para meus companheiros de trabalho é: a gente pode conversar e não deve levar nada para casa. Nós temos que estar bem para atender às famílias", diz. Com 42 anos, Renata relembra os 6 anos em que atuou como conselheira tutelar, experiência que a ensinou a extensão e simplicidade do que é humanidade.

"Ser humano é fazer ouvir os dois lados, ver o sofrimento da pessoa que as políticas públicas muitas vezes não alcançam — e ainda assim conseguir trazer a pessoa, dar uma palavra de conforto, mostrar uma saída, isso é ser humano." Ao final da conversa com TAB, a orientadora social conta que sua filha mais velha se inscreveu para ser jovem aprendiz na Secretaria Municipal de Assistência. Renata não poderia estar mais orgulhosa.

Renata Ambrósio, 42, orientadora social no CTA Canindé, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Renata Ambrósio, 42, orientadora social
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Termômetros e preconceito

Depois que a ONG desmontou sua base no Canindé, os orientadores socioeducativos ficaram com a função de medir a temperatura — nesse e em outros abrigos. No entanto, nas duas unidades em que Juliana morou durante a pandemia, a prática nunca entrou em vigor. Há um mês o CTA 18 também deixou de seguir a checagem de temperatura com o mesmo afinco.

Além de acolher as famílias, os orientadores fazem oficinas de esportes a corte e costura, de pintura a confecção de currículos. "Minha rotina varia. Às vezes tá tranquilo, às vezes a casa tá pegando fogo", brinca Israel Marcelino, 50. O professor de história, que há um ano e meio decidiu dar uma guinada na carreira, faz vários paralelos entre as áreas. Como sua esposa também trabalha na área de serviço social, Israel veio preparado para o desafio com uma expressão na ponta da língua: é possível.

Convivente recebe lanche no refeitório do CTA Canindé, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Convivente recebe lanche no refeitório do CTA Canindé, em São Paulo
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Ele dá aulas de reforço escolar e monta apostilas para preparar para o Encceja, o provão do Estado para obtenção de certificado do ensino fundamental ou médio. "Fico muito contente quando dá certo, dá pra ver a autoestima começando a acontecer, sabe?"

Israel conta que, mais de uma vez, durante as oficinas de currículos, residentes pediram um endereço para colocar no documento que não fosse do abrigo. Segundo os moradores, numa entrevista de emprego, o momento em que as portas se fecham é quando se diz onde mora — morador de abrigo não tem vez.

Renata e Israel bolam várias atividades quando sabem que alguém vai buscar emprego. De dicas sobre como se comportar a encenar a entrevista para controlar o nervosismo, vale tudo. Juliana foi uma das pessoas indicadas por seus orientadores de Santana para a vaga no CTA Canindé. É possível ter a vida transformada, mas não sem apoio, não enquanto não há teto. Hoje, o maior sonho de Juliana é alugar uma casa para viver com sua filha, Jamilly, de 2 anos.