'Dízimo a gente recebe por WhatsApp', diz pastor sobre suspensão de cultos
Na apoteose do culto, o pastor convida os fiéis que desejarem se "entregar para Ele e se arrependerem de seus pecados" a irem para beira do altar, com distanciamento social. Centenas de evangélicos aceitam. Fervorosos, sabem todos os louvores, muitos se ajoelham, há choro, aleluias e fé.
Terminada a oração, o bispo Renato Cardoso faz a transição suave de assunto que se espera de quem domina a oratória. Ele comenta que é diferente orar em casa e na igreja. O pastor não se refere à grandiosidade do Templo de Salomão, com colunas douradas na entrada, altar e fachada feitos com pedras vindas de Israel e capacidade de quase 10 mil lugares. O motivo é a sacralidade do lugar.
O bispo prepara terreno para falar da votação do STF (Supremo Tribunal de Justiça) sobre a autorização ou não das missas e cultos no momento mais delicado da pandemia no Brasil. O julgamento é acompanhado com atenção por pastores e fiéis de igrejas evangélicas e foi assunto das pregações de ontem.
Dono do conhecimento teológico que se espera de um religioso que dirige cultos na sede da Igreja Universal do Reino de Deus, Renato Cardoso põe o assunto em perspectiva histórica. O bispo conta que, antes mesmo de existirem igrejas, crentes erguiam altares em tendas para invocar Deus.
"Quando você está na igreja, um lugar santo como este, você tem outro espírito, uma outra atitude. Por isso, [esta é] a casa de Deus, a casa da oração. Então, eles vão votar aí amanhã, não terminaram hoje [quarta-feira], vão votar amanhã se vão permitir os cultos continuarem ou não."
O bispo defende que Deus é o mesmo em todos os locais, mas as pessoas agem de forma diferente no trabalho, em casa e no templo. Por aproximar o evangélico de Jesus, Renato Cardoso afirmou que há uma diferença entre orar em casa e dentro de uma igreja. Mas, como a decisão do STF pode ser outra, ressalta que o Templo de Salomão estará aberto aos fiéis para atendimento individual.
Ele lembra que no domingo o crente poderá levar o "pão da família" para ser abençoado. Explica que, independentemente de ter culto, haverá pastores para a tarefa. "Com culto ou sem culto, nós vamos orar por você. Amém!"
Saúde em colapso
A discussão sobre a realização de missas e cultos ocorre numa semana em que o Brasil bateu novo recorde de mortes — 4.211 óbitos no intervalo de 24 horas. Autoridades de saúde e o Ministério Público de São Paulo pedem distanciamento social e desaconselham celebrações religiosas.
Desde a concessão de uma liminar no sábado, a cidade de São Paulo tem missas e cultos ocorrendo em três turnos, manhã, tarde e noite. As igrejas medem a temperatura dos fiéis, fornecem álcool em gel e interditam a maioria dos assentos. Máscara é obrigação e todos usam, ainda que uns poucos deixem o nariz de fora.
Na Igreja Internacional da Graça de Deus, do Missionário R.R. Soares, o pastor que dirigia o culto da tarde rebateu uma crítica comum endereçada a lideranças evangélicas, a de que estão de olho em dinheiro.
"Queremos o culto pela fé das pessoas, não é pelo dízimo. O dízimo a gente recebe por WhatsApp."
As manifestações dele durante a celebração realizada na tarde de ontem no centro de São Paulo provam que a religião é outra atividade humana influenciada pela pandemia. Para provar a misericórdia e o poder de Deus, o pastor citou casos de pessoas desenganadas que foram curadas depois de familiares fazerem promessas.
O coronavírus abriu a relação dos males do mundo, mencionada numa lista que continha câncer e problemas cardíacos. A Igreja Internacional da Graça de Deus, também coloca despachos, amarrações e ações demoníacas como moléstias da existência.
A solução destes problemas é feita pela oração enquanto os evangélicos se ajoelham e amparam seu corpo no assento da poltrona da igreja, ficando de costas para o altar. O refrão da música tocada na sequência por uma banda composta por saxofone, baixo, teclado e bateria confirma a libertação: Ele é demais, Ele é demais. Cura o enfermo e expulsa Satanás.
À noite, o canal no YouTube da Igreja Internacional da Graça de Deus transmitiu um culto da zona leste de São Paulo. O pastor fez um discurso contundente contra o fechamento das igrejas, sugerindo que a medida pode ser o começo de um cerceamento religioso.
"Nós estamos vivendo momentos difíceis, momentos trabalhosos. As vezes a pessoa acha: é só uma igreja. Hoje estão fechando uma igreja, amanhã vai ver o que vai acontecer."
Fátima Martins, 64, era uma das poucas almas no culto noturno da Assembleia de Deus no Belém e sentiu alívio por voltar à casa de Deus. A aposentada explicou que estar presente na igreja é diferente de ver um jogo no estádio ou assistir a algo pela televisão. Por fim, recamou que, além de não ser a mesma coisa ver no celular, muitas vezes ela não se entendia direito com o aplicativo do Facebook.
O funcionário público Rubens Ruiz, 51, contou que neste momento de angústia e apreensão, ir ao culto da Assembleia de Deus é o "remédio da alma", seu momento de renovar as esperanças. Ele afirmou que rezava em casa, mas a experiência é diferente na casa de Deus.
Negacionismo teológico
O Brás é local de comércio popular transformado em formigueiro humano. Tudo que pode ser falsificado está a venda em lojas e por ambulantes que fecham as calçadas de um lugar apinhado de gente. A confusão transborda para o asfalto e o trânsito é tão travado que motoristas de Uber não aceitam corridas, porque gastariam um tempão numa única viagem. Essa atividade frenética diminuiu, mas não acabou durante a crise sanitária.
Com as igrejas acontece a mesma coisa. No templo da Santuário de São Paulo, dois homens que ficam na recepção afirmam que os cultos não pararam em nenhum momento da pandemia. Eles acrescentam que as atividades de cura, libertação e milagres vão continuar, não importa o que decida o STF.
Mas o número de seguidores não sugere que o cumprimento da promessa causará grande impacto na curva de infecção do coronavírus. Havia três fiéis no culto de ontem. Nem o pastor estava presente. A pregação é uma gravação projetada na parede. O tom das palavras remete ao Velho Testamento com a exigência de obediência às leis divinas para evitar os castigos de um Deus punitivo.
O alerta é feito por um pastor empunhando um martelo de madeira, que faz o religioso parecer um juiz de Direito de novela. No culto, ele açoita o batente a cada insulto desferido aos berros contra Satanás.
A sede da Santuário de São Paulo não tem a megalomania de outras igrejas. Funciona nos fundos de uma galeria, e não é a única com essa arquitetura no Brás. A Igreja Plenitude do Trono de Deus conta com a mesma estrutura espartana e é composta por integrantes preocupados.
Eles assistiam angustiados à sessão do STF de ontem. Todos estavam irritados com Gilmar Mendes, único ministro que apresentou o voto e foi contrário à realização missas e cultos durante a pandemia. Os evangélicos se juntaram aos lavajatistas na antipatia contra o ministro.
Novo normal das instituições
Como se tornou comum nos últimos anos, o STF não age como corte, mas como ilhas do Judiciário. Também não é inédito a divergência na interpretação de leis transcender para a disputa de egos. Na questão dos templos, há outro ingrediente do novo normal das instituições: a politização da pandemia.
O advogado-geral da União, André Mendonça, usou sua fala na discussão sobre o funcionamento de igrejas para atacar medidas de enfrentamento à covid-19 tomadas por governadores e prefeitos. Bolsonarista, evangélico e cobiçando uma vaga no STF, ele classificou o toque e recolher e a suspensão de atividades econômicas como práticas de Estado autoritário. Ao final de sua sustentação oral, afirmou que os cristãos estão dispostos a morrer pela fé.
"Não há cristianismo sem a casa de Deus. Não há cristianismo se o dia do Senhor. É por isso que os verdadeiros cristãos não estão dispostos, jamais, a matar por sua fé, mas estão dispostos a morrer para garantir a liberdade religiosa e de culto."
Enquanto os togados não dão a palavra final sobre o destino dos templos, os cultos em três turnos continuam nesta quinta com capacidade reduzida. Os especialistas em saúde acreditam que impedir eventos religiosos causaria outra redução: a demanda por leitos de hospitais.
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