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Os bastidores do Boteco Comunista, a live de youtubers de esquerda

Boteco Comunista - @geovanedesenheiro/Instagram
Boteco Comunista Imagem: @geovanedesenheiro/Instagram

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

10/05/2021 04h00

É 1º de maio, Dia Internacional do Trabalhador, e a marxista Dimitra Vulcana, 33, está se montando para encontrar os amigos na noite de sábado. De Montes Claros, no interior de Minas Gerais, Dimitra é drag queen e doutora na área de ciências da saúde, dois pontos que lhe fizeram escolher a expressão "Doutora Drag" para se identificar na internet — desde sua estreia, no fim de 2018, ela conta 28,7 mil inscritos no YouTube, mais 38,4 mil seguidores no Twitter e 33,9 mil no Instagram.

Dimitra faz um make caprichado em questão de 50 minutos, contornando a barba modelada. Passa batom roxo e ajeita os cílios postiços. De Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte, Laura Sabino, 21, manda mensagem avisando que vai se atrasar, pois passou o dia distribuindo cestas básicas pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Entram na roda John Mateus, 31, Lucas Machado, 34, e Thiago Torres, 21, o Chavoso da USP.

A live começou minutos atrasada justamente por conta da entrevista. Nela, o tema foi justamente a data, "o dia do tra-ba-lha-dor", silabou Lucas. Isso porque, como bons comunistas, eles argumentam que quem deve ser lembrado são os trabalhadores e suas lutas por direitos, e não o trabalho.

Um brinde a Marx

Não fossem os tempos de pandemia de covid-19, o encontro lembraria um happy hour de camaradas no fim do expediente, uma conversa embalada por cerveja mesclando assuntos cotidianos, humor e política. Na pandemia, porém, o convescote é online: o Boteco Comunista, a live realizada de tempos em tempos por uma liga de jovens youtubers de esquerda, espalhados pelo Brasil.

Cada um na sua casa, eles vão ao ar num clima mais informal do que nos vídeos roteirizados e editados das próprias páginas: Dimitra já se montou ao vivo, uns se animam na cerveja ou no vinho, outros beliscam bananas e melancias ou aproveitam o momento (a última live do dia) para jantar uma quentinha. Em uma das transmissões, caiu como uma luva a trilha sonora de abertura com os versos do funk "Comunista de Buteco", de DJ Saddam: "É o partido cachaceiro comunista / Nosso bagulho é fazer a revolução / Foice e martelo e com o copo na mão".

Foi Dimitra quem teve a ideia de montar o Boteco Comunista, em maio de 2020. O objetivo, lembra ela, era reunir produtores de conteúdo de esquerda radical de diferentes filiações para conversar e trocar ideias. Em maio de 2021, um ano e catorze edições depois, com cerca de 5 mil a 25 mil visualizações cada, consolidou-se a confraria: participam Dimitra, Laura, Lucas, John e Thiago, além de Rojú Soares, 25, e Rebecca Gaia, 19. Às vezes eles convidam Jones Manoel e Zamiliano Frossard, do Revolushow, para participações especiais.

Dimitra reuniu o pessoal, mas quem lhe inspirou foi a socióloga Sabrina Fernandes, do Tese Onze, que foi um tipo de "atravessadora", como diz John, por indicar youtubers de esquerda que engatinhavam na época. "Passei meses com 5 mil inscritos [no YouTube]. Depois de Sabrina me divulgar, decolou para 10 mil", lembra Thiago, que hoje passa dos 193 mil inscritos no YouTube.

Não que alguém esteja realmente contando. "A camaradagem tem muito a ver com nossa intenção, nossa ideia nas redes. O objetivo não é virar personalidade. A gente não segue essa linha de estar na internet, ser influencer e fazer publi. A gente está fazendo trabalho de formação política. A gente tá ligado que a esquerda marxista é minoria na sociedade, daí a importância de se unir", conta Thiago à reportagem de TAB, que acompanhou os bastidores da live de 1º de maio, às vésperas do aniversário de Karl Marx (1818-1883), celebrado na quinta (5). "A gente não quer ícone pop no marxismo. O que nos move não é isso. O que nos move é a mobilização política", diz Dimitra.

Boteco Comunista - Divulgação - Divulgação
Boteco Comunista
Imagem: Divulgação

Tantos hermanos

É nos bastidores que a relação de camaradagem se revela mais genuína - "orgânica e solidária", nas palavras de John. O ponto em comum entre os integrantes é Marx, mas eles têm divergências teóricas, diversas filiações e repertórios. Dimitra milita no movimento Subverta e leciona no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais; John, paulistano que cresceu em Pernambuco, é professor do Instituto Federal do Ceará. Lucas, de Goiânia, é advogado e faz vídeos com análises de filmes e séries.

Os demais são estudantes: Thiago, da periferia de São Paulo, estuda ciências sociais na USP; Rebecca, paranaense de Ponta Grossa (PR) instalada em São Bernardo do Campo (SP), está no bacharelado interdisciplinar em ciências e humanidades na UFABC (Universidade Federal do ABC); de Belo Horizonte, Rojú cursa ciências do estado e Laura, história, na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). "Nós somos a segunda geração de youtubers marxistas", diz Laura.

Ela está certa: se 2013 inspirou a primeira leva de produtores de conteúdo digital de esquerda radical, 2018-2019 (marco da ascensão de Jair Bolsonaro à presidência) foi o gatilho para a segunda geração de jovens comunistas ativos na internet, que enfatizam pautas como direitos LGBTQI+, ecossocialismo, feminismo. "A gente não é 100% igual ideologicamente, mas a gente viu a importância de fortalecer esse rolê."

Dimitra Vulcana, do Boteco Comunista - Divulgação - Divulgação
Dimitra Vulcana, do Boteco Comunista
Imagem: Divulgação

No ar, não há palavra de ordem. Eles riem, refletem, divergem, convergem, choram, citam Marx e cantam Barões da Pisadinha, lembram histórias, analisam acontecimentos atuais, às vezes ficam bêbados. Fazem as lives nos próprios quartos. "Quem está assistindo também está assim [à vontade], né? Tá jantando, de pijama, às vezes se arrumando", lembra John.

Na pandemia, Thiago participa de uma live atrás da outra, incessantemente. A maioria é mais formal, a convite de instituições, com roteiro. No Boteco, tudo é mais informal. "Tem essa abertura, essa liberdade. Não é TCC comunista, é Boteco", define.

"No off", diz Laura, é onde eles mais se ajudam. Alvo de diversos ataques virtuais, inclusive atrelando seu nome a vídeos pornô e publicação de seu número de telefone num site de prostituição, a estudante mineira quase desistiu de produzir conteúdo em 2020.

Um dia, teve uma crise de pânico tão forte que não conseguia parar de chorar. Ela conta que Lucas ficou 2 horas ajudando ao telefone, literalmente contando os segundos dos exercícios de respiração para controlar a ansiedade. Sempre que um dos membros passa por uma crise, o grupo faz uma força-tarefa. "É um fortalecer o outro no momento que a gente está prestes a cair. É amizade, não há palavra melhor."

"Mais que amigos, friends", brinca Thiago. "Hermanos", diz John. "O boteco, o nome já diz, lembra uma mesa com amigos, bebendo, conversando. Um papo leve, por mais que seja sobre assuntos muito sérios", acrescenta Rebecca.

Rebecca Gaia, integrante do Boteco Comunista - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Rebecca Gaia, integrante do Boteco Comunista
Imagem: Arquivo pessoal

O pessoal é político

Aos amigos, Lucas contou recentemente que foi vítima de abuso sexual na infância. Depois, decidiu tratar do assunto publicamente pela primeira vez. As conversas no Boteco, diz o advogado goiano, tentam trazer um olhar mais humano às questões políticas vividas pelos integrantes — e às vezes passam por tópicos traumáticos, o que desperta um tipo de retorno diferente das interações a que estão habituados nos seus projetos individuais.

Após compartilhar a história do abuso, Lucas recebeu relatos por mensagens privadas e, entre eles, algumas pessoas que conseguiram se abrir sobre suas experiências na terapia. Segundo ele, são muitas mensagens de pessoas que dizem que começaram a se formar ou a se organizar politicamente por influência do grupo.

Para Rojú, o Boteco simboliza justamente acolhimento, "num momento de muito desespero, desânimo e incerteza por conta da pandemia".

Filho da quarentena, aliás, o projeto é o elo entre os sete integrantes que nunca se encontraram pessoalmente. Quando a pandemia passar, pretendem se encontrar num bar de fato, talvez em Belo Horizonte. "A gente se acostumou tanto com conversar nesses quadradinhos no computador, que é até difícil imaginar. Mas com certeza teria muita cachaça, abraço, afeto."