Sem verba, rádio que só toca Roberto Carlos agoniza para sobreviver
Em 30 de junho de 2020, o Brasil se aproximava de 60 mil mortes por covid-19. O governo federal anunciou a prorrogação do auxílio emergencial. Os brasileiros atrasados correram para declarar o imposto de renda antes da meia-noite. Mas, para Josias Santana, 53, a grande notícia daquela data não foi dita ou publicada por nenhum veículo.
Foi naquele dia que o radialista, conhecido como Jota, entrou no ar para apresentar aquele que seria o último programa ao vivo dedicado à vida e obra do cantor Roberto Carlos. Ele encarou o microfone com a ideia de que sua voz se calaria apenas temporariamente, sem imaginar que o intervalo iria durar mais de um ano.
Criador da Rádio Roberto Carlos, Jota sentiu o aperto financeiro trazido pela pandemia suspender o projeto independente a que ele se dedica desde 2004, em Recife, cidade que adotou como lar há mais de 40 anos.
Inicialmente, Jota ganhou um quadro de 15 minutos dentro da programação de rádios locais de Recife; quatro anos mais tarde foi para a internet e, em 2017, migrou com exclusividade para o online. Ele desembolsava mais de R$ 1.000 por mês entre equipamentos e internet para revelar curiosidades sobre o "rei", ler mensagens de ouvintes e detalhar a agenda de shows do artista.
Sem alternativas, o comunicador interrompeu o prazer individual de ser locutor e apertou (literalmente) o botão para tocar músicas de Roberto no modo automático. "Tratei apenas como uma pausa, uma pausa que eu nem sequer preferi comunicar ou levar ao conhecimento dos ouvintes", desafoga, sobre o fatídico 30 de junho.
430 mil acessos
Em um canto improvisado de sua casa, o pernambucano de Escada alcança os ouvidos de fãs de Roberto Carlos espalhados pelo Brasil e pelo mundo — França, Panamá e Estados Unidos são pontos destacados no mapa de audiência.
Segundo Jota, a pandemia fez com que novos admiradores pipocassem na página da rádio online. Mais de 430 mil pessoas acessaram o site no mês de agosto, diz; no início da rádio, a marca era de 100 pessoas por dia e olhe lá. Embora expressivos, os números não se traduzem em ajuda financeira.
Na pandemia, ele também viu o número de trabalhos que faz como radialista freelancer para veículos locais despencar. Desde o ano passado, desfez-se de uma mesa de som profissional e um microfone para arcar com os custos de manutenção da rádio que incluem o "plano básico": internet e servidor.
Para contornar as dificuldades, gravou um comunicado que entra no meio da programação musical para chamar a atenção de possíveis patrocinadores. "É desconfortável tratar do assunto porque um ou outro diz que eu quero tirar proveito, que a rádio é do Roberto Carlos e ele tem muito dinheiro. Mas não tem nada a ver. É um projeto pessoal, sem vínculo nenhum, totalmente independente", Jota faz questão de dizer.
'Com o coração na voz'
O radialista sabe por experiência própria que o romantismo de Roberto Carlos acalenta ou dilacera corações desde que o músico se tornou um fenômeno mundial, há quase 60 anos. Entretanto, sua relação com o cancioneiro do rei foge de qualquer obviedade do amor.
O comunicador começou a prestar mais atenção nas músicas de Roberto a partir de 1984, quando seu irmão, Marcos Antônio, 25, morreu atropelado por um carro. O primogênito da família era daqueles aficionados de carteirinha que sabiam as letras das músicas de trás pra frente.
O hit da época era "Coração", que Marcos Antônio adorou de imediato, o que para Jota deu novo significado aos versos: "Com o coração na voz / E o grito mais feroz / Eu canto a mesma dor / De outros corações assim / Que sofrem igual a mim". "O fã, na verdade, era ele [Marcos Antônio]", diz o comunicador, que viu na rádio independente uma maneira de prestar uma homenagem diária ao irmão.
Canção esquecida no repertório do rei, "Coração" tornou-se não só a favorita do radialista, mas uma das razões pela qual ele prefere selecionar composições menos badaladas na rádio. Contraditório ou não, Jota diz encontrar o equilíbrio necessário com os pedidos que recebe diariamente no WhatsApp para tocar aquelas que sempre aparecem no especial de fim de ano na Globo — "Detalhes", "Outra vez" ou "Emoções".
Fãs do rei
A aposentada Hilda Moysés, 69, não pode ouvir "Costumes" ou "Abandono", de rasgarem o peito até dos mais faustos, que volta ao passado: fã de Roberto "desde menina", Hilda vez ou outra volta no tempo em que era noiva e sofreu com o desenlace desprovido de um aguardado "sim" na igreja no começo dos anos 1970. "Gosto de ouvir principalmente quando estou muito chateada, aí fico escutando e choro", conta ela, que diz sintonizar a rádio de manhã, à tarde e à noite, catedraticamente de segunda a segunda, em Igaratá (SP).
Para ela, a surpresa de não saber qual será a próxima música a ser executada sustenta as horas de audiência para a rádio de Jota. Já o aposentado José Bontempo de Oliveira, 68, de São Luís, adiciona que a praticidade de ouvir uma seleção imparável de canções a poucos cliques faz até seus vizinhos escutarem Roberto. "É interessante saber o que vem depois, é randômico", diz, aos risos.
José e Hilda endossaram a criação de um Pix para pedir doações aos ouvintes — ambos depositaram uma quantia que ajuda a manter o projeto vivo. "A rádio não pode acabar. Eu ia ficar mal, ia sentir muita falta porque faz toda a diferença para mim", lamenta ela.
José se despe da sua versão de fã para questionar o que pensaria o ídolo musical, conhecido historicamente por censurar a quem se aproxima de sua biografia. "Rapaz, será que Roberto sabe da existência dessa rádio? Queria saber o que faria. Um trocadinho do Roberto seria suficiente para ela não fechar", diverte-se ele.
Procurada pelo TAB, a assessoria de imprensa de Roberto Carlos não respondeu às perguntas feitas por e-mail até a conclusão desta reportagem.
Rádio de um homem só
Jota se diz um fã consciente, ou seja, não endeusa ou segue o artista aonde quer que vá, como aqueles que vão a shows, na porta da mansão na Urca (RJ), no dia do aniversário do artista ou parcelam uma viagem de cruzeiro em 12 vezes. O maior objetivo, conta, não é que seu atravanco chegue aos ouvidos do rei, mas ter uma estrutura física decente para retomar as atividades.
Para ele, é impossível disfarçar a frustração que sente ao ser impedido de gravar seus programas por causa da falta de verba. O radialista preserva a Rádio Roberto Carlos como uma espécie de trabalho solitário há 17 anos — por opção de Jota, nem mesmo a família ouve as angústias sobre um possível fim do veículo.
Sem trabalho fixo há dois anos, o que entra de dinheiro como repórter esportivo vai para pagar as contas da casa e também para a rádio de um homem só.
"Gosto do Roberto, das músicas dele, mas meu olhar é mais profissional. Minha entrega nesse processo todo é mais razão do que coração. Apesar de que o coração entra, porque eu mexo no bolso, né?", encerra.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.