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'Aqui o boxe é raiz': o que explica o sucesso dos pugilistas de Salvador

Matheus Costa, conhecido como Joe, pratica boxe no Nordeste de Amaralina, em Salvador - Rafael Martins/UOL
Matheus Costa, conhecido como Joe, pratica boxe no Nordeste de Amaralina, em Salvador Imagem: Rafael Martins/UOL

Victor Uchôa

Colaboração para o TAB, de Salvador

05/09/2021 04h00

Às margens do Dique do Tororó, no centro de Salvador, onde quem passa e quem fica é guardado por orixás que flutuam sobre as águas (entre eles Ogum, o guerreiro lutador), uma coreografia de pernas e braços ajuda a compor a paisagem.

Jabs, cruzados e ganchos passam na velocidade dos carros, respirações ofegantes ressoam, pinga o suor, alguém buzina da moto, outro berra do ônibus: "Joga, maluco!"

Diante do sucesso de pugilistas baianos nos Jogos Olímpicos de Tóquio, com o ouro de Hebert Conceição, a prata de Bia Ferreira e o bom desempenho de Keno Marley, a cena acima, se ficção fosse, teria toda pinta de uma bela forçada de barra do roteirista. Mas tem horas que o clichê se impõe: na capital baiana, a chamada "nobre arte" toma as ruas e vira luta do povo.

"Tem muito 'boxel' de playground por aí, mascarado. Aqui não, negão, aqui o boxe é raiz, de contato, diferente do boxe estilista. Até andando a gente já tem uma ginga, um jogo de corpo, tem a coisa da dança. A gente é feito pra isso."

Esta síntese, que mistura sociologia do desporto e resenha de fim de treino, quem faz é Joselito Bispo, 50, mais conhecido nos ringues da Bahia como Mestre Tifum.

Ex-lutador e quatro vezes campeão baiano, Joselito é agente da Fundação da Criança e do Adolescente, responsável por menores em cumprimento de medidas socioeducativas.

Nas folgas, costumava passar sua experiência como pugilista em academias ou aulas particulares. Há um ano, porém, fincou base na beira do Dique. Nascia o projeto Boxe na Rua, onde qualquer pessoa pode treinar gratuitamente.

Aula de boxe na região do Dique do Tororó, no centro de Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Aula de boxe na região do Dique do Tororó, no centro de Salvador
Imagem: Rafael Martins/UOL

Já são cerca de 80 participantes: tem criança junto com idoso, ex-lutadores, jovens e adultos de todas as faixas — alguns só pra manter a forma, outros sonhando com medalhas. Ao comando de Tifum, eles executam cada movimento à exaustão. Qualquer vacilo o mestre vê.

"Contragolpe não é amanhã, não. Tomou, retribui logo", avisa a um. "Esquece o cotovelo dele. Pega entre o baço e o fígado", orienta.

Ali, uma das mais aplicadas é Érica Pereira, 28, que buscou o boxe depois de sofrer com a violência doméstica do ex-marido. Começou treinando com Adriana Araújo, bronze em Londres-2012. Mas, por morar perto do Dique, optou pelas aulas de Tifum.

"Aqui eu encontrei uma grande rede de apoio, virou família. As mulheres treinam e se sentem seguras. O boxe já faz parte da minha vida", diz Érica.

De 'Jubiabá' a Popó

De certo ponto de vista, a assertiva de Érica também ajuda a explicar o sucesso de pugilistas feitos na capital baiana, onde bater luva não é uma moda pós-olímpica. É tradição. E o Boxe na Rua é a representação simbólica de uma modalidade que, de fato, faz parte do ecossistema urbano de Salvador.

Basta lembrar que em 1935 Jorge Amado publicou "Jubiabá", romance que se inicia com o combate, no largo da Sé, entre o protagonista Balduíno, um filho da favela, e o alemão Ergin. "Soldados, estivadores, estudantes, operários, homens que vestiam apenas camisa e calça, seguiam ansiosos a luta. Pretos, brancos e mulatos torciam todos pelo negro Antônio Balduíno", narra o escritor. Spoiler: Baldo nocateia o gringo.

Joselito Bispo dá aula de boxe na região do Dique do Tororó, no centro de Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
'Não tem um bairro que não tenha uma referência no boxe', diz Mestre Tifum
Imagem: Rafael Martins/UOL

Nas décadas de 1970, 80 e 90, muito pugilista endureceu a carcaça nas noitadas do Ginásio Antônio Balbino, o Balbininho, que ficava a poucos metros do Dique do Tororó e foi demolido junto com o antigo estádio da Fonte Nova para dar lugar à arena atual.

Ali surgiram nomes como Luiz Dórea, que veio a revelar o tetra-campeão mundial Acelino Popó Freitas, além de Adriana Araújo, Robson Conceição (ouro na Rio-2016 e prestes a disputar o cinturão mundial) e Hebert, a estrela dourada mais recente. Dórea treinou também Raimundo Oliveira, o Sergipe, pai e treinador da prateada Bia Ferreira.

No Balbininho surgiram outros lutadores de alto nível, hoje professores que dão aulas em espaços públicos, na calçada da orla, na areia da praia ou nas academias espalhadas pela cidade, especialmente nos bairros populares. "Não tem um bairro desse aí que não tenha uma referência no boxe", pontua Tifum.

Gilvan Bispo dá aula de boxe na academia Alto Astral, em Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Gilvan Bispo dá aula de boxe numa região que é alvo de disputas entre facções do tráfico na Bahia
Imagem: Rafael Martins/UOL

Garimpando diamantes

No Nordeste de Amaralina, complexo que agrupa quatro bairros e abriga cerca de 100 mil pessoas, a referência é Gilvan Bispo, que conta 52 anos, 27 deles à frente da Academia Novo Astral.

Num território que é alvo constante da disputa entre facções do tráfico, a Novo Astral resiste como uma redoma de segurança. No meio de um beco sinuoso, cercada por casas sobrepostas, está no topo de uma escada caracol que já exige boa esquiva de quem ousa subir.

Lá em cima, o tatame gasto e a pintura por fazer não impedem que Gilvan oriente com todo cuidado, atualmente, mais de 150 alunos. Não há mensalidade. No espaço por onde já passaram milhares de jovens, a prova do sucesso poderia estar nos troféus que lotam as prateleiras, mas o professor vê de outra forma.

"O objetivo não é fazer um campeão, mas um cidadão. Só que o talento está aí", diz Gilvan, apontando a turma. "Às vezes, a gente encontra o diamante", completa ele, que acabou casando com um.

Sua esposa, Aline Silva, 42, chegou na Novo Astral aos 17. Treinada por Gilvan, ganhou título baiano e brasileiro. Hoje, dá aulas com o marido.

"Os campeões saem é da favela, é boxe raiz mesmo! É só ver quantos da seleção foram de projetos sociais. É o povo que não tem medo, que mete a cara e encontra no boxe uma forma de vencer", observa Aline.

Entre os atuais alunos, ela e Gilvan apostam em dois nomes para futuras medalhas: Maria Eduarda de Jesus, a Duda, e Matheus Costa, o Joe, ambos de 16 anos, categoria Cadete.

"Tenho muita confiança e sei que o professor Gilvan não ia me botar pra lutar sem estar pronto. Tudo o que eu quero é representar bem a academia e meu bairro e ganhar títulos", diz Joe.

"Espero fazer minha carreira no boxe. Quando vi Bia ganhando a prata, pensei: eu posso chegar lá. Ela é um exemplo. Existe caminho largo e caminho estreito. Tenho que fazer o meu", emenda Duda.

Maria Eduarda de Jesus, aluna de boxe da academia Alto Astral, em Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
'Existe caminho largo e caminho estreito. Tenho que fazer o meu', diz Duda
Imagem: Rafael Martins/UOL

Na pipoca

Entre títulos já conquistados e promessas para o futuro, uma suposta anedota sempre surge quando se fala do boxe em Salvador. Afinal, o carnaval forma pugilistas?

"Tem gente que acha que é piada, mas é verdade. No meu tempo, era Balbininho sexta, Olodum no Pelô domingo e Chiclete com Banana na avenida. Pegar o Chiclete era o ápice. A pipoca já fez muito 'boxel'", diz, entre gargalhadas, o professor Tifum.

Também rindo, Aline Silva admite que foi parar no boxe justamente porque "era boa atrás do trio". Gilvan, por sua vez, até reconhece que na pipoca "dá pra ver quem tem um tempero", mas faz a ressalva de que, para ser atleta de verdade, é preciso superar a fase de "trocar pau no carnaval".

Se perdeu nas referências? Segue uma breve conceituação.

Pipoca é a massa de foliões que curtem o carnaval de graça, na rua, muitas vezes espremidos entre a corda do bloco e a estrutura do camarote.

Quando o circuito aperta e o Chiclete com Banana (agora Bell Marques em carreira solo) acelera a cadência do axé agalopado, levantar a guarda é um gesto instintivo, questão de sobrevivência. Forma-se então, na borda do bloco, a Corda do Chiclete, uma entidade etérea do carnaval de Salvador.

No embalo da música, socos falsos riscam o ar (a Geração Z diria "fake punch"), mas se você for atingido, a pancada é de verdade. Pode virar briga ou não, depende do estado de espírito da massa — incertezas de um Carnaval (e da vida).

Diz a sabedoria das ruas que quem "guenta" uma Corda do Chiclete está pronto para transpor qualquer obstáculo e aguentar todo o peso do mundo.

Se tiver talento para golpear e for ligeiro na esquiva, pode, lá na frente, terminar com o peso de uma medalha olímpica no pescoço.