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A volta do futebol dos veteranos de Santa Maria (RS), apesar da covid-19

Volta do intervalo entre Avaí x Assufsm pelo campeonato dos veteranos de Santa Maria (RS). O campo, ainda molhado da chuva da véspera, não foi impeditivo - Renan Mattos/UOL
Volta do intervalo entre Avaí x Assufsm pelo campeonato dos veteranos de Santa Maria (RS). O campo, ainda molhado da chuva da véspera, não foi impeditivo
Imagem: Renan Mattos/UOL

Leonardo Catto

Colaboração para o TAB, de Santa Maria (RS)

21/09/2021 04h01

"Ô, Pelego, se botaram [empurraram-se], estapearam e não deram nem amarelo!" Antes de qualquer cumprimento, Victor Hugo da Cas, ou Pelego, ouviu uma reclamação sobre a arbitragem. Que saudade dessas encrencas. A copa dos veteranos de Santa Maria (RS) voltou a acontecer no último sábado (18), depois de quase dois anos parada.

Ninguém arrisca dizer que Santa Maria, a cerca de 300 km de Porto Alegre, é a capital do futebol veterano, mas a estrutura é como se fosse, e os envolvidos têm certeza de que são. Os atletas somam 1.500, em sete categorias. Os jogadores têm de 35 a 65 anos. Ano passado, ainda mais gente se preparava para mais uma Copa Afuvesma (Associação de Futebol de Veteranos de Santa Maria), que começaria em março. A pandemia os desarmou no último minuto antes do apito inicial.

O retorno do campeonato foi ansiado. É tradicional que todos os jogos da rodada aconteçam aos sábados. Na sexta anterior à reestreia, uma forte chuva passou por Santa Maria. "Foram ligações e mensagens no WhatsApp. E eu: 'calma, temos até amanhã, às 11h'. E hoje amanheceu com tempo bom. Se eu avisar que a rodada é cancelada no site, o pessoal liga mesmo assim", conta Pelego sobre os atletas que esperaram desde março de 2020 para voltar ao campo, mas não podiam aguardar mais uma semana.

A maioria, apesar de ter sido considerada grupo de risco da covid-19, driblou o isolamento, no que acreditavam ser os momentos "mais tênues" da pandemia. Ainda assim, os que já haviam calçado as chuteiras antes do último sábado minimizavam os jogos anteriores. Eram "só amistosos".

Essa foi a resposta do lateral-direito Vilmar Tâmbara, 60. Para ele, assim como para os demais, a rodada de sábado tem outro peso. E isso não se limita a atletas. Mesmo que a ideia fosse não ter público presente, torcedores (alguns mais corneteiros) ocupavam a arquibancada e o bar do Campo do Aliado, na região norte. "Sábado é isso aí. É sagrado. Todos sofreram com a pandemia. Hoje, nem atividade profissional tira alguns daqui. É um motivo a mais para nos cuidarmos e seguir", diz Vilmar.

Campeonato dos veteranos de Santa Maria (RS) - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
Imagem: Renan Mattos/UOL
A arquibancada do Campo do Aliado, no sábado (18), na volta do campeonato da Afuvesma, em Santa Maria (RS) - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
A arquibancada do Campo do Aliado, no sábado (18), na volta do campeonato da Afuvesma, em Santa Maria (RS)
Imagem: Renan Mattos/UOL

No Campo do Aliado, o Avaí, de Vilmar, perdia por 1 a 0 para a Assufsm (Associação dos Servidores da Universidade Federal de Santa Maria). Enquanto isso, o meia Paulinho, 58, se preparava na beira do gramado. Ele é um dos inscritos como exceção de idade na categoria dos 60 anos. Enquanto falava sobre o retorno, viu seu time empatar o jogo. "É meio complicado voltar de repente. Não somos mais guri, temos que ir devagarinho. Estou voltando só pela parceria da gurizada."

Paulinho emenda um "graças a Deus" quando conta que não teve nenhuma perda direta para a covid-19. O mesmo agradecimento foi feito por Vilmar. Pelego ainda lamenta. Perdeu o irmão de 60 anos há quatro meses por complicações da doença.

Ali, o único que usava máscara, e ainda abaixava vez ou outra, era Pelego. Os demais, já vacinados, pareciam despreocupados. Sem máscara, sem teste e sem receio de aglomerar.

Campeonato dos veteranos de Santa Maria (RS): time do Fighera se prepara para entrar no jogo - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
Campeonato dos veteranos de Santa Maria (RS): time do Fighera se prepara para entrar no jogo
Imagem: Renan Mattos/UOL

Centroavante de mil gols

Aos 64 anos, o presidente prefere não jogar para não criar polêmica. Não é por falta de "tu não vai jogar?". "Ele vai jogar para nós, pode botar isso na reportagem", diz um veterano do Avaí. Uma lesão no ombro esquerdo também o tira da escalação.

Querer Pelego no time é unanimidade. Ele tem uma das prateleiras mais pesadas entre os veteranos, com títulos desde 1998, às vezes por mais de uma categoria ao mesmo tempo. O ex-camisa 9 diz ter feito 1.692 gols. Mais que os 1.281 de Pelé, que nunca pisou nos campos de veteranos de Santa Maria.
"Dizem que aqui é o maior futebol de veteranos no Brasil. Eu pesquisei, e até existem outros com quase tanta gente, mas não com as mesmas categorias", conta. "A maioria se prepara durante a semana, agradece por existir o campeonato. Mobiliza muito. Fazem academia para isso. E movimenta também açougue, venda de cerveja."

Na Copa Afuvesma, uma essência interiorana faz todo mundo se conhecer e saber indicar nome, apelido e profissão de companheiros de times e adversários.

O primeiro gol tomado pelo Avaí foi enquanto o atacante Clandio Guterres (o Sabão), 60, ocupava a meta. Leomar Penna (o Peninha), 61, era o goleiro titular, mas se atrasou. No intervalo, já com o 1 a 1, Peninha disse que esperava não ser vazado. A expectativa foi frustrada, e a Assufsm venceu por 3 a 2. Mas estar ali era quase tão bom quanto os três pontos.

Campeonato da Afuvesma, em Santa Maria (RS): Osmar Ferrari, 65, jogou com os pés enfaixados a partir da metade final da partida - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
Osmar Ferrari, 65, jogou com os pés enfaixados a partir da metade final da partida
Imagem: Renan Mattos/UOL
Goleiro do Fighera, Afonso Lorenzi, 65, não tomou gol no sábado - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
Goleiro do Fighera, Afonso Lorenzi, 65, não tomou gol no sábado
Imagem: Renan Mattos/UOL

'Fulano já foi'

Meia hora depois de a reportagem deixar o Campo do Aliado, outra partida se preparava para iniciar no Campo do Fighera, distrito de Arroio Grande, a cerca de 15 quilômetros dali. A brasa da churrasqueira de tonel indicava que o churrasco havia terminado há pouco — e já eram 16h. "Até que enfim voltamos", dizia um dos veteranos.

Antes do começo do jogo, como em uma partida da série A, um minuto de silêncio. Cumprido rigorosamente, o emudecimento é em respeito às vítimas da pandemia.

Em campo, o Fighera recebia o Biomedica pela categoria dos 65 anos — ambos com uniformes azuis inspirados no Paris Saint-Germain. O time da casa vestiu, então, a camisa pelo avesso para diferenciar.

A cordialidade parou ali. As cabeças ficaram quentes. No banco do Fighera, quem não havia entrado desde o começo apoiava. E funcionou. O volante Flores, 72, abriu o placar para o que seria a vitória mínima do Fighera.

O nome é de craque, Carlos Alberto. Mas Flores conta que não costuma figurar nos gols. No tripé de volantes do time, costuma marcar mais.
"Tem gente aqui que vive para jogar. Espera o final de semana por isso", resume o que significa a Copa Afuvesma.

Depois do jogo, a rota era linha direta para casa, no centro da cidade, onde vive com a esposa. Os dois não precisaram enfrentar a covid-19 diretamente. Flores, contudo, pesa o olhar quando é perguntado sobre ter perdido alguém para a pandemia. Um amigo que vivia em Araguari (MG), quase um irmão. "Ele se achava muito forte", lamenta.

Sergio, 67, bateu a cabeça durante o jogo: 'vão achar que foi uma guerra' - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
Sergio, 67, bateu a cabeça durante o jogo: 'vão achar que foi uma guerra'
Imagem: Renan Mattos/UOL
'Canhoto', 70, jogou os 90 minutos pelo Fighera. Quando acabou, vestiu uma camiseta com os dizeres 'Bossa Nova' e acendeu um cigarro, ao lado do vestiário - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
'Canhoto', 70, jogou os 90 minutos pelo Fighera. Quando acabou, vestiu uma camiseta com os dizeres 'Bossa Nova' e acendeu um cigarro, ao lado do vestiário
Imagem: Renan Mattos/UOL

Em Santa Maria, os idosos representam 14% dos casos confirmados de infecção pelo coronavírus, conforme o boletim epidemiológico da prefeitura. Porém, nas mortes, a faixa etária acima dos 60 anos predominou, a exemplo do que aconteceu no mundo. A falta de prática foi motivo para alguns veteranos não retornarem neste ano. Mas, além disso, muitos jogaram, no último campeonato, também o último torneio da vida.

Vaner Teixeira, 64, o Vaninho, tem diabetes. No auge da pandemia, não se arriscou. A perna "diminuiu" com o tempo parado em casa. Só foi se exercitar com caminhadas junto da esposa depois de perceber que a rotina cama-café-sofá-mesa-cama não faria bem.

Nesse tempo, viu a irmã e o sobrinho contraírem o vírus. O mais jovem chegou a ser internado, mas ambos se recuperaram. O pai de Vandinho, de 92 anos, também passou ileso. "O véio é muito naturalista", diz, atribuindo a saúde do pai à boa alimentação.

Mesmo "todo ruim", Vandinho entrou nos minutos finais do jogo. Saiu de campo sorrindo. A expressão leve só mudou quando ele contou sobre ter colegas do veterano que não retornaram. "Agora é que tu vai sentir falta de alguns. Quando tu vem pro campo e vê, o fulano já foi."

Companheiro de time de Vandinho, Élio Noal, 63, trabalha como representante comercial. Teve de diminuir as viagens com a pandemia. Não contraiu o vírus, mas viu um "colega viajante" e amigos não terem a mesma sorte. "Morreram alguns caras do veteranos também. Deu medo."

Até para falar do temor, Élio esboça o tom cômico. Quando conta que foi voluntário em um estudo clínico de vacina contra a covid-19, feito na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), já emenda a bronca que levou da namorada. "Ela é enfermeira e brigou comigo, mas no fim eu tomei a vacina."
Élio fez parte, primeiro, do grupo placebo, mas recebeu duas doses da Astrazeneca assim que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) concedeu o uso emergencial ao imunizante. Na família, ele viu três sobrinhos terem sintomas leves e se recuperarem.

Isso tudo foi suficiente para voltar aos campos apenas quando a data da estreia na Copa Afuvesma estava próxima. Na beira do gramado, a corneta era sua melhor jogada. Ganhou uma água mineral em uma aposta com um adversário depois que o jogador do Biomedica perdeu um pênalti. Antes de entrar, definiu-se como "lateral-direito limitadinho". Jogou como se fizesse piada e saiu dando risada ao final da partida.

Futebol dos veteranos de Santa Maria (RS): No intervalo, o goleiro Peninha, que chegou atrasado, tentou um aquecimento para pegar o ritmo - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
No intervalo, o goleiro Peninha, que chegou atrasado, tentou um aquecimento para pegar o ritmo
Imagem: Renan Mattos/UOL
No intervalo de Avaí x Assufsm, jogadores e bandeirinha contavam piada e falavam de tudo, menos do jogo - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
No intervalo de Avaí x Assufsm, jogadores e bandeirinha contavam piada e falavam de tudo, menos do jogo
Imagem: Renan Mattos/UOL

Melhor idade?

As finais da Copa Afuvesma estão previstas para 18 de dezembro, um sábado. Tem quem não jogue o campeonato inteiro por lesão. O tempo para a recuperação não é tão curto conforme a idade avança.

Isso ainda não é motivo para deixar de fardar e ficar por perto, nem que seja no banco. A festa vale para os veteranos tanto quanto uma vitória. O presidente Pelego, empolgado com a reportagem, já sugere outra pauta. "Descobre quem inventou o termo 'melhor idade' para falar de velhice. A melhor idade era nos 35, 40, que dava para jogar sábado, domingo e segunda."

Os jogadores veteranos podem não aguentar tantos jogos. O oposto — ficar parado como em 2020 — não é opção, mesmo que a pandemia ainda se sinta o cotidiano. Uma tarde de copa por sábado, para eles, é o ideal. E é prioridade em relação a futebol profissional ou outros compromissos. Apesar das carecas e cabelos brancos, brincam de jogar como meninos.