'O que o rico come a gente encontra aqui': o lixo revirado em Fortaleza
O dia amanhecia quando Maria de Lourdes, 43, encostou a bicicleta na calçada em frente ao depósito de lixo de um supermercado Pão de Açúcar de Cocó, bairro nobre de Fortaleza. Atordoada, seguiu em direção ao portão de coleta. Deu uma olhada entre as brechas, colocou os braços na cintura, como sinal de desaprovação, e me perguntou: "o carro do lixo já veio?". Nem precisei responder. Logo na sequência, viu a resposta pelos sinais no chão. "Quando ele passa, deixa essa lama aqui", apontando para o chorume que tomava uma pequena parte da rua Bento Albuquerque.
Segundos depois, Lourdes percebe a aproximação do companheiro Francisco Antônio, 38, e vai logo avisando: "A gente não tem nada hoje". O homem, que trazia uma garrafa de refrigerante e salgados para dividir com outras nove pessoas na quarta-feira (20), desceu da bicicleta e foi ao portão para ter certeza.
Francisco e Lourdes estão no vídeo que viralizou. Nas imagens, enquanto o homem sobe na traseira de um caminhão de lixo, em busca de carne, a mulher cata verduras e frutas nos sacos que enchem um dos tambores retirados do supermercado. O grupo aguardava o descarte do lixo desde o início da manhã daquele 28 de setembro, mas o caminhão passou apenas por volta das 14h.
O casal ficou sabendo do vídeo porque um dos sobrinhos de Francisco havia mostrado a ele pelo celular. Impressionados com a repercussão, não imaginavam que iriam "ficar famosos", como disseram, assim, em meio à miséria. "O que o rico come, a gente encontra aqui (no lixo) também", diz o homem.
Francisco afirma que, depois do vídeo, mais pessoas começaram a buscar alimento no local. Diz que chegam constrangidos e só se aproximam quando o caminhão estaciona. "Ninguém aqui tem prioridade, porque todos têm fome. A gente só pede para que não empurre ou puxe o tambor do outro."
Francisco e Lourdes são moradores do Vicente Pinzón, a 3km do supermercado. Na comunidade, o alcance nacional do vídeo nas redes sociais acarretou em ações das facções criminosas para conter a presença de equipes de reportagem no local. O episódio poderia dar mais visibilidade ao bairro, que registrou assassinatos no último fim de semana.
TAB conversou com o grupo e registrou a movimentação em fotos, mas depois alguns moradores pediram para não aparecer. Eles temem a reação dos criminosos em seus bairros e uma possível retaliação do supermercado.
A tática do casal para garantir comida é chegar entre 5h e 6h. A correria por alimento nesta quarta foi em vão. Esperavam encontrar frutas e verduras descartadas do dia anterior, mas, sem nenhuma justificativa, o caminhão de lixo passou mais cedo.
A falta daqueles alimentos atinge fortemente a renda do casal. Os R$ 40 conseguidos com a venda de material reciclável na última terça (19) terão de ser dividido entre a compra de comida e remédio para a filha mais nova de Lourdes, de 18 anos, que faz tratamento para curar uma doença nos rins. Francisco e Lourdes estão desempregados há quatro anos, período em que trabalhavam como zelador e cuidadora de idosos, respectivamente.
Única chance de comer
Sandra Maria, 57, percebeu que o carro do lixo já havia passado pelo olhar triste de Lourdes. Atravessou a rua e encostou o carrinho de supermercado — com uma bolsa seca, uma caixinha de música e uma camisa azul que encontrou pelo caminho — na parede amarela pichada com a frase, em preto, "19 milhões com fome".
Viúva muito cedo, Sandra criou os dois filhos fazendo faxinas quinzenais nos apartamentos dos ricos da região desde os 14 anos. Nos dias sem trabalho, complementava as refeições com os alimentos descartados pelos supermercados.
Sandra não consegue separar a figura de avó daquela de mãe provedora, na obrigação de alimentar também os quatro netos, cujos pais ficaram desempregados na pandemia. Sem renda, diz que, atualmente, "a única chance que a família tem de comer é retirando da lixeira".
Em setembro, com o retorno das aulas presenciais na rede pública municipal, a preocupação diminuiu um pouco. Os dois mais novos fazem as refeições na creche de tempo integral e retornam no fim da tarde. O ensino acontece com metade da turma presencial e a outra de forma remota, intercalando as semanas.
Sandra não sabe o que vai levar para o almoço. As últimas semanas estão sendo as mais difíceis, com o impedimento de retirada de alimentos nas lixeiras de outros três supermercados da região. À véspera, só conseguiu se alimentar após receber uma quentinha com feijoada e arroz, doada por uma moradora de um prédio de luxo localizado no entorno do local. Sandra havia esperado o caminhão de lixo chegar até o anoitecer. Depois das 19h, seguiu para casa.
A mulher mora numa casa de apenas um cômodo na Comunidade dos Trilhos, espremida entre muros, que divide os bairros nobres Cocó e Aldeota. O "quartinho", herdado após um dos irmãos falecer, está sem água e energia elétrica por falta de pagamento há mais de um ano. Para cozinhar e armazenar os alimentos que pega, reparte com a vizinha.
'Quando uma não tem, a outra ajuda'
A vinte metros, em uma das portas laterais que dão acesso ao supermercado, funcionários observam a movimentação do grupo. Enquanto isso, um homem trajando roupa social, com crachá da empresa, fotografa a pichação no muro feita durante a madrugada.
Uma Land Rover Discovery para enquanto Antônia Anice, 64, e Maria Luzanira, 62, atravessam a rua em passos lentos, uma segurando no braço da outra, em direção à calçada. Em agosto, Anice sofreu um acidente enquanto recolhia comida do lixo. A queda foi tão violenta que a levou a um infarto. Foi socorrida por Sandra, que a acompanhou até o Hospital do Coração de Messejana, onde Anice ficou por um mês.
Anice e Luzanira são vizinhas. Moram no mesmo beco na Comunidade dos Trilhos. As duas têm em comum a solidão. A primeira sente falta do filho que foi morar em Manaus. A outra ainda não superou a perda recente dos pais e do único irmão. A proximidade entre as amigas também serve para superar a fome. "Quando uma não tem, a outra ajuda e, assim, vai levando a vida", explica Luzanira.
Luzanira acredita que a ida das duas ao depósito de lixo do supermercado ocorrerá mais vezes por semana. Vivendo com apenas R$ 90 e R$ 150 do programa Bolsa Família, respectivamente, a renda não será suficiente para a compra dos remédios de que necessitam. "Ela tem esse problema e eu convivo com a catarata. Não tem [remédio] no posto. Não vai sobrar para comer."
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