Reduto de festas na pandemia, Roosevelt sedia homenagem a mortos da covid
Três rapazes subiam, capengando, uma escadaria da praça Roosevelt, região central de São Paulo, às 9h da manhã de 2 de novembro. Seguiam em direção à rua Augusta. Dois deles, abraçados, gargalhavam depois de o terceiro, mais atrás, fazer algum comentário sem nexo. No rosto dos amigos, em vez de máscaras, havia uma maquiagem borrada, carregada em sombra preta, lápis ao redor dos olhos e glitter vermelho. Era feriado, e no dia anterior haviam acabado as restrições a festas e pistas de dança na capital paulista.
Guinho MKS, 32, também estava na Roosevelt naquele mesmo horário. Não voltava de festa, mas já começava mais um dia de trabalho que ele repetia havia um um mês. Toda manhã, o morador da Bela Vista caminhava ao longo do pátio — que é um dos principais pontos da boemia paulistana — para cuidar de 38 mil cataventos espalhados ali em homenagem às vítimas da covid-19.
"Eu reponho os que estão faltando. Vejo como estão os tótens, dou uma ajustada. Tem gente que leva embora os cataventos, o que é normal, aí a gente coloca outro no lugar", explicava Guinho, mais tarde. Naquele Dia de Finados se encerrava a ação do Memorial da Despedida, que ele ajudou a construir produzindo os objetos com material reciclado, num trabalho que mobilizou parte da equipe de aderecistas da Escola de Samba Vai-Vai, da qual faz parte.
"Muita gente passou por aqui e perguntava o que eram os cataventos. Quando a gente dizia, eles ficavam sentidos. Respeitavam", conta.
Processo de escuta
O Memorial da Despedida foi inaugurado pela Prefeitura em 6 de outubro, com um cortejo que reuniu representantes de diversas religiões. Além dos objetos pequenos, dois cataventos gigantes, com mais de cinco metros de altura e feitos de alumínio, foram instalados em duas extremidades da Roosevelt. Um deles voltado para a rua da Consolação, o outro, ao lado da rua Augusta. A ação ficou disponível para o público até o Dia de Finados.
"Foram muitas histórias que acolhemos", conta a monitora Patrícia Sueza, 36. Impossibilitadas de viver o luto completo, com velório e a despedida daqueles que morreram — já que os protocolos sanitários impedem o ritual em morte por covid —, muitas famílias e amigos decidiram usar o simbolismo dos cataventos como homenagem a quem partiu, representando o ciclo da vida em movimento.
A própria Sueza faz parte das estatísticas. Apesar de os índices de morte no país terem iniciado um processo de arrefecimento desde agosto, ela perdeu a avó, dona Terezinha, em decorrência da doença. Prestes a tomar a terceira dose da vacina, a senhora de 84 anos faleceu em 4 de outubro, em Santa Fé, cidade do interior do Paraná.
"Era uma segunda-feira. Na quarta, eu comecei a trabalhar aqui. Até pensei, depois, se eu devia aceitar o trabalho ou não. Mas vim. Nada é por acaso", lembrava Sueza, sentada numa mesa de uma cafeteria na Roosevelt.
"Muitas das dores também são nossas, e de alguma forma ajudei as pessoas a viverem o luto delas", explicava a monitora. Quem desejasse, poderia amarrar nos cataventos uma fita com o nome de amigos e familiares que morreram na pandemia. "Aprendi aqui o processo de escuta."
Contradição
Naquele último dia de ação, 15 pessoas passaram pela praça para visitar o Memorial. Entre elas, uma mulher e uma criança, que emocionaram a também monitora Elisete Jeremias, 55, dupla de Patrícia. "Eles entraram, sentaram na mesa onde estão as fitas e canetas, para escrever o nome das pessoas que queriam homenagear. Ela, então, disse: 'Vai, filho, seu irmão ia gostar da sua homenagem'", contava. "O filho mais velho dela morreu. Caí no choro quando ela saiu."
Jeremias trabalha com teatro há três décadas. Pouco antes da pandemia se alastrar pelo Brasil, estava prestes a estrear um espetáculo. A temporada, porém, foi interrompida. "Fiquei fazendo trabalhos menores aqui e ali. Consegui esse recentemente", lembra. "Foi importante ajudar as pessoas. Algumas chegavam, falavam, outras choravam. É uma maneira delicada de acolher."
Ela também mora na Roosevelt, vizinha de Maurício, e conta que, apesar dos flagras das aglomerações, o Memorial foi respeitado pelas pessoas. "Preservaram, isso é bonito", lembra. Até porque, apesar dos contratempos, acrescenta ela, "quem frequenta a praça também somos nós, moradores, trabalhadores, estudantes, atletas, enfim, pessoas que respeitam a vida."
Finalizada a ação na praça, os dois cataventos gigantes vão agora pra outro local: o parque Augusta, a ser inaugurado neste sábado (06), ali pertinho.
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