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'Novo extrativismo'? Joias da nossa arquitetura são conservadas em Portugal

Retrato do arquiteto Paulo Mendes da Rocha em seu escritorio na rua Bento Freitas em Sao Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress
Retrato do arquiteto Paulo Mendes da Rocha em seu escritorio na rua Bento Freitas em Sao Paulo Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress

Luciana Alvarez

Colaboração para o TAB, de Matosinhos (Portugal)

12/11/2021 04h00

O primeiro desenho do que viria a ser Brasília encontra-se hoje a 7.500 km de distância da capital brasileira, do outro lado do Atlântico, em um museu de Matosinhos — pequena cidade portuguesa na região do Porto.

O original da proposta feita pelo arquiteto Lúcio Costa e enviada ao concurso nacional em 1957 ficou mais de 20 anos sob cuidados de sua família. Sem condições de preservar e divulgar tudo o que o grande arquiteto produziu, o clã enviou este ano o espólio completo de Costa para a Casa da Arquitectura — Centro Português de Arquitectura.

Essa mesma instituição já abrigava tudo o que foi produzido por Paulo Mendes da Rocha, outro brasileiro mundialmente reconhecido, vencedor do prêmio Pritzker, considerado o Nobel da arquitetura.

"Fui chamado de colonizador, mas sinto-me é colonizado pela arquitetura brasileira, pelas maravilhas que encontrei lá", afirmou Nuno Sampaio, diretor executivo da instituição, ao guiar a reportagem do TAB em uma minuciosa visita ao local. Em Portugal, o diretor já recebeu críticas pelo fato de a Casa da Arquitectura, criada com verbas municipais de Matosinhos e mantida com apoio também do governo da República, dar espaço demais para os estrangeiros. Mais especificamente, por dar espaço demais aos brasileiros na Coleção Brasil.

Fachada Casa da Arquitectura - Divulgação - Divulgação
Fachada da Casa da Arquitectura, em Matosinhos, Portugal
Imagem: Divulgação

Como instituição, a Casa da Arquitectura existe há 10 anos, mas a sede atual -- que tem a infraestrutura necessária para preservar, cuidar e expor acervos de arquitetos -- está completando em novembro o 4º aniversário. A reabilitação de uma antiga vinícola para a nova finalidade custou 10 milhões de euros (cerca de R$ 66 milhões).

O diretor da Casa da Arquitectura afirma que o Brasil não está perdendo nada, ainda que seja preciso ir a Portugal para ver desenhos originais de obras tão importantes para o Brasil. "Esses documentos estavam guardados; ninguém podia vê-los. O Brasil -- e o mundo -- vão ganhar acesso a eles", defende. Além de preservar, a Casa tem a missão de disponibilizar o acervo para pesquisadores, assim como incentivar pesquisas. Também se compromete a divulgar o que está sob sua tutela em exposições.

Arquivos dos arquitetos brasileiros em Matosinhos - Luciana Alvarez/UOL - Luciana Alvarez/UOL
Arquivos dos arquitetos brasileiros em Matosinhos
Imagem: Luciana Alvarez/UOL

Vai-se o primeiro arquiteto brasileiro

"Nuno, acho que vou incinerar tudo", foi o que Sampaio conta ter ouvido por telefone de Paulo Mendes da Rocha. Não tinha certeza se o amigo falava sério ou era só uma brincadeira, mas ofereceu a Casa para guardar esse acervo tão importante para a história da arquitetura. "Ele me perguntou: tu queres? Claro que eu queria. Foi tudo muito simples, por decisão dele".

O único pedido que Rocha fez foi que o material ficasse disponível para estudantes que queiram consultá-lo. Sampaio prometeu que mais do que dar acesso a estudantes, iria ativamente divulgar o que fez o brasileiro de forma ampla.

Rocha morreu em maio deste ano, aos 92 anos. A promessa de Sampaio continua valendo. Em 2023, a Casa vai promover uma retrospectiva sobre as obras do brasileiro, com eventos em seis países, entre eles, claro, Portugal e Brasil.

Maquetes de Paulo Mendes da Rocha - Luciana Alvarez/UOL - Luciana Alvarez/UOL
Maquetes de Paulo Mendes da Rocha
Imagem: Luciana Alvarez/UOL

O diretor diz que a Casa não pretende ser "túmulo", pois não recebe nada só para arquivar. Antes da doação do espólio, a Casa já tinha sete projetos de Rocha desde 2018, quando fez a exposição Duas Casas e a Infinito Vão, que também incluía um projeto dele. O arquiteto brasileiro teria ficado impressionado com o trabalho feito pela instituição na época e, por isso, confiou ao local o restante de sua produção. Não teria encontrado no Brasil nenhuma instituição com infraestrutura semelhante.

"Não é uma crítica ao Brasil. Poucos lugares no mundo conseguem cuidar desses acervos, porque não é fácil. Quando nos entregam, estão nos dando custo", diz o diretor da Casa, citando como exemplos o Centro Pompidou em Paris, o MoMA, em Nova York, e o Centro Candense para Arquitetura, em Montreal.

Até 2017, Portugal também não tinha onde abrigar os projetos e estudos dos próprios portugueses. Álvaro Siza, português que assim como Rocha recebeu o "nobel" da arquitetura, enviou em 2014 seu espólio ao centro do Canadá.

Estudo das cadeiras desenhadas pelo Paulo Mendes da Rocha pro Sesc 24 de Maio (SP) - Luciana Alvarez/UOL - Luciana Alvarez/UOL
Estudo das cadeiras desenhadas pelo Paulo Mendes da Rocha pro Sesc 24 de Maio (SP)
Imagem: Luciana Alvarez/UOL

Intercâmbio sim, mas só no digital

Em outubro foi a vez do acervo de Lúcio Costa chegar à Casa. A filha do arquiteto, Maria Elisa, conheceu o museu português por causa da exposição Infinito Vão. Na época, já com 84 anos de idade, deu palestra sobre o trabalho do pai na Casa. "Podiam ter guardado o acervo em outro sítio? Sim. Mas eles viram esse arco de atividades aqui, que no Brasil ninguém faz", afirma Sampaio.

Os documentos pessoais precisam de um lugar definitivo. Eles passaram 20 anos no Instituto Antônio Carlos Jobim, no Rio de Janeiro, mas a instituição alegou que não poderia mais mantê-los. "A Julieta, neta do Lúcio, veio me procurar. Foram mais de 20 anos dessa família de amor e trabalho dedicados a cuidar e organizar os papéis dele, quase sem nenhum apoio. Em cada foto, tentaram identificar quem são as pessoas, se é um canteiro de obras, de qual projeto foi. Se fossem outras pessoas, isso tudo já poderia ter ido para o lixo", elogia Sampaio.

O compromisso da Casa com a família Costa foi manter a "unicidade" do acervo. "A concentração permite leituras históricas melhores", explica o diretor.

O secretário de Cultura e Economia Criativa do DF, Bartolomeu Rodrigues, lamentou a doação. "Em que pese se tratar de bens particulares, o acervo extraído do país possui grande relevância para a memória e cultura nacional", escreveu em ofício ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

Rodrigues questiona se havia documentos tombados entre o material enviado e, ainda que a resposta fosse negativa, se não seria o caso tombá-los. "Os documentos que tratam da construção da capital do país possuem relevante valor histórico e cultural para o Brasil, em especial para o Distrito Federal, sendo abarcado pela proteção constitucional conferida aos bens de natureza material e imaterial", escreveu.

Originais de Lucio Costa do plano-piloto de Brasília - Luciana Alvarez/UOL - Luciana Alvarez/UOL
Originais de Lucio Costa do plano-piloto de Brasília
Imagem: Luciana Alvarez/UOL

Por nota enviada ao TAB, o Iphan explica que os documentos eram pessoais e, portanto, não havia como interferir. "Ainda que haja reconhecimento da importância histórica de Lúcio Costa, cumpre informar que o acervo em questão não é acautelado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e, portanto, não caberia a este Instituto fazer qualquer intermediação junto à família do arquiteto", diz a nota. O órgão informa ainda que pode ajudar a Secretaria de Estado de Cultura do Distrito Federal a recepcionar o acervo, caso haja um reenvio para o Brasil.

Sampaio nem considera a hipótese de enviar nada referente ao projeto de Brasília para qualquer outra instituição, ainda que haja movimentações nesse sentido no Distrito Federal. Nem mesmo temporariamente. "Documentos históricos não viajam. Para exposições, a gente trata em alta resolução, depois expõe eletronicamente ou faz um fac-símile."

Está em processo um acordo entre a Casa e Arquivo Público do Distrito Federal unir digitalmente todos os documentos sobre Brasília em uma plataforma única.

Independentemente de acordos, o material de Lúcio Costa está sendo tratado. Em janeiro de 2022 deve entrar no ar uma grande plataforma da Casa, na qual os visitantes poderão ter acesso gratuito aos documentos, vê-los organizados em exposições, ter a geolocalização de cada projeto, acessar as gravações de palestras e debates. Haverá ainda uma loja virtual, com livros e objetos projetados por todos os que hoje "moram" na Casa da Arquitectura.

Pátio interno da Casa de Arquitectura em Matosinhos (Portugal) - Divulgação - Divulgação
Pátio interno da Casa da Arquitectura
Imagem: Divulgação

Aos críticos da Casa por abrigar ícones brasileiros, Sampaio garante que Lúcio Costa e Paulo Mendes Rocha estão bem cuidados. "Os documentos não eram classificados, nem tombados. Por que não se preocupam onde está a Lina (Lina Bo Bardi)? O Lelé (João Filgueiras Lima)? O (Vilanova) Artigas? A família do Paulo Penteado está lutando para manter o acervo. Estão precisando de atenção", lembra o diretor da Casa.

Sampaio diz que todo o trabalho de preservação e divulgação, seja em Portugal e no Brasil, é bem-vindo. "O mundo tem que reconhecer essas figuras ímpares, que fazem parte da cultura mundial, e que são brasileiros", afirma.

Novo extrativismo

Por mais que hoje o Brasil não tenha um museu de arquitetura e urbanismo, a saída desse material do território nacional cria uma "lacuna permanente" nas possibilidades de organizar tal instituição no futuro, defende o arquiteto Luiz Eduardo Sarmento, diretor Cultural do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). "Eu vejo mais como processo de novo extrativismo, não como colonização inversa. Tivemos uma evasão de bens valiosíssimos, cujo valor simbólico nem dá para precificar. A gente empobrece nossas coleções e possibilidades", disse ao TAB.

Segundo ele, a comunidade de arquitetos brasileiros foi pega de surpresa com a decisão da família de Costa de enviar tudo para Portugal. "Todo mundo imaginou que estava bem guardado. Por mais que a família estivesse enfrentando dificuldades, isso não foi colocado publicamente", diz. Para ele, essa informação poderia ter sido um estopim para a criação de condições melhores no Brasil. "Teria sido um motivo, uma energia de ativação, para se unir forças e se inaugurar um museu da arquitetura brasileira", imagina.

O IAB reconhece que há muito mais em risco e é preciso agir rápido. Há a intenção de que sedes estaduais do IAB sejam transformadas em locais capazes de guardar coleções importantes, mas a instituição enfrenta dificuldades de recursos financeiros e humanos. "A profissão de arquiteto no Brasil se desenvolveu junto com o Modernismo. A arquitetura brasileira foi ousada, vanguardista e influenciou o mundo. Mas a primeira geração de arquitetos morreu e, em geral, já são os netos que estão fazendo guardando esses documentos. A tendência é de dispersão. Estamos num momento crucial para preservar a memória da arquitetura do país", afirmou Sarmento. Se nada for feito, o Brasil vai continuar a mandar seu "ouro" para longe.