'Preto x Branco': a volta do clássico de 49 anos da várzea paulistana
A porção sudeste da Grande São Paulo, onde bairros da Zona Sul, Zona Leste e do ABC (Santo André, São Bernardo e São Caetano) se encontram, é em grande parte um amontoado de concreto, fábricas e galpões abandonados ou decadentes e córregos fedidos que correm ao lado de grandes e empoeiradas avenidas, viadutos e esqueletos de obras públicas.
É um cenário melancólico até para os padrões paulistanos, mas, como diria um poeta em um dia ruim, até no cimento nascem flores — no caso, as recordações e amizades da época em que a região era um celeiro do futebol de várzea paulistano.
"Onde hoje é favela de Heliópolis [a maior da cidade], tínhamos quase trinta campos de futebol de várzea. Todo mundo tinha um time e ídolos. Não dava para morar aqui sem saber dançar ou jogar bola", diz Luis Carlos Martinez, 71. Ele mora atualmente em Valinhos, no interior paulista, mas veio à capital para o evento que mobiliza a comunidade local há 49 anos: o clássico "Preto x Branco", disputado no campo do Grêmio Recreativo Flôr de São João Clímaco.
Preto no branco
É um jogo amistoso disputado por amigos que se conhecem desde a infância e têm em comum a paixão pela várzea. Apesar do nome, todos os entrevistados pelo TAB fazem questão de esclarecer que a peleja nada tem a ver com questões raciais. Ao invés de, digamos, separar os times entre solteiros e casados, eles optaram pela opção que ficou famosa. Tanto que as equipes, na prática, não seguem critérios estabelecidos pelo IBGE. Há quem responderia "negro" no censo que joga pelo time dos brancos e vice-versa.
"Já joguei o preto contra branco várias vezes. O grande barato do jogo é rever os amigos de infância. Esse que estava aqui agora eu conheço há 50 anos. Com aquele ali, estudei no primário", conta Martinez. "Isso aqui (o bairro) já foi um berçário de jogador, mas hoje o Flôr é o único time varzeano que permanece".
Martinez é um dos idosos atléticos com sorriso no rosto e testa brilhante pelo suor que andam pela sede do G.R. Flôr fazendo piadas, relembrando causos e piadas internas nascidas há décadas. Eles têm a postura e o olhar altivo de quem carrega a cultura da várzea nas memórias e no corpo.
É o caso de "Pneu", um dos garotos propaganda da partida ao lado de "Litão". A dupla ilustra as peças de divulgação de "Preto x Branco" por formarem a dupla mais antiga a disputá-lo. Pneu é negro. Litão, branco.
Como um ídolo veterano acostumado ao assédio da imprensa, Pneu, apelido de Wilson Pires da Silva, se reserva o direito de tomar um belo banho antes da entrevista e tem um discurso pronto sobre o jogo. Sua fala e gestos têm a elegância orgulhosa de um sambista dos anos 30. "Faço parte do grupo de idealizadores da partida. Foi uma brincadeira que se prolongou. É uma confraternização que acontece todo ano e não esperávamos que durasse tanto tempo", explica.
Berço de estrelas
Na era pré-pandemia, o G.R. Flôr chegava a receber duas mil pessoas no dia do jogo. Em 2020, a partida não aconteceu. Neste ano o público, apesar de significativo, claramente ainda não voltou ao que era. Muitos dos que estão em campo ou vieram para apreciar a disputa já jogaram pelo G.R. Flôr, um time fundado em 1952 e multicampeão na várzea.
Nas paredes da lanchonete da sede, fotos de cinquenta anos atrás imortalizam equipes e jogadores que podem não ser conhecidos fora de São João Clímaco e região, mas ali têm o peso de um time grande da série A.
Marcelinho Carioca, Amaral, Zé Maria, Wladimir. Várias ex-estrelas já compareceram para prestigiar "Preto x Branco". Na edição deste domingo, foi a vez do ex-atacante Viola. Ele chegou em uma moto chique e gigantesca — e passou a maior parte da partida isolado na frente, ou, como boleiros costumam dizer, ficou na "banheira".
O clássico, na verdade, foram três: o dia começou com os veteranos em campo. Depois entraram os não tão veteranos assim e a nova geração de "Preto x Branco" fechou as disputas.
Estatísticas
Diferente de Pneu, Litão não entrou em campo em 2021 por conta de problemas de saúde. Mas esteve, claro, no G.R. Flôr. É expansivo e simpático e tem o físico compacto de um peladeiro idoso. "Eles falam que eles (pretos) ganharam mais vezes. Eu acho que fomos nós (brancos). Não tem ninguém fazendo a conta, ninguém marca no papel", diz o veterano.
Apesar da fama, ele também não faz ideia de quantos gols já marcou no clássico. Também garante que não consegue escolher apenas um momento inesquecível dentro de campo. "Todos são inesquecíveis", diz Litão, sem transparecer falsa humildade ou demagogia.
"Fiquei doente e decidi que só ia jogar quando melhorasse", conta Litão. Covid? "Não, não. Meu negócio é outro", explica antes de ser interrompido por um amigo. "É de tanto tomar cachaça!", revela.
Se alguns veteranos não se importam em registrar seus números, há quem já comece a conversa vangloriando-se a respeito. "Fiz três cortes de cabelo femininos e três masculinos em nove minutos, cinquenta e nove segundos e nove décimos", diz um senhor baixinho que acaba de jogar. Segundo ele, trata-se de um recorde mundial devidamente registrado que lhe rendeu fama e idas a programas de TV.
Mas não se engane. Dono do salão "Chiquinho e seus artistas", Francisco Caponero também é bom de bola. Até tentou ser profissional, mas diz que a estatura não permitiu. "Tive chance de ir para o Santos, a Portuguesa. Eu teria sido o menor jogador do Brasil com 1,54 de altura", conta o cabeleireiro e lateral esquerdo, que garante: "eu subia bem de cabeça". Sua artilharia, no entanto, é feita em grande parte de gols de pênati, ele esclarece.
'A bola procura'
Murilo Brandão, 26 anos, é da nova geração do G.R. Flôr e do "Preto x Branco". No time desde os 15 anos, ele se diz apaixonado pela várzea. "Meu tio me apresentou a várzea e desde então não consegui mais parar de jogar". Ele aguardava para atuar pelo time dos pretos quando a reportagem o abordou.
"É o jogo mais esperado do ano, e sempre foi de festa. Nunca vi uma briga", diz o atacante. "Meu primeiro gol no duelo foi inesquecível. Era escanteio pros brancos e eu disse pra um amigo que ia meter um gol no contra-ataque. Ele disse 'não vai, eu vou te puxar'. Mas dito e feito. A bola sobrou, eu saí na cara do gol e marquei", conta Murilo. Ele também já jogou pelos brancos, mas "os últimos cinco foram pelos pretos".
Como nos casos de Murilo e Francisco, é comum que jogadores de várzea um dia tenham sonhado em jogar profissionalmente. Um olhar um pouco mais atento ao jogo revela que alguns ali de fato sabem o que estão fazendo com a bola. Não são tiozões do churrasco jogando uma pelada onde o protagonista é caipirinha.
Em dado momento durante a primeira partida, uma bola espirrada vence a cerca de uns quatro metros de altura ao redor do campo. Um homem negro, de não menos que quarenta anos, que passava por ali naquele instante mata tranquilamente a pelota com um dos pés. Um domínio perfeito e suave que rende o comentário "a bola procura, hein, negão?" de um espectador.
No campo ao lado, bem menor, um jovem jogador que batia uma bolinha com amigos machuca o pé e precisa ser resgatado pelo SAMU. Nada demais ou incomum, porque o público sequer demonstrou surpresa com a presença de uma ambulância.
Ao motorista de aplicativo que veio buscar a reportagem, nem foi preciso explicar o que estava acontecendo no G.R. Flôr. "É preto contra branco, né?" diz o jovem rapaz morador do bairro.
Os pretos golearam os brancos no jogo dos veteranos por 4 a 1. Os brancos venceram os outros dois duelos por 4 a 2 e 3 a 2.
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