Topo

Ameaçadas de extinção, araras estão morrendo eletrocutadas no sertão baiano

José Dantas, 77, morador da zona rural de Euclides da Cunha, já encontrou aves mortas na região - Rafael Martins/UOL
José Dantas, 77, morador da zona rural de Euclides da Cunha, já encontrou aves mortas na região Imagem: Rafael Martins/UOL

Alice de Souza

Colaboração para o TAB, de Euclides da Cunha (BA)

09/02/2022 04h00

O agricultor José Dantas, 77, lembra bem a primeira vez em que viu uma arara-azul-de-lear no quintal de casa, na zona rural da cidade de Euclides da Cunha, sertão da Bahia. Faz mais de duas décadas que ele recebe diariamente a visita das aves, um dos maiores motivos de orgulho de quem vive por lá. Falar dos animais sempre rendeu boas histórias e alegria, mas nos últimos quatro anos a felicidade de conviver de perto com um bicho ameaçado de extinção foi substituída pela angústia: tem sido cada vez mais comum encontrar as araras mortas no chão.

Espécie achada apenas na caatinga baiana, a arara-azul-de-lear está presente em 12 cidades da região conhecida como Raso da Catarina. No passado, as principais ameaças aos animais eram o tráfico de animais silvestres e a destruição do habitat, com a derrubada das palmeiras de licuri, fonte de alimentação das aves. Agora, com o avanço do sistema de iluminação na região, o contato com a fiação dos postes de energia da Neoenergia Coelba tem deixado um rastro de araras falecidas nos quintais de pessoas como José Dantas.

Em 2022, já foram duas araras encontradas mortas pela população local — a última delas na semana passada. Em 2021, de acordo com o projeto Jardins da Arara de Lear, foram pelo menos 20 mortes, o dobro do que ocorreu no ano anterior. Para se ter uma ideia, em 2017 foram duas. Contadas desde então, segundo relatório da ECO (Organização para Conservação do Meio Ambiente), existem quase 50 casos de morte de Araras-azul-de-lear por eletroplessão (descarga elétrica) na região.

A situação motivou dois inquéritos civis do Ministério Público da Bahia, na 1ª Promotoria de Justiça de Euclides da Cunha e na Promotoria Ambiental de Paulo Afonso, para apurar as ocorrências nas cidades de Euclides da Cunha, Jeremoabo e Santa Brígida.

Depois de um ano e três meses investigando as mortes, o órgão está em vias de assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a distribuidora de energia, para impedir que mais animais morram ao entrar em contato com os fios.

José Dantas, 77, morador da zona rural de Euclides da Cunha, já encontrou aves mortas na região - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
José Dantas, 77, morador da zona rural de Euclides da Cunha, já encontrou aves mortas na região
Imagem: Rafael Martins/UOL

A busca pelas araras mortas

Todos os dias pela manhã, as araras saem da cidade de Canudos, onde dormem nas fendas de paredões, e viajam até Euclides, para se alimentar nas plantações de licuri. É dessa forma que chegam nas proximidades das casas de pessoas como Zé. Ao passo em que perto das residências ficam mais expostas aos postes e fios, é justamente graças a isso que tem sido possível detectar a sequência e o possível aumento de mortes.

O agricultor José Dantas é um dos moradores mais apegados às araras no povoado de Serra Branca: tem exemplares em madeira dos bichos na porta de casa e pendurados no teto da sala. É também um dos mais dedicados a identificar araras mortas. Quando um animal é encontrado no chão, perto de um poste, já sabe o que fazer. Avisa a ativistas e integrantes de ONG de proteção dessas aves, que recolhem o animal e congelam-no em um freezer. Essa é a orientação dada aos locais antes mesmo do começo da onda de mortes dos animais.

José Dantas, 77, morador da zona rural de Euclides da Cunha, na Bahia - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
José Dantas, 77, morador da zona rural de Euclides da Cunha, na Bahia
Imagem: Rafael Martins/UOL

José Dantas já resgatou cinco araras. Em um dos casos, encontrou o animal ainda vivo, ligou para organizações de proteção das araras-azuis-de-lear e passou cerca de cinco dias alimentando o animal até a chegada dos técnicos para recolhê-lo. Da última vez, no início de janeiro, porém, a arara já estava morta, caída ao lado de um poste. "Não é todo mundo que consegue. Tem que saber pegar, pra não machucar mais. Eu tenho essa autorização, meu neto também", explica Dantas.

No povoado de Juazeiro, há alguns quilômetros de José Dantas, o agricultor José Carlos Santos, 46, também vive entre o privilégio de ter os bichos bem perto e a tensão de encontrá-los a qualquer momento no chão, sem vida. Todos os dias, quando as araras chegam vindas de Canudos, se aproximam tanto do imóvel de João que é possível escutá-las através da janela do quarto.

"Todo mundo tinha medo delas no começo, mas depois a gente foi aprendendo a lidar", conta. Ele já achou duas araras mortas no chão, uma delas quando ainda morava em Serra Branca. Em um dos casos, a ave também estava ao lado de um poste de energia. "Não sei se foi choque ou se ela bateu em algo", diz.

José Carlos Santos, 46, morador da zona rural de Euclides da Cunha - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
José Carlos Santos, 46, morador da zona rural de Euclides da Cunha
Imagem: Rafael Martins/UOL

Araras no freezer

Quando uma arara é identificada morta ou ainda com vida no chão, os moradores são orientados a tirar uma foto e avisar imediatamente a ativistas de ONGs que trabalham na região para protegê-las. A ideia é que os animais possam ser recolhidos por técnicos do Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos), para realização de necropsia e identificação da causa morte.

Entre o recolhimento e a chegada dos profissionais, entretanto, as araras costumam passar alguns dias congeladas em um freezer instalado na casa dos integrantes do projeto Jardins da Arara de Lear.

O congelamento das araras é um método para preservar a carcaça e garantir que possa ser feito o exame. "A gente precisou orientar os moradores para não colocar a carcaça nas geladeiras deles. Mas, quando a gente trazia para cá, colocava no nosso. Passávamos alguns dias sem geladeira até os animais serem recolhidos. Já teve época de passar mais de um mês para virem buscar", conta a secretária da organização Marlene Reis. Ela e o marido, o guia de expedições turísticas Mário Reis, ganharam um freezer exclusivo para colocar os animais depois que denunciaram a situação a amigos e visitantes.

Aves voam próximas a fiação da Neoenergia na região de Euclides da Cunha, no sertão baiano - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Aves voam próximas a fiação da Neoenergia na região de Euclides da Cunha, no sertão baiano
Imagem: Rafael Martins/UOL

Entre o meio ambiente e a luz

O caso chegou ao conhecimento do Ministério Público após comunicados dos ativistas e observadores de aves de que choques elétricos em fiação de postes no Povoado de Baixas, em Euclides da Cunha, estavam provocando as mortes das araras. Desde 23 de novembro de 2020, os casos vêm sendo investigados em inquérito na promotoria ambiental da cidade. "Foi diagnosticado, através dos relatórios, que a ocorrência dos óbitos está relacionada ao contato simultâneo de partes dos corpos das araras em componentes das redes de distribuição de média e baixa tensão da Coelba, sobretudo em cruzetas e cabos energizados, além do contato com os cabos entre si", explica o promotor Adriano Nunes.

Depois de reuniões, também foi proposto um TAC com a Coelba, com sugestões de medidas emergenciais e compensatórias. Entre elas, o aumento do distanciamento dos cabos energizados em relação às estruturas de apoio aéreo da rede primária, através do uso de isoladores nas cruzetas e promover o encapamento dos condutores, cabos e buchas de transformadores de abaixamento de tensão, dentre outras medidas sugeridas pelos órgãos de proteção ambiental.

Loirinho e Marlene do projeto Jardins das Araras Azuis de Lear - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Loirinho e Marlene do projeto Jardins das Araras Azuis de Lear
Imagem: Rafael Martins/UOL

O documento ainda não foi assinado. Desde que o caso chegou ao MP, a Coelba afirma não ter realizado expansão da rede no Raso da Catarina. A região tem redes novas e antigas, cujas instalações são de 1969. O desafio atual é conciliar a proteção da fauna local e não comprometer o fornecimento de energia à população. Em nota, a Coelba afirma que firmou um compromisso de que, até o dia 25 de fevereiro, realizar melhorias no perímetro prioritário indicado pela sociedade civil, em 3,658 km de rede e 51 estruturas.

As ações começaram em 31 de janeiro. Até o dia 3 de fevereiro, foram concluídas 17 estruturas, 35% do compromisso. A Coelba afirma que "as soluções até então utilizadas e propostas têm origem em experiências bem sucedidas de situações similares no Brasil e em outros países". Em complemento às ações imediatas, a empresa pretende apoiar os estudos sobre as aves, para estimular replantio de mudas de licuri e educação dos moradores.

Convivência entre aves e humanos

A arara-azul-de-lear foi descrita, pela primeira vez, em 1856, mas só em 1978 foi identificada na área Nordeste da Bahia. Nas cidades de Jeremoabo e Canudos, as araras pernoitam nas cavidades dos paredões de arenito "Toca Velha" e "Serra Branca" para se reproduzir. Ao amanhecer, vão em busca de alimentação em Paulo Afonso, Santa Brígida, Euclides da Cunha, Monte Santo, Sento Sé e Campo Formoso.

É preciso muita atenção, mas não muito esforço para encontrar um bando de aves no meio das pequenas propriedades dos povoados de Euclides da Cunha. Em Baixas e Serra Branca, elas costumam pousar nas palmeiras de licuri e em outras árvores do mesmo porte. "Isso atrai muitos visitantes para a nossa região, gente que vem de várias partes do mundo para observar as aves. Do coquinho do licuri, que cai no chão depois que elas se alimentam, nós da região produzimos também vários artesanatos", explica Mário Reis.

 Aves voam próximas a fiação da Neoenergia na região de Euclides da Cunha, na Bahia - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Aves voam próximas a fiação da Neoenergia na região de Euclides da Cunha, na Bahia
Imagem: Rafael Martins/UOL

Entre 2006 e 2017, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) executou dois ciclos do Plano de Ação Nacional para a Conservação da Arara-Azul-de-Lear, cujo objetivo era manter o crescimento populacional da espécie. O plano foi encerrado em maio de 2017, com 37% das ações concluídas e 34% das ações sequer iniciadas no período previsto. Hoje, as iniciativas para evitar a extinção dessas araras estão no Plano de Ação Nacional para Conservação de Aves da Caatinga.

Hoje, além da derrubada dos licuris e dos fios de iluminação, há outra preocupação: a construção do Complexo Eólico Canudos, parque que terá cerca de 100 torres eólicas e, segundo entidades da organização civil, em carta aberta publicada em 2021, afetará a fauna local. Há outro inquérito civil em curso para apurar esses impactos no Ministério Público da Bahia.

O que já se sabe, enquanto as investigações das duas ameaças estão em curso, é que há chances de que as mortes das araras ainda estejam subnotificadas. Enquanto não chega uma solução definitiva, pessoas como Zé Dantas e Mário Reis, que inclusive viabilizam a vida financeira das famílias a partir do turismo para observação das araras, temem que a questão não seja resolvida a tempo. "Tem gente aqui que pede para elas morrerem, pois algumas atacam a plantação, mas isso não pode. Todo mundo tem direito de viver", conclui José Dantas.