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Vendido a R$ 6, carrinho de supermercado vira item de resistência nas ruas

Marcelo Fernandes Campos vive em situação de rua e tem um carrinho de supermercado para guardar suas coisas em São Paulo - Edson Lopes Jr./UOL
Marcelo Fernandes Campos vive em situação de rua e tem um carrinho de supermercado para guardar suas coisas em São Paulo Imagem: Edson Lopes Jr./UOL

Breno Damascena

Colaboração para o TAB, de São Paulo

01/03/2022 04h01

Atrás de um ponto de ônibus nas imediações da estação Belém do Metrô, na zona leste de São Paulo, um homem de barba branca e roupa puída está deitado para dormir. De dia, José Aparecido vagueia pela região e percorre quilômetros atrás de recicláveis com um carrinho de supermercado liderando a caminhada.

Entre as poucas coisas que carrega consigo estão uma mochila, um tênis desgastado e uma vassoura que usa para limpar o lugar onde costuma dormir. "É para que os moradores do bairro não reclamem da bagunça", justifica. Todos os pertences viajam com ele e são guardados dentro do carrinho de metal, dividindo espaço com os sacos pretos cheios de papelão.

Aparecido conta que está nas ruas desde 2001. Foi farmacêutico e cortador de tecido. Hoje, conta com a generosidade das doações e com o faturamento diário de R$ 20, resultado da venda de recicláveis. O carrinho é a ferramenta de trabalho mais importante para enfrentar as ladeiras da cidade. "Com ele já é difícil, sem ele seria ainda pior", afirma.

José Aparecido é apegado ao carrinho que tem em sua posse há seis meses. Ele diz que foi abordado por um homem que lhe ofereceu o carrinho por R$ 6. "O cara deve ter roubado para usar drogas. É bem comum." Na época, José tinha um carrinho semelhante e, ao comprar o novo, tornou-se proprietário de dois artefatos preciosos para quem vive nas ruas.

A partir daí, sempre que se preparava para dormir, amarrava os carrinhos perto de si para protegê-los. Não demorou, no entanto, para que alguém aproveitasse um descuido seu para cortar o fio e roubar-lhe carrinho mais antigo. "Com certeza foi um viciado. As outras pessoas não fazem este tipo de coisa."

Carrinho de Marcelo Fernandes Campos, em São Paulo - Edson Lopes Jr./UOL - Edson Lopes Jr./UOL
Imagem: Edson Lopes Jr./UOL

Roubo e venda

A forma como a maioria dos carrinhos de supermercado chega às mãos de pessoas em situação de rua não é uma incógnita para quem trabalha nesse tipo de estabelecimento. O gerente de um grande mercado no centro de São Paulo narra a atividade em tom de obviedade. "Muitas pessoas ficam aqui na porta e nos arredores da loja, pedindo doações para os clientes. Se um consumidor sai com o carrinho para colocar as compras no carro e não traz de volta, já era. Basta um momento de vacilo e eles levam embora", afirma ele, que não quis se identificar. "É a oportunidade que cria a situação."

A loja, como outras da região, conta com um segurança que assiste à entrada e saída de pessoas, mas nem sempre o profissional consegue evitar esse tipo de furto. Quando acontece, o gerente comunica o prejuízo aos superiores. No entanto, a assessoria de imprensa desse e de todos os outros mercados contatados pela reportagem (grupos GSA, Assaí e Carrefour) optaram por não divulgar os registros de roubos dos carrinhos.

A falta de interesse no registro, aliás, é frequente não apenas nos supermercados, mas também na força pública. A secretaria de Segurança Pública da cidade de São Paulo afirmou que esse tipo de ação, quando e se for registrada, costuma cair na categoria "furto" em geral, comum a roubos de celular ou carro. Por isso, não existem estatísticas.

A secretaria de Comunicação da Prefeitura de São Paulo afirma que, quando as equipes de apoio à remoção recolhem os itens, os encaminha para as subprefeituras e devolvidos ao dono, se ele tiver realizado um boletim de ocorrência. E o "se" é realmente importante, pois em uma delegacia próxima ao supermercado em que o gerente explicou o procedimento comum dos roubos, o delegado afirmou que nunca registrou boletim para esse tipo de ocorrência, em quase dois anos de atuação.

Luan Donizetti, de costas, vive em situação de rua e tem um carrinho de supermercado para guardar suas coisas em São Paulo - Edson Lopes Jr./UOL - Edson Lopes Jr./UOL
Imagem: Edson Lopes Jr./UOL

Armário, abrigo, segurança

Sob a sombra de uma lona instalada a poucos metros da Praça do Patriarca, no bairro da Sé, as amigas Aline Belo, 22, e Luciana Barreto, 32, confirmam a jornada dos carrinhos de supermercado até as ruas. Elas possuem dois: além de serem utilizados como instrumento de trabalho, servem de suporte para manter de pé o abrigo onde as duas moram com seus companheiros.

A corda da lona, comprada em uma loja de materiais de construção com o dinheiro do auxílio emergencial, estava amarrada ao carrinho, criando uma proteção contra chuvas e olhares curiosos. Duas semanas após a primeira conversa com a reportagem, elas disseram que os carrinhos foram devolvidos aos antigos donos e, após um descuido dos casais, a lona fora roubada.

Wagner Rodolfo de Oliveira vive em situação de rua e tem um carrinho de supermercado para guardar suas coisas em São Paulo - Edson Lopes Jr./UOL - Edson Lopes Jr./UOL
Wagner Rodolfo de Oliveira, 34
Imagem: Edson Lopes Jr./UOL

Sofrer um assalto também foi o que impulsionou Wagner Rodolfo de Oliveira, 34, a recorrer aos carrinhos de supermercado como instrumento de trabalho. Ele era dono de uma carroça antes de ficar internado três dias — fora espancado por seis pessoas. "Quando voltei, minha carroça tinha sido roubada e eu precisava dela para trabalhar."

Após sair do hospital, o catador comprou um carrinho por R$ 10 e colocou cabos de vassouras nas arestas para aumentar a quantidade de material que poderia carregar. Pai de uma adolescente de 16 anos que vive longe dele, o homem diz que chega a faturar cerca de R$ 100 por dia com o trabalho, mas não consegue guardar nada por causa da dependência em drogas. "Se eu conseguisse sair desse vício, eu ia ficar bem."

A morte da mãe, em 2015, agravou o vício e o levou a ir viver nas ruas. "Tenho fé em Deus e em mim também. Tenho força de vontade, mas o maior tratamento é o interior. E esse eu ainda não encontrei forças para vencer", afirma.

O vício é, também, um dos motivos para que Luan Donizete percorra as ruas de São Paulo em busca de papelão, garrafas PET e latinhas de bebida.

Luan Donizetti vive em situação de rua e tem um carrinho de supermercado para guardar suas coisas em São Paulo - Edson Lopes Jr./UOL - Edson Lopes Jr./UOL
Luan Donizete, 31
Imagem: Edson Lopes Jr./UOL

O carrinho de compras que o homem de 31 anos usa para trabalhar foi emprestado do ferro-velho onde vende recicláveis. Com a fala mansa e pacífica, ele relata que está há oito anos vivendo nas ruas. Chegou a se internar em uma clínica de reabilitação e há quatro meses retornou à atual situação. "Sonho em voltar para a minha família, mas preciso resolver isso antes."

Ao seu lado nas incursões pela cidade está sempre Juliana, cachorrinha vira-lata branca. Luan mostra orgulhoso uma sacola de mercado dentro do carrinho onde guarda o saco de ração da companheira. "O dela antes do meu", fala. Ele calcula que chega a ganhar R$ 60 por dia com a reciclagem, e que a maior parte desse dinheiro é gasto em bebida ou crack.

É também a reciclagem, principal fonte de renda de parte das 31.884 pessoas que vivem em situação de rua na cidade de São Paulo, o motivo para que o catador Marcelo Fernandes Campos tenha em sua posse um carrinho de supermercado. Morador de um albergue na Mooca, o homem de 57 anos se diz orgulhoso de atuar realizando a limpeza das ruas de São Paulo.

Mas a origem de seu carrinho, ele afirma, é diferente. "Comprei há dois anos, quando um pequeno mercado faliu e começou a vender tudo que tinha no estoque", justifica. Para ele, existe bastante preconceito da população e até da polícia, que rotineiramente lhe direciona olhares de arbítrio. "Quando veem o carrinho já falam que a gente roubou, mas não foi assim. Eu consegui suado, com esforço, mas consegui", contrapõe José Aparecido. "Isso quando não julgam, também, o meu trabalho."

O catador trabalha de segunda a sábado. Quando vai ao albergue, à noite, o carrinho fica no próprio depósito de reciclagem em que vende os materiais. O homem diz que se sente honrado por cumprir uma função tão importante na sociedade e explica que metade do dinheiro que ganha com a reciclagem e com o auxílio emergencial é enviado para a filha, que vê de 15 em 15 dias.

Em uma sociedade voltada ao consumo, não deixa de ser simbólico que algumas pessoas enxerguem os carrinhos de compras como ferramenta de produção, vendendo-os para alimentar vícios ou os usando para reciclar materiais. O som característico da roda passeando pelo asfalto anuncia, de longe, que ali vem alguém que, dessa vez, não será completamente ignorado.