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Com a crise, serviço de saúde mental é desmontado no Hospital São Paulo

Fachada do Hospital São Paulo: hospital-referência tem histórico de crise financeira - Alex Reipert/Unifesp
Fachada do Hospital São Paulo: hospital-referência tem histórico de crise financeira Imagem: Alex Reipert/Unifesp

Mateus Araujo e Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

07/03/2022 08h00

Era para ser apenas mais um anúncio de cortes no Hospital São Paulo — a instituição vem reduzindo custos desde fevereiro —, mas a reunião do último dia 21 pegou pacientes e profissionais de surpresa. Numa tacada só, um dos hospitais de referência da capital paulista desmontou todo o serviço de saúde mental.

Coordenadora do setor desde 2014, a psiquiatra Vanessa de Albuquerque Citero conta já ter vivido situações difíceis no hospital, mas não esperava por aquela ação. "A equipe foi praticamente dizimada", relata.

A reunião no hospital da Vila Clementino, na zona sul da capital paulista, deixou um clima de desolação nos corredores. Contratado há cinco meses para integrar o serviço de saúde mental, o psicólogo Caio Tavares havia acabado de bater o cartão quando ficou sabendo da demissão. "A gente sabia que o hospital passava por uma reestruturação, tinha uma questão financeira complicada, falta de medicamentos, como psicotrópicos, mas foi uma surpresa", conta.

Até aquele dia, a equipe de 18 profissionais atendia de forma multidisciplinar, auxiliando pacientes internados no hospital e os que chegavam no pronto-socorro em caráter de emergência psiquiátrica ou encaminhados pela Cross (Central de Regulação de Oferta de Serviços de Saúde).

A importância do serviço vai além do aspecto assistencial. Inaugurado em 1940, o Hospital São Paulo foi o primeiro hospital-escola do Brasil a ser construído com essa finalidade, atuando como braço pedagógico da Escola Paulista de Medicina/Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Em 2021, o hospital recebeu 50 alunos residentes apenas na área de psiquiatria. "A gente tem um papel fundamental na relação humana: como você lida com as situações, como você lida com uma família que está sofrida, como que você acolhe. Somos modelo", explica Citero. "O prejuízo é imensurável em cortar uma equipe assim, sem uma estratégia racional."

Além dos residentes e alguns servidores concursados, o Hospital São Paulo conta com boa parte dos funcionários em regime CLT — foco principal dos cortes. Na saúde mental, foram demitidos quatro psicólogos, quatro terapeutas ocupacionais e cinco psiquiatras. A equipe hoje se resume a três profissionais concursados, incluindo a coordenadora. Para ela, a situação inviabiliza a estrutura do serviço e assistência. "Disseram que não há possibilidade de reverter isso porque o hospital está numa necessidade de grande urgência", relata.

A manhã, que era para ser dedicada aos pacientes internados, terminou com toda a equipe no RH. Ainda em choque, Tavares desabafou no Twitter sobre o que chamou de "desmonte". A mensagem viralizou para além da classe — reflexo de uma longa crise e penúria financeira.

O clima dos corredores

Relatos de atraso no pagamento de salários e falta de insumos e medicamentos não são novidade no HSP. Em abril de 2017, segundo dados da própria instituição, publicados pela Agência Brasil, 14 mil pessoas deixaram de ser atendidas no pronto-socorro e 461 pacientes não conseguiram se internar devido ao aperto nos gastos. Na época, a instituição acumulava R$ 149 milhões em dívidas com bancos e R$ 11 milhões de dívidas com fornecedores. Pedindo mais recursos, os residentes promoveram um ato simbólico de abraço ao HSP.

Hoje, o hospital não atualiza o valor da dívida, mas indica que o déficit financeiro se agravou durante a pandemia. "A covid-19 trouxe uma demanda financeira maior do que outros quadros exigiam. Houve necessidade não só de pessoal, mas de material. A gente sabia que a crise era grande", afirma Citero.

No início de fevereiro, com a chegada do novo superintendente, Nacime Salomão Mansur, veio o choque de gestão: uma grande reformulação no quadro de funcionários. Desde então, já são 200 profissionais demitidos, muitos sem aviso. Na última quinta-feira (3), funcionários, em conjunto com membros do SinSaudesp (Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado), realizaram um protesto contra os cortes nas dependências do hospital.

O HSP afirma que os desligamentos priorizaram profissionais contratados durante a pandemia e "foram necessários e inadiáveis em razão da reestruturação interna que tem como objetivo sanear financeiramente a instituição". Em nota, a instituição aponta o motivo da crise: os valores recebidos do poder público pelo HSP para atendimento ao SUS (Sistema Único de Saúde) estão congelados há anos e são insuficientes para cobrir as despesas.

"A nova gestão do hospital já está dialogando com os governos municipal, estadual e federal no sentido de buscar soluções conjuntas para a crise. Também irá promover a renegociação de contratos com fornecedores e dos juros de dívidas bancárias, dentre outras medidas", diz a nota assinada pela Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), que gerencia o hospital.

Enquanto isso, não faltam relatos de falta de insumos, cirurgias adiadas e demora na marcação de consultas nas especialidades que resistem ali, como ginecologia, oftalmologia e otorrinolaringologia.

Citero afirma que há inclusive redução no número de leitos. "O hospital, que tem capacidade para atender quase 800 pacientes e já vinha atendendo 300, pelo que eu estou entendendo vai operar com menos." Em nota, o HSP afirma que desde fevereiro não houve redução no número de leitos disponíveis.

Já o pronto-socorro está restrito a pacientes com quadros mais graves e complexos encaminhados via Cross ou os que chegam de ambulância. Desde agosto passado, pacientes que procuram a emergência do HSP são encaminhados para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) Vila Mariana. O hospital afirma que a mudança não tem ligação com a crise e se trata de uma tendência no serviço de saúde em São Paulo em direcionar o primeiro atendimento para as UPAs.

"Abrace o Hospital São Paulo": Em 2017, residentes e funcionários pediram recursos financeiros para o hospital universitário com ato simbólico - Divulgação/Unifesp - Divulgação/Unifesp
"Abrace o Hospital São Paulo": Em 2017, residentes e funcionários pediram recursos financeiros para o hospital universitário com ato simbólico
Imagem: Divulgação/Unifesp

Serviço essencial

Mesmo com o enxugamento das equipes e serviços, o desmonte do serviço de saúde mental soou um alerta para os profissionais da área. Fundador do Departamento de Psiquiatria e Psicologia da Unifesp, Luiz Antônio Nogueira Martins pediu, em nota direcionada à administração do HSP, a readmissão dos profissionais.

"Na qualidade de fundador de ambos os serviços, venho, vigorosamente, conclamar todos os gestores dos órgãos diretivos do complexo HU-EPM/Unifesp no sentido de envidar esforços para reverter a demissão desses profissionais, sob pena de comprometer gravemente a assistência em saúde mental, tanto aos pacientes e seus familiares, como aos residentes de medicina e de residência multiprofissional", diz o professor aposentado.

O serviço de saúde mental no HSP vem passando por reformulações desde 2018. Com a inauguração do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental da Unifesp, as internações psiquiátricas foram extintas e parte da equipe transferida para o novo espaço. Desde então, a coordenadora da equipe afirma que um acordo foi mantido com a superintendência do hospital para manter a estrutura mínima dos serviços. "O que houve no último dia 21 de fevereiro foi uma quebra de acordo", observa Citero.

Para Tavares, o psicólogo mais novo a integrar a equipe, a ação é uma perda não apenas para os pacientes. "Não paramos durante a pandemia. Estivemos na linha de frente, na assistência aos pacientes com covid-19 e aos familiares que estavam em sofrimento pela situação. Foi um momento de muito desgaste também para os profissionais", observa. "Na sociedade, de modo geral, o tema da saúde mental estava circulando o tempo todo como algo relevante e importante. É muito triste ver isso acontecendo."

Ele conta que a equipe demitida tem se apoiado desde então numa espécie de luto. "É um luto coletivo pela equipe que se desfez, mas também pelo cenário da saúde mental no Brasil e o desmonte da saúde pública", observa. "A gente entende a saúde mental como serviço essencial."