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Como a eutanásia e o suicídio assistido viraram parte da cultura na Holanda

Liesbeth e Han, pais de Martjin, que passou por eutanásia na Holanda em 2020 - Reprodução
Liesbeth e Han, pais de Martjin, que passou por eutanásia na Holanda em 2020 Imagem: Reprodução

Giovana Fleck

Colaboração para o TAB, de Amsterdã (Holanda)

06/04/2022 04h01

Liesbeth pegou o trem para se encontrar com o filho em Leiden, ao sul da Holanda. A dupla tinha hora marcada numa funerária da cidade e levou quase 2h30 para chegar. "Martjin queria todos os detalhes prontos antes de partir. Disse: 'Acho melhor eu não ir sozinho, já que depois não vou poder garantir que está tudo como quero'." Mãe e filho foram juntos planejar o funeral dele, naquela que Liesbeth, 69, descreve como a "experiência mais bizarra" de sua vida. "Mas fazia todo o sentido estarmos ali."

A discussão sobre a eutanásia voltou com força nos últimos dias, a partir das declarações do ator francês Alain Delon, que anunciou em entrevistas e em suas redes sociais a intenção de passar pelo suicídio assistido na Suíça, onde o procedimento é permitido.

Até hoje, apenas cinco países permitem a eutanásia voluntária — Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Colômbia e, mais recentemente, a Espanha. O suicídio assistido, em que a própria pessoa faz o procedimento, acompanhada por terceiros, é possível na Suíça, também na Holanda, em alguns estados norte-americanos, na África do Sul, no Canadá e na Alemanha.

Em holandês, aliás, há várias maneiras de se referir à morte, mas a palavra "morte" ("dood") não é a mais usada. O vocabulário do óbito mostra como a população fala da morte a partir da vida. Ele inclui conceitos como "vida realizada" ("voltooid leven") e "vida completa" ("vol leven"). Outra construção tem sido usada com frequência: "vrijwillig levenseinde", fim de vida voluntário.

Martjin morreu em 2020, ao completar exatos 16.500 dias de vida (pouco mais de 45 anos), após pedir eutanásia. A família, que conversou com o TAB por chamada de vídeo, não quis ter o sobrenome divulgado.

O procedimento é legalizado na Holanda desde 1º de abril de 2002 — a lei acaba de completar 20 anos. Foram quase três décadas de processos judiciais aliados ao lobby de ativistas, médicos, advogados e políticos para aprovar a legislação. Em abril de 2001, a Câmara Alta Holandesa aprovou a Lei da Eutanásia, denominada "Lei de Rescisão da Vida a Pedido e Suicídio Assistido". De acordo com ela, os pedidos de eutanásia devem vir de pacientes que passam por um "sofrimento insuportável sem perspectiva de melhora".

A lei não descreve a morte, mas a "cessação da vida a pedido". Ela pode assumir duas formas: no caso de eutanásia, o médico administra uma dose fatal de um medicamento adequado ao paciente. No suicídio assistido, o médico fornece a droga letal, mas o paciente a administra. Ambas as substâncias podem ser compradas em farmácias por qualquer médico que tenha permissão para realizar os procedimentos.

Cada caso de eutanásia e suicídio assistido deve ser relatado a um dos cinco comitês regionais de revisão de eutanásia. A comissão julgará se o médico tomou os devidos cuidados. Se o profissional não o fizer, ele pode ser processado. As penas variam, mas podem chegar a 12 anos de prisão por eutanásia e até 3 anos por assistência ao suicídio.

Limites para o fim

Pacientes não têm direito absoluto à eutanásia. Tampouco os médicos têm dever absoluto de realizá-la. Todos os profissionais que não se sentirem confortáveis podem se negar a fazer o procedimento e encaminham seu paciente às organizações competentes, como o Centro de Expertise em Eutanásia.

No caso de Martjin, o processo demorou mais de um ano, entre entrevistas com psiquiatras e processos burocráticos. "Ele não tinha mais perspectiva de ser feliz. Era um paciente psiquiátrico desde a adolescência e passou 30 anos tentando se adaptar. Ele até conseguia se empolgar com as coisas, mas o sentimento passava muito rápido", conta seu pai, Han, que olha por cima dos ombros de Liesbeth, sentada ao seu lado enquanto conversamos. Em determinado ponto, o homem de 73 anos olha para cima. "Estávamos de férias quando recebemos a ligação de Martjin nos contando que ele sabia o que queria fazer com sua vida: eutanásia."

Liesbeth lembra do momento em que a tristeza chegou, mas não era pela perspectiva que ele morresse. "Era tristeza por sua vida ter chegado a um estado em que não era mais suportável", afirma ela. Para Han, "você não pode pedir ao seu filho que siga vivo por você, para cumprir o que você acha que é certo. É pedir demais. Então nós respeitamos sua decisão".

Martjin decidiu se tornar doador de órgãos e, por causa disso, a eutanásia teve de acontecer em um hospital — e não na casa do paciente.

"Sabemos que, hoje, existem pelo menos duas pessoas na Holanda vivas por causa do Martjin", diz Han, que lembra ter aberto a caixa de correio e ler sobre o sucesso do transplante a partir dos órgãos doados por seu filho.

"Sua morte lhe deu descanso e ele nos deu descanso. Recentemente dissemos um ao outro: estamos indo bem", diz Liesbeth, emocionada, com um sorriso no canto do rosto.

Dick Bosscher, do NVVE, na Holanda - Giovana Fleck/UOL - Giovana Fleck/UOL
Dick Bosscher, conselheiro administrativo da Sociedade Holandesa de Eutanásia Voluntária
Imagem: Giovana Fleck/UOL

O sentido do fim

"O fim" é a expressão estampada nas canecas do escritório onde opera a Sociedade Holandesa de Eutanásia Voluntária (NVVE, em holandês). "Não é uma piada. É o nosso trabalho", diz Dick Bosscher, 65, membro do conselho administrativo. "É nosso trabalho garantir que as pessoas tenham um fim digno."

Frase semelhante também é lida em uma camiseta pendurada do outro lado da sala: "Morrer com dignidade deveria ser minha escolha".

O escritório é banal. Localizado no centro do bairro mais turístico de Amsterdã, exibe obras de arte pintadas por um dos funcionários. No centro, junto à biblioteca, há uma enorme máquina de gumball. "Levamos para eventos e congressos. A gente tem que atrair a atenção das pessoas de alguma forma, não é?", explica Bosscher.

A NVVE foi fundada em 1973 como resultado da reação pública ao processo judicial da médica Truus Potsma. Ela foi considerada culpada e condenada após administrar uma dose letal de morfina a sua mãe, que teve o pedido de eutanásia negado pelas autoridades. Um grupo pequeno de médicos e membros da sociedade civil uniu-se, primeiro para apoiar Postma, depois para lutar por possibilidades legais de eutanásia. Hoje, a NVVE tem mais de 174 mil membros — é a maior organização pró-eutanásia do mundo.

"A eutanásia é um direito, não uma obrigação", descreve Dick Bosscher, enquanto folheia a última edição da revista publicada pelo NVVE. "Agora, uma coisa é certa, nosso trabalho tem contribuído para que mais pessoas falem sobre isso", afirma.

Entre as responsabilidades da NVVE está a administração do Centro de Expertise em Eutanásia. O centro não é uma sede física com quartos ou qualquer espaço que remeta a uma clínica. É um conjunto de escritórios que organiza uma rede de 75 médicos e enfermeiras que formam equipes ambulantes.

Bert Keizer, 74, é um desses médicos. Ele não lembra quantas vezes fez eutanásia. "Posso dizer quantos foram em 2021: 18". Aos 74 anos, o geriatra e escritor ensina novos médicos a se prepararem para o procedimento. Keizer acompanhou o processo de aprovação da lei desde o início.

"Começamos com pacientes terminais que estavam quase lá. Depois, começamos a flexibilizar a eutanásia para permitir pacientes crônicos, depois pacientes psiquiátricos, indo para pessoas em estado inicial de demência, até agora, quando a lei compreende estados avançados de demência", explica.

Camiseta com os dizeres 'Morrer com dignidade deveria ser minha escolha', na Sociedade Holandesa de Eutanásia Voluntária - Giovana Fleck/UOL - Giovana Fleck/UOL
Camiseta com os dizeres 'Morrer com dignidade deveria ser minha escolha', na Sociedade Holandesa de Eutanásia Voluntária
Imagem: Giovana Fleck/UOL

Ajuda derradeira

Em 2020, cerca de 4% de todas as mortes na Holanda foram eutanásias. Dados do último levantamento divulgado pelo Centro de Expertise em Eutanásia mostram um número total de 6.938 eutanásias e suicídios assistidos contra 1.825 suicídios.

Há um aumento consistente desde 2018 de cerca de 5% ao ano. Entre as razões para o aumento está o envelhecimento da população e a melhoria da comunicação entre paciente e médico.

A pandemia de covid-19 não afetou a tendência. "O vírus é rápido e cruel. Não foi prerrogativa para causar sofrimento duradouro que fizesse com que pacientes procurassem a eutanásia", resume Keizer. Câncer foi o maior causador de eutanásia em 2020, com um total de 4.480 óbitos. Ele é seguido por "transtornos associados à idade", demência e casos psiquiátricos. No entanto, os médicos costumam rejeitar mais da metade dos pedidos. Em 2020, foram 2.901 novos pedidos de eutanásia recebidos, mas apenas 899 deferidos pelas entidades médicas.

Em suas aulas, Keizer instrui algumas dezenas de médicos com base em sua experiência. "Tenho feito isso por quase toda a minha vida na medicina, que é muito capaz de estragar o leito de morte das pessoas. Cuidados paliativos, a área em que me especializei, pode ser cruel. A pior coisa que se pode dizer é: 'Não há mais nada que eu possa fazer'." Keizer conta como passou os primeiros anos de sua prática tendo pesadelos e dores de cabeça. "Por isso quis ensinar como fazer isso de uma certa maneira."

O grande debate se dá em casos de pacientes com demência, a diminuição lenta e progressiva da função mental. No momento, a lei permite que o paciente manifeste seu desejo consciente de cessar sua vida ao fazer o Planejamento de Cuidados Avançado, nos estágios iniciais da doença. "É uma linha tênue. Eu não realizo procedimentos em que não posso olhar nos olhos do paciente até o último minuto e saber que estamos na mesma página sobre o que vai acontecer a seguir", explica Keizer. "Mas entendo os médicos que realizam o procedimento nesse caso. Todos nós queremos ajudar nossos pacientes, no final."

A mãe de Jackie Van de Pol, 58, decidiu que queria eutanásia 10 anos antes de falecer. Nesse meio-tempo, foi diagnosticada com Alzheimer. Van de Pol acompanhou a mãe, Miep, perder a autonomia. "Chegou a um ponto em que era muito sofrimento. Nós, como família, usamos todo o processo de eutanásia para dizer adeus a ela."

Em 2019, quando Van de Pol viu a mãe pela última vez, o quarto onde ela estava era silencioso, pacífico. "Eu estava tão aliviada e feliz por ela. Foi quieto. Foi bom." De acordo com ela, Miep sempre tratou a morte com muita naturalidade. "Seu irmão é um padre católico e era seu melhor amigo, mas ela tinha suas próprias posições sobre religião. Sempre foi uma mulher muito convicta nos seus desejos, e me traz felicidade saber que eles foram respeitados."

Os entrevistados ouvidos por TAB foram perguntados se escolheriam a eutanásia ou o suicídio assistido para o fim de suas vidas. Todos responderam que sim.