45 anos depois, música de Beto Guedes ainda leva gente para viver em Lumiar
Do centro de Nova Friburgo (RJ) até o distrito de Lumiar, na região Serrana do Rio de Janeiro, o ônibus municipal leva mais ou menos 30 minutos. Dentro do coletivo se notam, predominantemente, três grupos de pessoas: os descendentes de europeus, que vivem na região desde o início do século 19, turistas e moradores recentes, que têm quase sempre um brilho diferente.
O primeiro grupo é formado por idosos de pele bem alva e olhos claros, calças compridas e camisas de botão. Vão até Friburgo para pagar contas, fazer compras, ir ao banco, passar no médico. Um senhor carregava uma enorme embalagem de papelão lotada de pintinhos que foram piando pelas curvas da pista — hoje em dia asfaltada —, cercada de verde e com as montanhas no horizonte. Ana Bastos, uma agricultora de 65 anos que estava no ônibus das 13h30, foi a Friburgo para comprar talheres novos. Disse que os dela eram velhos demais. Ela vive há 50 anos em Lumiar e descende de uma família suíça. Antes morava em Petrópolis.
O terceiro grupo é composto de pessoas de meia-idade que decidiram morar em Lumiar. Muitas delas tomaram a decisão depois de ouvirem uma música que leva o nome do local, composta por Beto Guedes e Ronaldo Bastos e lançada em 1977. Se não mudaram ou foram visitar o lugar por causa da canção, estão lá por causa do que é descrito na letra, que exalta as belezas naturais e descreve o ambiente com frases de encantamento.
O distrito fica em área de mata atlântica, na Reserva Florestal de Macaé de Cima, onde nasce o Rio Macaé. A floresta de 7.000 hectares está em uma altitude entre 880 a 1.720 m. Grande parte da reserva florestal se localiza na bacia hidrográfica do Rio Macaé e seu afluente, o Rio das Flores. Essas águas possibilitam o surgimento da maior parte das cachoeiras e lagos da região.
A Lumiar de natureza quase intocada mudou bastante, muito por causa da música. Antes, o local era basicamente uma área rural, com plantações, criações de animais e muitos sapos, como lembra Ana Bastos, que "ouviu por alto" a canção de Beto Guedes mas sabe quanto o distrito se transformou, sobretudo "ao redor da praça", onde fica a maior concentração de bares, restaurantes e pousadas.
"O pessoal que veio naquela época aprontava. Faziam farra nos rios, nas cachoeiras, nas padarias. Era muita gente diferente chegando de uma vez. Eles ficavam felizes com o que viam aqui", diz Bastos, sorrindo.
Quando a música foi lançada, Dercy Klein, 58, também descendente de suíços, tinha 13 anos. Nascido e criado em Lumiar, hoje ele é conhecido como "vovô" e é responsável por um bar que leva seu apelido, um dos locais mais frequentados do distrito. Klein viu muita coisa acontecer.
"Praticamente 90% das pessoas que chegaram em Lumiar naquela época vinham por causa da música. Primeiro foram os hippies, depois, quando chegou asfalto e luz elétrica, os hippies foram para o Sana [no interior do estado do Rio], mas mesmo assim nunca mais parou de vir gente para cá por causa da música. Ou para ficar ou para passear", conta ele que, ao ser questionado se a canção foi responsável pela instalação de energia elétrica e calçamento das ruas, respondeu: "Claro que sim. Essa música mudou tudo por aqui".
Do amor aos negócios
Embora o disco "A Página do Relâmpago Elétrico" e a música "Lumiar" não tenham sido os maiores sucessos de venda do período, entraram na onda dos "alternativos" da época. Beto Guedes, toda a turma do Clube da Esquina e suas ramificações eram a fruta da estação de um grupo que abraçou esses artistas e os reverencia desde então.
Em 1977, o distrito tinha apenas uma pousada. Hoje são mais de 100 — o número é parecido ao de outros distritos ou cidades com o mesmo estilo de turismo, como São Thomé das Letras (MG). Cerca de 6.000 pessoas vivem em Lumiar.
Denise Gonzalez e seu ex-marido Jorge Gonzalez são donos da Caminho das Candeias. Denise, em 1987, fã de Beto Guedes e da música "Lumiar", estava fazendo um trabalho de campo para a faculdade de geografia em Nova Friburgo e decidiu visitar o lugar que só conhecia de ouvir.
No Poço Feio, um dos pontos mais acessados de Lumiar, ela viu Jorge pela primeira vez. Ele nasceu em Niterói, mas sempre morou em Lumiar, inclusive, estudou com Dercy Klein. No mesmo dia em que se viram na cachoeira, acabaram se conhecendo à noite, na praça de Lumiar. Logo namoraram, casaram-se, compraram terreno e abriram a pousada há 26 anos. As três suítes viraram 14.
No final dos anos 2000, Beto Guedes e Ronaldo Bastos foram convidados para um evento em Lumiar. Para a emoção de Denise Gonzalez, a dupla ficou hospedada em sua pousada. Ela não se conteve e contou a eles que foi para Lumiar por causa da música e sua vida mudou.
"Eles ficaram muito tocados, surpresos ao ouvirem a história e saberem que a música deles transformou completamente a minha vida", recordou-se ela, emocionada.
Atrás do balcão
Vovô, homem de respostas bem diretas, virou amigo do compositor Beto Guedes no final dos anos 1990. "Sempre vem no meu bar. Eu não o conhecia quando ele veio fazer a música, nos anos 1970. Conheci mesmo, de falar com ele, em 1999, quando veio participar de uma matéria para o 'Vídeo Show' [programa da Rede Globo] para relançar a música", explica.
Do mesmo balcão que comanda há 37 anos, Klein viu muita gente inspirada pela música parar no distrito de Lumiar. Um desses casos foi o de Thadeu Camargo.
Músico e técnico de informática, ele conhecia e amava a canção de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, mas achava que era um lugar inventado. Quando os amigos contaram para ele que o local existia, tratou de juntar o pessoal e rumar para lá. "Acampamos no Vale dos Peões e foi amor à primeira vista. A minha sensação era de lugar familiar, como se eu já o conhecesse e tivesse vivido aqui em alguma outra época."
Camargo, integrante da banda Certas Canções, se apaixonou não só por Lumiar, mas (praticamente) em Lumiar. Magda, sua atual esposa, era colega de trabalho na agência bancária. Certo dia, começaram a falar sobre acampamento e descobriram que quase sempre estiveram no mesmo espaço em Lumiar, acampando.
Depois disso, as barracas se juntaram. Os dois se casaram, tiveram filhos e fizeram incontáveis subidas a Lumiar até que, em 2010, decidiram morar ali de vez.
A terapeuta Fernanda Telles tem história parecida. Ela e a família moravam em Teresópolis (RJ) e estavam de malas prontas para passar um Réveillon no distrito, na casa de uns amigos. "Três dias antes [da viagem], ouvi essa música. Conhecia e escutava muito 'O Sal da Terra', também do Beto Guedes. Quando tocou 'Lumiar', senti um êxtase espiritual inexplicável. A música fala de um lugar que eu não conhecia, mas que já sentia na vibração que ia ser lindo estar lá, viver lá. Na hora, pulei do sofá, gritei para meu marido que era Lumiar, que nosso lugar era Lumiar."
Depois da virada do ano de 2018, Telles, o marido e os dois filhos deram um jeito de ficar e não pretendem ir embora. Em 2019, ela foi uma das primeiras a chegar para o show de Beto Guedes na cidade. Denise Gonzalez estava viajando. Seu ex-marido, Jorge, e sua filha estavam lá. Lumiar parou para ouvir "Lumiar". O centro do distrito ficou lotado de um jeito que impressionou os moradores. Foi uma das últimas vezes que o cantor e compositor esteve por lá. Na ocasião, ele disse que nem a cidade onde nasceu, Montes Claros (MG), é tão importante para ele quanto Lumiar.
Bem próxima do Bar do Vovô, a praça de Lumiar tem um lago. Sempre registrado em fotografias, o espaço com água verde e animais, como tartarugas, aves e peixes, está cada vez mais instagramável, devido à constante presença de turistas. A praça é cercada de ruas silenciosas e arborizadas. O cheiro é de verde, de ar puro. Moradores do distrito contam que é muito comum as pessoas irem à Lumiar uma vez e retornarem muitas outras, geralmente com gente nova. Entretanto, quem vive em Lumiar tem reclamado do excesso de turistas e da falta de infraestrutura.
Conflito de agenda
Beto Guedes fez a música antes mesmo de conhecer Lumiar. A letra foi inspirada em histórias contadas pelo parceiro de composição, Ronaldo Bastos. O compositor ficou tão empolgado com as narrativas de Bastos que quis fazer a música e conhecer o distrito. Os versos não enganam: "Contando caso de como deve ser Lumiar...".
Thadeu Camargo não viu o show de Beto Guedes em 2019, porque estava tocando no Bar do Vovô. Foi convidado para fazer a apresentação na mesma hora. A praça estava tão cheia que muita gente fugiu da apresentação de Beto e correu para o bar, que também lotou. "Não cabia nem formiga", lembra-se.
Contrariado com a convocação para se apresentar na mesma hora, Camargo se conformou com a promessa de que Guedes iria para o Bar do Vovô depois de seu show, o que não aconteceu.
O músico afirma que a Lumiar de hoje não é a mesma que conheceu nos anos 1980. "Cresceu demais, né?". Contudo, garante que a alma do lugar se mantém. "O lugar não é mais um vilarejo, mas ainda é muito especial. Muito mesmo. O sol, a chuva, a lua, a água, os abraços, o papo nos bares, a estrada de barro das roças, o vento das montanhas, os vagalumes, o entardecer... Enfim, é um espírito de paz, de luz. Essa sensação de familiaridade, de compatibilidade, de toda hora achar que vivi aqui desde sempre, não vai embora nunca."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.