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A luta do Tambor de Crioula para voltar ao Mercado das Tulhas, em São Luís

Tambor de Crioula em São Luís, realizado do lado de fora do Mercado das Tulhas - Rose Coreira/Divulgação
Tambor de Crioula em São Luís, realizado do lado de fora do Mercado das Tulhas Imagem: Rose Coreira/Divulgação

Rafaela Freitas

Colaboração para o TAB, de São Luís (MA)

14/05/2022 04h01

Enquanto a fogueira aquece os instrumentos do Tambor de Crioula em frente ao Mercado das Tulhas, no centro histórico de São Luís, a ansiedade é grande para começar a cantoria e a roda de dança — foram cerca de dois anos sem atividades por causa da pandemia e de uma reforma local. Os brincantes, contudo, sentem mais do que excitação. Eles estão apreensivos. O receio é de que a polícia tente interromper a festa.

Isso já aconteceu antes. Em 22 de abril, o que seria celebração terminou em frustração quando o mercado proibiu o Tambor dentro do espaço, sob a justificativa de que um laudo de vistoria técnica, datado de 2019 (antes da reforma), apontava que o local não comportaria eventos com público.

Os brincantes argumentam que a atividade acontece às sextas-feiras há cerca de 60 anos dentro do mercado e, como símbolo da cultura popular, não pode deixar de acontecer. "Essa é a tradição que queremos manter, até porque é onde a gente se diverte", enfatiza José Ribamar, o Mestre Bigodinho.

Com a discussão entre funcionários e brincantes, a PM esteve no mercado, que é de responsabilidade da Semapa (Secretaria Municipal de Agricultura, Pesca e Abastecimento). "É a primeira vez que vejo a polícia ser usada pelo Executivo municipal para coibir uma manifestação popular", disse o advogado Marco Aurélio Haike, mestre de capoeira e um dos brincantes. Segundo a Semapa, partiu da própria corporação a iniciativa de realizar a abordagem.

O jeito foi levar a festa para fora do mercado. Lá soaram as batidas dos tambores, cantigas foram entoadas em coro e o calor da fogueira acompanhou a roda por três horas. Desde então, às sextas-feiras, o Tambor de Crioula tem sido realizado em frente ao mercado até que o impasse seja resolvido.

Enquanto a administração pública joga de um lado para o outro a solução para o problema, integrantes do Tambor acionaram a Defensoria Pública do Maranhão. Na segunda-feira (9), o defensor público Jean Nunes, do Núcleo de Direitos Humanos, ingressou com uma ação civil pública na Vara de Interesses Difusos e Coletivos da capital. Não há prazo definido para a resposta da Justiça, mas a expectativa é que a decisão saia nos próximos dias.

Festa de Tambor de Crioula em São Luís - Rafaela Freitas/UOL - Rafaela Freitas/UOL
Imagem: Rafaela Freitas/UOL

Tradição versus poder

Considerado Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) desde 2007, o Tambor de Crioula é praticado durante todo o ano, seja para diversão, em devoção a São Benedito, santo protetor dos negros, ou associado aos arraiais de São João e ao Carnaval. A atividade não possui local definido para acontecer, mas praças, terreiros (locais sagrados para culto das religiões de matriz africana) e pontos turísticos e de referência na cidade — como o Mercado das Tulhas — são usados com frequência.

Com a flexibilização da pandemia, pelo menos três reuniões alinharam a retomada da "brincadeira do tambor" no mercado. Na primeira delas, entre lideranças culturais, administração pública e do mercado, segundo os brincantes ouvidos pela reportagem, houve o comprometimento de apoiar o retorno da roda do tambor em 22 de abril.

Nas reuniões seguintes, negativas teriam surgido por parte do Batalhão de Turismo, que atua no policiamento de pontos turísticos da cidade. Procurado pelo TAB, o órgão não se posicionou.

Com o impasse, o Ministério Público do Maranhão foi chamado para mediar a situação. A Prefeitura informou que não existe nenhuma "proibição" para realizar qualquer manifestação cultural no Mercado das Tulhas, mas "uma recomendação" do Ministério Público, feita com base em um laudo do Corpo de Bombeiros, de 2019, que apontou riscos de segurança no local antes da última reforma feita no estabelecimento.

Questionado pela reportagem sobre quais seriam os riscos presentes no documento, o Corpo de Bombeiros informou que foram constatadas irregularidades na edificação, como a inexistência de extintores de incêndio, de iluminação e de sinalização de emergência, assim como necessidade de manutenção na rede elétrica.

O Ministério Público garante que não há nenhuma recomendação por parte do órgão. "O que há é um conflito de interesses. A Prefeitura não estava conseguindo resolver o problema e chamou o Ministério Público", disse o promotor José Cláudio Cabral Marques.

Os comerciantes locais se dividem. Alguns são a favor, pois consideram que os eventos culturais atraem consumidores. Outros consideram que o mercado não tem estrutura suficiente para receber a brincadeira e reclamam que as atividades deixam o local muito sujo.

Tambor de Crioula em São Luís - Eduardo Aguiar/Divulgação - Eduardo Aguiar/Divulgação
Imagem: Eduardo Aguiar/Divulgação

Patrimônio em obra

Localizado na Praia Grande, no Centro Histórico da cidade, o Mercado das Tulhas é o mais antigo mercado de São Luís. As obras da estrutura original começaram em 1804 e ele foi concluído como se conhece hoje em 1865. Também conhecido como Feira da Praia Grande ou Casa das Tulhas, ele é um tradicional ponto de comércio de produtos típicos, como farinha d'água, cachaças, camarão seco, pimentas e ervas e artesanatos, entre vários outros itens.

Para quem mora na cidade, Mercado das Tulhas é aquele lugar em que você entra e encontra muito da cultura e das vivências, dos costumes e das tradições maranhenses. O local também comporta bares e restaurantes. No período noturno, é um famoso ponto de encontro da boêmia.

Iniciada em novembro de 2019 e entregue em outubro de 2020, a reforma do Mercado das Tulhas foi de responsabilidade da Prefeitura sob a coordenação da Semosp (Secretaria Municipal de Obras e Serviços Públicos). A principal intervenção aconteceu na estrutura de sustentação do mercado. Em conjunto, foram realizadas a troca do telhado e melhorias nas grades e nos portões de entrada, reforma e padronização dos boxes, com novo piso, paredes revestidas em cerâmicas, forro, instalações elétricas, hidráulicas, sistema de tubulação de gás, além de outras intervenções.

Sendo uma área tombada como Patrimônio Cultural da Humanidade pela ONU (Organização das Nações Unidas) desde 1997, as mudanças precisaram ser aprovadas pelo Iphan, a fim de preservar as características originais. Questionada, a Prefeitura não informou sobre a justificativa da reforma, sobre a escolha das melhorias e seus custos aos cofres públicos. Também não informou se a reforma levou em consideração o laudo apresentado pelos bombeiros em 2019.

Um outro laudo foi solicitado para tentar dar fim ao impasse. Dessa vez realizada após a reforma no Mercado, uma nova vistoria aconteceu em 26 de abril. Segundo o Corpo de Bombeiros, em nota, novamente foram encontradas irregularidades quanto à segurança necessária para combate a incêndios e inadequações para receber público, ou seja, para realizações como eventos do Tambor de Crioula. Procurado, o Ministério Público apontou o recebimento do documento, mas ainda não se manifestou sobre o laudo.