Depois da tragédia da covid-19 em Manaus, Amazonas festeja Parintins
Os dois anos pareceram uma eternidade. É assim que os apaixonados pelo Festival de Parintins, no Amazonas, descrevem o tempo que passaram longe da festa. No último final de semana (24,25 e 26 de junho), a competição de boi-bumbá no meio da Amazônia movimentou mais de 100 mil pessoas. Elas levantaram bandeiras políticas e ambientais e emocionaram o público na ilha a 369 quilômetros de Manaus.
Em 2020, os brincantes do festival foram surpreendidos dois meses antes da realização da festa pelos primeiros casos de covid-19 no Amazonas. A pandemia impactou, diretamente, a realização de grandes eventos. Artistas plásticos, músicos, dançarinos, costureiras, tricicleiros, hoteleiros, todos foram impactados pela falta de um festival que movimenta a economia de uma cidade inteira — em 2022, a estimativa da Amazonastur foi de R$ 80 milhões.
Nos dois anos seguintes, os bois Garantido e Caprichoso conectaram-se virtualmente com as torcidas em apresentações sem público e sem competição, já que um dos itens julgados pelos jurados é a performance da torcida, chamada de "Galera".
Aos poucos, Parintins sentiu o impacto da covid-19. Membros importantes dos dois bumbás foram vitimados pela doença, como o cantor Zezinho Corrêa, eternizado como líder do Grupo Carrapicho. Corrêa faleceu em fevereiro de 2021.
Entre dezembro de 2020 e fevereiro de 2021, Manaus foi o epicentro da doença, com a elevação abrupta de casos da variante P.1 e da falta de oxigênio que se alastrou pelos municípios do interior a partir de 14 de janeiro de 2021.
Memória do 'Considerado'
Júnior de Souza, artista plástico do Boi Garantido que atuou também no Caprichoso, foi um dos principais alegoristas. O menino aprendeu a mexer com ferros na oficina mecânica do pai e deu vida às primeiras alegorias de movimento na arena do bumbódromo.
Carros alegóricos gigantescos com movimentos de robótica e utilização de cabo de aço foram a marca do seu trabalho, que atravessou Parintins e chegou ao Carnaval do Rio de Janeiro pela Escola de Samba São Clemente, onde ficou por pouco tempo, para se dedicar aos seus verdadeiros amores, o Boi-Bumbá de Parintins e a sua família.
A família de Junior também cresceu na produção dos bois. Pablo de Souza, 31, seu filho mais velho, relembra o processo produtivo do pai ao lado da família. Na casa deles, um boi de pano confeccionado pelo "Considerado" dá boas vindas a quem chega.
"Meu pai é mais um artista que Parintins formou naturalmente. As crianças crescem vendo essa festa e esse interesse pela arte desperta desde cedo. Meu pai sempre acompanhou o festival com a família dele, então ele viu que era o que ele queria fazer. A história dele começa a partir deste momento", contou.
Após uma longa trajetória nos dois Bois, foi no Garantido que ele fez a última apresentação como Coordenador da Comissão de Arte. Ganhou o 32º título para o boi vermelho —, o que ele escolheu para amar, ou, como dizem alguns, foi o boi que o escolheu.
Após mais de um mês em uma longa jornada de internações, iniciada em 20 de janeiro de 2021, Júnior teve complicações por causa da covid-19 e não resistiu à doença. Morreu em Curitiba, para onde foi transferido em uma ação do governo estadual após a crise de oxigênio e a superlotação das unidades de saúde.
"Mudou completamente, né. Mudou completamente a minha vida, a vida da minha família, dos meus irmãos. Era uma coisa que a gente não esperava, a pandemia levar não só meu pai, mas muitas pessoas, muitas pessoas do boi, e aí mudou completamente a nossa vida. Foi muito difícil no começo esse processo de readaptação", disse Pablo.
Foi pensando na quantidade de turistas visitando Parintins que a família do artista plástico decidiu, em 2022, não participar ativamente do Festival. Apostaram no turismo como base econômica. Aluguel de quartos, suítes, pousadas, passeios e outros espaços têm garantido o sustento da família e reafirmado o compromisso com a realização da festa.
"Quis amenizar essa saudade de outra forma, fazendo outras coisas, mas claro, participando da festa, em uma nova perspectiva, e é isso o que a gente já está fazendo. A gente deixa de fazer a festa para possibilitar que as outras pessoas tenham uma boa estadia aqui em Parintins, tanto de pousada como de passeios", ressaltou Pablo.
"A gente queria que ele estivesse aqui, mas eu entendo que de alguma forma ele está, por meio desses trabalhadores que estão ali, que trabalharam com ele, da tecnologia das alegorias, tá por meio das pessoas que conviveram e aprenderam alguma coisa com ele, então é um legado eterno", disse, emocionado.
'Eu tinha de estar aqui'
O professor João Leão, 35, guarda uma história de 17 anos com o Boi Caprichoso — representado pela cor azul. A presença de João no bumbódromo significou um recomeço a quem ficou, aqueles que carregam muitas feridas de um período pandêmico.
A paixão pelo Festival de Parintins se sobrepôs às limitações. Compositor de toadas, Leão foi um dos primeiros a entrar na arena para o início da apresentação, a primeira com público. Em uma cadeira de rodas, ele carrega as cicatrizes de um período triste para o povo parintinense.
"Fui acometido daquela variante em janeiro de 2021, e por sorte saí daqui de Parintins e fui até Belém (PA), onde minha mãe mora. Fui pra lá em janeiro de 2021 e estou voltando só agora, desde aquela época", contou à reportagem de TAB. Leão ainda está em tratamento. Com a convalescença, porque perdeu mais de 60 quilos e ficou muito fraco após a covid-19. Ao todo foram seis meses de hospital — 45 dias de UTI e quase 20 dias em coma. "As pessoas dizem que eu sou um milagre. Eu estava inconsciente nessa época, mas acredito muito nelas", disse ele.
A bandeira da fé parintinense balançou no coração do professor. A entrada na arena e a lembrança dos que não tiveram a chance de ver a retomada do Festival fez o torcedor azulado explodir em lágrimas.
"O festival é minha vida. Sobrevivi pra poder viver isso de novo. Achei que nunca mais ia voltar para cá", relatou.
Pouco mais de um ano após a infecção pela covid-19, João possui dificuldade de mobilidade, tem rigidez articular e outras sequelas de um AVC que sofreu durante a internação pelo vírus. Ainda que severas, as sequelas não são maiores que a alegria em ver uma das suas composições sendo cantada por centenas de pessoas, na última noite do Festival.
"Eu falava para as pessoas: não tenho escolha, ou eu me entrego, ou eu luto por mim mesmo. Então eu escolhi lutar. E vou continuar lutando. Quero voltar para Parintins no ano que vem também."
Caprichoso campeão
Nesta segunda-feira (27), o Boi Caprichoso levou o título de campeão do 55º Festival Folclórico de Parintins com o tema "Amazônia, nossa luta em poesia", um manifesto em favor da preservação dos recursos naturais.
Logo na primeira noite de espetáculo, o Caprichoso trouxe para a arena a ambientalista Ângela Mendes, filha de Chico Mendes, e o líder indígena Dário Kopenawa, filho de Davi Kopenawa do povo ianomâmi. Em um manifesto aberto, os dois trouxeram uma bandeira em homenagem a Chico Mendes, Dorothy Stang, Bruno Pereira e Dom Phillips.
O Boi Garantido exaltou a cultura afro ameríndia, relembrou grandes nomes atuantes na luta pela preservação. Ecoou, ainda, as homenagens às vítimas da pandemia de covid-19.
Com o tema "Amazônia do Povo Vermelho", o boi Garantido levou, como elementos primordiais da festa, as identidades, lutas, revoluções e utopias do povo amazônida. A proposta artística do boi — que por 32 vezes foi campeão da festa — foi de lançar um olhar sobre os desafios enfrentados pela humanidade a partir da Amazônia e da complexa construção de suas identidades sociais e culturais.
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