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Reduto do samba, Bixiga atravessa nova onda de especulação imobiliária

Obra de construção da Linha 6-Laranja do metrô, onde antes era a quadra da escola de samba Vai-Vai - Inês Bonduki/UOL
Obra de construção da Linha 6-Laranja do metrô, onde antes era a quadra da escola de samba Vai-Vai
Imagem: Inês Bonduki/UOL

Do UOL, em São Paulo

16/07/2022 04h01

A dois dias do desfile do Carnaval de 2017, um menino pendurado nos ombros do pai sambava balançando os braços, no ritmo da bateria. Numa das mãos, ele segurava uma varetinha e fazia gestos como se regesse os músicos à sua frente. Do alto, cercado por um grupo de pessoas, provavelmente seus parentes, ele tinha a vista privilegiada da rua do Bixiga tomada de gente em torno do samba do Vai-Vai. Já havia anoitecido, caía uma levíssima garoa, mas aquela multidão apinhada não desanimava.

Três anos depois, naquele mesmo local, senhoras baianas rodavam as saias, debaixo de chuva, no último ensaio antes de um novo desfile. A euforia dava lugar à esperança: a agremiação mais premiada do Carnaval de São Paulo tinha sido rebaixada ao grupo de acesso, no ano anterior, e sonhava então em retornar à categoria de elite.

Foi assim que, na confluência das enladeiradas ruas Lourenço Granato, Cardeal Leme e São Vicente, o Vai-Vai celebrou e chorou seus carnavais ao longo de 90 anos. O lugar onde um dia foi um quilombo e a escola se ergueu tornou-se exemplo de como um dos mais tradicionais e populosos bairros de São Paulo fez da rua, por excelência, cenário e personagem de sua história.

Desde fevereiro de 2022, no entanto, a quadra do Vai-Vai não existe mais. Ela foi abaixo para dar lugar à estação 14 Bis, da Linha 6-Laranja do Metrô. É a mudança mais significativa de um bairro à beira da modernização, mas também o símbolo de um movimento em torno da resistência da memória negra da região.

Rua em frente à antiga quadra do Vai-Vai, durante ensaio da escola de samba para o Carnaval - Jefferson Coppola/Folhapress - Jefferson Coppola/Folhapress
Outros carnavais: ensaio da escola de samba Vai-Vai para o desfile de 2010
Imagem: Jefferson Coppola/Folhapress

Novo passado

Desde que o bairro foi oficializado, no século 19, ele convive com os dilemas da especulação imobiliária inerente ao centro da capital, afirma a jornalista e pesquisadora Adriana Terra. Moradora do Bixiga, ela estudou as relações de pertencimento e a sociabilidade da região no seu mestrado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (Universidade de São Paulo).

Essas mudanças e a expulsão das pessoas mais pobres aconteceram cadenciadas com marcos importantes da urbanização daquele espaço, quase todos eles envolvendo a construção ou ampliação de avenidas: a 9 de Julho (na década de 1940), a 23 de Maio (1960), e a Brigadeiro Luís Antônio (1980). Morar ali tornou-se cada vez mais caro, e assim o Bixiga passou por um processo de embranquecimento, com a saída de parte da população negra.

Para a pesquisadora, o metrô é um marco de uma nova onda de mudanças que já começa a surgir. "Mas hoje há dois aspectos que não havia antes: o bairro foi tombado em 2002 [como Patrimônio Histórico da cidade], o que conservou boa parte da sua paisagem, e nós estamos falando muito mais sobre a origem negra dele, que é uma coisa que não se falava tanto antes."

Ao mesmo tempo que vai facilitar a locomoção das pessoas, a nova linha de transporte estimula a verticalização do entorno, com prédios sendo construídos e alteração no casario. Por isso, moradores mais antigos se preocupam se esse novo contexto vai mexer com a mais orgânica das tradições do Bixiga: a relação da população com a rua e os espaço comuns.

"Muita gente fala da arquitetura e da cultura italiana, mas entendo que essa é uma tradição seletiva. Se a gente for observar o cotidiano do bairro, entende que há outras tradições muito mais presentes", pondera Adriana. "Hoje esse é um bairro com muita população de variados estados nordestinos, que também se somam às tradições do samba. Um bairro com essa resistência da cultura afro-brasileira e paulistana, ainda que muita população negra tenha sido espalhada. Resta ver como vai ser agora."

Casas e terrenos do bairro começam a virar prédios - Inês Bonduki/UOL - Inês Bonduki/UOL
'Hoje esse é um bairro com muita população de variados estados nordestinos', diz pesquisadora
Imagem: Inês Bonduki/UOL

Resistência

Na esquina da rua Maria José, há quase dois meses, o que era casa caiu. O terreno cercado de tapumes dará lugar a um prédio comercial. "É claro que isso tem a ver com o metrô", comenta o publicitário Jorge Luiz de Souza, 40, morador do Bixiga desde que nasceu.

Há três anos, Souza coordena a Rua do Lazer, ação que fecha a via para a passagem de carros e permite que os moradores ocupem o local com atividades esportivas e culturais. O projeto faz parte de uma série de iniciativas de pessoas da região para manter as tradições dali e incentivar que se ocupem os espaços públicos — inclusive com o samba, a música que ajuda a resistência, mesmo se deslocando.

Em frente à Igreja de Nossa Senhora Achiropita, o famoso Samba da Treze reunia centenas de pessoas todas as sextas-feiras, durante mais de uma década. Em março de 2020, o grupo Madeira de Lei, que tocava no local, fez sua última apresentação ali, antes da decretação da pandemia. Mesmo com a retomada das atividades na cidade, porém, os músicos não puderam recriar a roda de samba. Foram impedidos pela Prefeitura, que alegou haver reclamação dos vizinhos com relação a barulho e fechamento da via. Hoje levam shows a casas de eventos no bairro e em outras regiões da cidade.

Em outras ruas, no entanto, os moradores criam seus espaços de festa. Na Conselheiro Carrão, a roda de música se reúne quase diariamente. Nas sextas-feiras, num cruzamento das ruas São Vicente e Santo Antônio, as pessoas lotam as calçadas de dois bares vizinhos, cada um com seu samba.

Rua Treze de Maio, onde até 2020 o grupo Madeira de Lei fazia roda de samba - Inês Bonduki/UOL - Inês Bonduki/UOL
Edificações na rua 13 de Maio, onde até 2020 o grupo Madeira de Lei fazia roda de samba
Imagem: Inês Bonduki/UOL

Vestígios

O movimento de resistência da cultura negra do bairro ganhou novo fôlego em abril deste ano, quando foram encontrados objetos arqueológicos embaixo da quadra do Vai-Vai, durante as obras da nova estação do Metrô.

Os vestígios estavam a 3 metros de profundidade. E, de acordo com a Linha Uni, concessionária responsável pelas obras, os objetos poderão fazer parte do acervo do Centro de Arqueologia de São Paulo, vinculado ao Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura, "ou serão identificadas alternativas de exposição em conjunto com a comunidade do entorno, de forma a garantir o direito de acesso e conhecimento do material encontrado".

Regina Lucia Santos, integrante do Movimento Negro Unificado - Thiago Fernandes/Mobiliza Saracura Vai-Vai - Thiago Fernandes/Mobiliza Saracura Vai-Vai
Milton Barbosa e Regina Lucia Santos, do Movimento Negro Unificado
Imagem: Thiago Fernandes/Mobiliza Saracura Vai-Vai

A empresa diz que construiu paredes de contenção no local para que "arqueólogos possam iniciar a escavação e para que a continuidade das obras mantenha a integridade do patrimônio cultural".

"Quem é do axé sabe que isso aqui tem energia", dizia Regina Santos, ativista do Movimento Negro Unificado, referindo-se à importância que aqueles achados têm para pessoas do candomblé. No dia 2 de julho, ela e um grupo se reuniram em frente ao canteiro de obras para fazer uma celebração aos antepassados e pedir que o espaço seja reconhecido como um sítio arqueológico.

Em um misto de ato ecumênico e apresentação musical, além de cobrar um projeto de preservação dos vestígios, eles também recolhiam assinatura da população para que a estação, hoje batizada de 14 Bis, passe a se chamar Saracura/Vai-Vai — Saracura era o nome do córrego que passava por ali e que deu nome ao quilombo que um dia marcou a área. O documento será entregue ao governo do estado, responsável pela decisão.