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A saga do indígena que fez mandinga africana e foi perseguido no Rio

Cerimônia religiosa de índios tupinambás em gravura de Theodor de Bry - Wikimedia Commons
Cerimônia religiosa de índios tupinambás em gravura de Theodor de Bry Imagem: Wikimedia Commons

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

09/08/2022 04h01

Quando ele nasceu, já se contavam pelo menos três as gerações de sua família que viviam em um aldeamento comandado por padres jesuítas, em Reritiba, onde hoje é o município de Anchieta, no estado do Espírito Santo. O indígena, cuja história se tornaria das mais representativas do sincretismo religioso brasileiro, ganharia nome de branco europeu: Miguel Ferreira Pestana.

Um indígena do Brasil colonial que deixou um rastro de informações documentadas, fato um tanto raro. "Isso porque ele foi submetido a um longo processo inquisitorial, hoje guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal", conta o historiador Luís Rafael Araújo Corrêa, doutor pela Universidade Federal Fluminense e autor de "Feitiço Caboclo", livro que trata da trajetória de Miguel.

No aldeamento onde nasceu e cresceu, no século 18, foi submetido à catequese dos padres europeus. Segundo as páginas do processo da Inquisição, quando perguntado sobre suas origens, Miguel não titubeou: Reritiba é "onde morreu e foi sepultado o padre Anchieta", hoje um santo da Igreja Católica. O aldeamento tinha uma imagem do religioso e as histórias milagrosas atribuídas a ele deviam mesmo fazer parte da doutrinação.

Mas a formação católica imposta a Miguel não o fez esquecer dos saberes indígenas — que, depois, se misturariam a religiões africanas e a feitiços europeus, um caldo que ilustra bem a miscigenação cultural brasileira.

Não era porque seus pais e avós haviam vivido a vida toda no aldeamento que Miguel iria ceder de bom grado às regras impostas pelos jesuítas e à fé importada dos brancos. O indígena chegou a fugir diversas vezes e, nessas idas e vindas, viu desabrochar seu lado místico: aos poucos, tornou-se um feiticeiro com domínio das práticas e rituais de diversos povos.

"O processo desse indígena é uma síntese do sincretismo religioso afro-luso-índio-brasileiro, porque ao mesmo tempo em que ele tem resquícios das religiões originárias, tupinambás, ele incorporou elementos da Igreja Católica, tradições medievais e elementos da feitiçaria africana, sobretudo de Angola", comenta o antropólogo Luiz Mott, professor da Universidade Federal da Bahia e autor do estudo "Um tupinambá feiticeiro do Espírito Santo nas garras da Inquisição" (2006).

Até hoje, há quem imagine os indígenas como submissos aos brancos e sem interações com os negros. Miguel tava aí pra provar que não era verdade.

Um rebelde em fuga

Certa vez, um dos padres flagrou Miguel com uma "carta de tocar", um papel da cultura medieval europeia considerado mágico, capaz de conquistar mulheres ou proteger o portador. "Esses conhecimentos de fora eram inaceitáveis aos jesuítas", contextualiza Corrêa.

Imagem que ilustra livro 'Feitiço Caboclo' -  Carneiro, Newton: Iconografia Paranaense, Curitiba, Impressora Paranaense, 1950 -  Carneiro, Newton: Iconografia Paranaense, Curitiba, Impressora Paranaense, 1950
Imagem que ilustra livro 'Feitiço Caboclo'
Imagem: Carneiro, Newton: Iconografia Paranaense, Curitiba, Impressora Paranaense, 1950

Miguel fugiu definitivamente, junto de sua segunda esposa, com quem se casou depois de uma precoce viuvez. Ângela Joana, também indígena, acabaria sendo uma das dezenas de pessoas que foram convocadas a depor no processo inquisitório. De acordo com os estudos de Mott, isso ocorreu quando Miguel tinha por volta dos 20 anos. Segundo Corrêa, ele já estaria na casa dos 30.

Fato inconteste é o destino. Miguel se instalou na região do Recôncavo da Guanabara, hoje Baixada Fluminense, no Rio. A fuga era inaceitável. "Os missionários costumavam acionar as autoridades coloniais da época para que esses indígenas fossem buscados", diz Corrêa.

Para não ser encontrado, o indígena adotou outro nome: Domingos Pedroso. "Foragido de um aldeamento, precisava se encaixar na sociedade hierárquica, o que era difícil para alguém de origem indígena", ressalta o historiador.

Miguel (ou Domingos, a essa altura) foi carpinteiro, ofício aprendido com os jesuítas, e ganhou a confiança de clientes, fazendeiros proprietários de escravos. Outra reviravolta: virou capitão-do-mato, ganhando a vida como caçador de negros fugidos. Vivia armado entre os brancos (o que era proibido para indígenas e mestiços) e, ao mesmo tempo, dormia nas senzalas junto aos negros. Foi nesses pernoites que se fascinou com os "poderes cabalísticos" africanos, conta Mott.

"O símbolo disso foi a mandinga, um artefato mágico religioso, originário da África, que chegou até Miguel quando ele capturou um negro, pegou uma dessas bolsas e, passando a crer em seus poderes mágicos, como se ela protegesse seu corpo, incorporou o uso", diz Corrêa.

O sucesso como feiticeiro foi o começo da condenação de Miguel.

O feiticeiro famoso

O indígena ficou famoso e se tornou uma referência na região. O povo começou a recorrer a seus feitiços em busca de cura, sorte, sucesso com mulheres. "Ele recebia pagamento por isso, as pessoas lhe davam prendas em dinheiro e em ouro em troca de mandingas. A fama passou a correr", narra Corrêa.

Página do processo inquisitorial contra Miguel - Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Página do processo inquisitorial contra Miguel
Imagem: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Em julho de 1737, a Inquisição portuguesa abriu um longo processo contra ele. Ciente das atividades do indígena e de posse de denúncias de fiéis católicos, o bispo do Rio à época, Antônio de Guadalupe, pediu investigação contra o tal "índio caboclo", acusado de atuar como "mandingueiro" e de carregar uma "carta de tocar".

Não foi um processo curto. A Inquisição levou à fogueira mais de 1,3 mil réus e, embora cruel, era rigorosa em seguir certos princípios, diz Mott. "Só prender depois de haver muitas evidências, por exemplo. E foi o que ocorreu no caso do indígena, que teve mais de um sumário, com muitas testemunhas para confirmar se as denúncias eram caluniosas ou verdadeiras."

Durante quase cinco anos à espera da conclusão dos julgamentos, Miguel ficou preso na antiga cadeia clerical do Aljube, no Rio. De lá, foi transferido para Lisboa, onde passou a ser inquirido pelos agentes do Santo Ofício.

"Era um sujeito astuto, que conseguia lidar com as armadilhas retóricas dos inquisidores", frisa Corrêa. "Mas ninguém resiste à tortura. Assim, ele acabou 'confessando' que sua bolsa e suas cartas eram frutos de 'pacto demoníaco'."

Condenado, Miguel teve uma pena considerada leve. Não foi mandado à fogueira, mas às galés, trabalhando como remador nas embarcações nas imediações de Lisboa. Entretanto, cumpriu a pena em terra firme, nos estaleiros: a essa altura, galé era praticamente sinônimo de presídio, a pena máxima portuguesa, onde os condenados precisavam cumprir uma jornada árdua de trabalhos forçados.

Em condições insalubres e com alimentação parca, os detentos ali eram acorrentados, dois a dois, pelos pés, dificultando qualquer fuga. Os registros mostram que Miguel deu entrada ali em julho de 1744.

O fim do processo inquisitorial, o último episódio registrado, não trata da morte de Miguel — ao que tudo indica, o feiticeiro foi capaz de driblá-la por mais tempo, já que, em março de 1746, ele escapou das galés e nunca mais foi capturado. "Raro: pouquíssimos são os casos de sujeitos condenados pela Inquisição que conseguiram fugir do castigo", diz Corrêa.

Ficou a história de um sujeito que se movimentou como pôde na sociedade escravista e colonial. "É um verdadeiro 'samba do crioulo doido'", diz Mott. "O termo é politicamente incorreto, mas representa a diversidade das religiões, da mitologia e do modo de pensar, sobretudo dos mais humildes na sociedade colonial brasileira."

Fora o que consta no processo da Inquisição de Portugal, não se sabe mais sobre Miguel. Mas, sem querer, ele deixou um rastro de documentação que, até hoje, pode surpreender o que se pensa sobre a dinâmica dos indígenas no Brasil.