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'Perdoa minha família com fome', diz bilhete deixado em depósito furtado

Sobre a mesa, o bilhete deixado pelo ladrão que invadiu um depósito de flores em Petrolina - Adriano Alves/UOL
Sobre a mesa, o bilhete deixado pelo ladrão que invadiu um depósito de flores em Petrolina Imagem: Adriano Alves/UOL

Adriano Alves

Colaboração para o TAB, de Petrolina (PE)

28/08/2022 04h01

Poucos minutos após o nascer da última quarta-feira (24), Carla* acordou assustada com um telefonema. Era a vizinha da distribuidora de flores em que trabalha, dando um alerta para que ela corresse até o local, pois o ponto comercial amanhecera aberto. Ao chegar, perto das 7h, notou que a porta de ferro tinha sido forçada até arrombar a fechadura. O local estava revirado.

Vasos de barro emborcados, muita terra no chão, caixas abertas e plantas reviradas, essa era a situação da empresa de Petrolina (PE), a 712 km do Recife. A bagunça sinalizava a procura por objetos de valor. "Quando vi o estrago, chega me assustei", conta a funcionária.

Em cima da mesa onde organizava o material administrativo, um bilhete fora deixado na prancheta. Era um pedido de desculpas de quem invadiu o local na madrugada e tentava justificar o ato. Escrito a lápis no verso de documentos da própria empresa, dizia, em duas páginas: "Irmão, me desculpa. Sou só eu para uma família grande. Perdoa minha família com fome", traduz Carla, que chama o recado de "rabisco". Ela demorou a entender o que estava escrito.

Enquanto a reportagem do TAB estava no local, um cachorro de porte pequeno entrou na loja. A dona que o acompanhava contou que foi o cão quem deu o primeiro sinal de que estava tendo um crime na rua, pois começou a latir durante a madrugada, por volta das 4h. Gisele* afirmou que o irmão foi o primeiro a notar que a invasão tinha acontecido na loja da amiga.

"Ele saiu umas 5h30 para passear com o cachorro, como todo dia, e viu que o animal entrou na loja porque estava aberta. Estranhou e voltou pra casa pedindo para eu ligar, avisando", contou a vizinha, que foi para a calçada esperar a chegada de Carla, no mesmo canto onde as duas mantêm o hábito de bater papo nos fins de tarde.

A porta da distribuidora de flores amanheceu aberta e com marcas do arrombamento - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
A porta da distribuidora de flores amanheceu aberta e com marcas do arrombamento
Imagem: Adriano Alves/UOL

Ladrão de rosas

Aquele era um dos dias da semana em que Carla chega mais cedo no trabalho para resolver pendências, mas o atraso não programado a livrou de um susto. "Ainda bem que não vim. Se tivesse chegado sozinha, teria caído aqui mesmo", disse, aliviada.

Durante a entrevista, ela segurava na mão um outro rascunho — uma lista que fez dos materiais que foram levados para entregar à polícia e passar aos seus supervisores, que ficam na sede da empresa em Holambra (SP), a 2.168 km da filial pernambucana.

Com o mesmo lápis usado na escrita da confissão, ela listou primeiro os bens de maior valor (um notebook, uma impressora e dois estabilizadores). Somaram-se à lista um carrinho de ferro, utilizado para carregar os materiais do depósito, e uma roupa térmica que ela vestia quando precisava entrar na câmara fria, onde se armazenam flores.

Carla achou curioso que ele também tenha levado três pacotes de rosas brancas e um pacote de substrato — terra para plantas. "Deve ser pra dar de presente para esposa", desdenhou. "A pessoa veio roubar um pacote de rosas com fome? Por que não passou de dia e pediu um prato de comida?", questionou.

Na sexta-feira (26), a porta da distribuidora já tinha sido consertada, mas o estabelecimento estava fechado - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Na sexta-feira (26), a porta da distribuidora já tinha sido consertada, mas o estabelecimento estava fechado
Imagem: Adriano Alves/UOL

'Aqui não tem paz'

Na frente do ponto comercial, localizado no cruzamento da Rua Pessoa de Melo com a Água Branca, curiosos se amontoavam para olhar como estava a situação da porta e tentar ver o tal bilhete. "Cara de pau", disse um dos que conseguiram ler.

A funcionária é a única da empresa no prédio e ficou a manhã toda no local sem poder sair, pois esperava o técnico para o conserto da porta. Ela é a faz-tudo na distribuidora, de atendimento até a limpeza. O boletim de ocorrência só foi feito no fim da tarde, quando Carla pôde ir à delegacia com a lista e deixar o bilhete do pedido de desculpas.

Carla mora em um condomínio da cidade. Diz que Gercino Coelho, bairro onde trabalha, é perigoso. "Você não tem um pingo de segurança aqui. Tem crimes constantes e sem rastros de nada", relatou, justificando que não quer se identificar por receio de que o criminoso volte.

"Minha loja também já foi roubada", disse Wagner*, que ocupa o ponto comercial ao lado e divide com eles a parede aos fundos da câmara fria. Ele já reforçou a porta do espaço onde comercializa materiais de TV com uma grade e dois cadeados, mas lamenta que isso não tenha impedido os furtos.

"Aqui tá demais. E dá para saber quem são, é só você descer a rua e chegar perto da avenida, tem um monte de gente lá nas calçadas", acusou, referindo-se às pessoas em situação de rua nas redondezas, principalmente próximo à rodoviária da cidade, a poucos metros dali.

Em nota à reportagem do TAB, a Polícia Civil de Pernambuco informou que está investigando o caso e instaurou um inquérito para identificar e capturar os autores do crime. Sobre a frequência de crimes e a necessidade de intensificar o policiamento, a Polícia Militar de Pernambuco diz que não há registro dessas ocorrências e pede que a população acione a PM no momento dos crimes para que os policiais possam localizar os suspeitos.

Rua de Petrolina que concentra estabelecimentos de floricultura registrou furtos nos últimos meses - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Rua de Petrolina que concentra estabelecimentos de floricultura registrou furtos nos últimos meses
Imagem: Adriano Alves/UOL

Rua das flores

Na rua Pessoa de Melo, somam-se quatro floriculturas, entre distribuidoras e lojas. Nesse endereço com tantas plantas, até lojas de roupas e padarias levam nomes de rosas ou outros elementos da natureza. Logo no começo da rua, está a floricultura de Igor Rafael Sousa, 31, que trabalha no setor há mais de cinco anos e ficou sabendo do "crime do bilhete" através de amigos.

"Aqui a segurança é zero. Eu mesmo tenho que chegar tarde às vezes, mas com receio, porque infelizmente tenho que resolver as coisas. Todo mundo aqui sabe que o Gercino tem tráfico de drogas", disse, ao discordar que seria a população de rua a responsável pelo crime. Nas palavras dele, a culpa é dos "noiados".

No tribunal das calçadas, os juízes da rua já analisaram o caso e deram o veredito. "Todo mundo sabe aqui. Ele [o acusado] mora mais ou menos nessa mesma rua. Encontraram até pétalas de flores caídas na calçada dele", apontou Kaike*, que mora a duas quadras do local invadido. Para ele, "o pior crime é de quem recebe o material que é decorrente de roubo".

*Nomes trocados a pedido dos entrevistados