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'Vale dos cancelados': MBL brinca com escândalos e aposta no 'storytelling'

"Trouxe um áudio do Arthur para vocês ouvirem...", disse Renan Santos, do MBL. "É brincadeira!" | Na foto, Arthur do Val (Mamãe Falei) no lançamento da campanha de Kim Kitaguiri (União Brasil) - Carine Wallauer/UOL
'Trouxe um áudio do Arthur para vocês ouvirem...', disse Renan Santos, do MBL. "É brincadeira!" | Na foto, Arthur do Val (Mamãe Falei) no lançamento da campanha de Kim Kitaguiri (União Brasil)
Imagem: Carine Wallauer/UOL
Juliana Sayuri e Danila Moura

Do TAB, em São Paulo

02/09/2022 04h01

"Kim está indo procurar Monark no vale dos cancelados", brincou Renan Santos, 38, um dos fundadores do MBL (Movimento Brasil Livre), ao se referir ao amigo Kim Kataguiri (União Brasil), a estrela da noite de sábado (27), na Associação Hokkaido, um centro de cultura japonesa na zona sul de São Paulo. Kim subiu ao palco e discursou diante de um salão lotado para lançar sua campanha — eleito deputado federal em 2018, ele busca a reeleição em 2022.

Aos 26 anos, Kim usa óculos e camisa um pouco bagunçada por dentro da calça, cuja barra esconde uma meia colorida do Super Mario Bros, distribui santinhos no layout de cards de anime, conversa sobre games e, andando pela Liberdade, é festejado por jovens otakus (fãs de cultura pop japonesa).

Um tanto diferente do estilo executivo do Kim de 2018, que concorreu ao Congresso pelo DEM abraçado ao amigo youtuber Arthur do Val (Mamãe Falei), apoiado por João Doria (PSDB) e apoiando Jair Bolsonaro (PSL, à época); ou do Kim de 2016, o estudante topetudo do MBL que inflamou manifestações pedindo o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT).

Mas não tão diferente assim: "o vale dos cancelados" é uma referência à avalanche de críticas que recebeu o influencer Bruno Auib (Monark), do podcast Flow, após defender a existência de um partido nazista no Brasil. Do outro lado da bancada na ocasião, o parlamentar não confrontou o podcaster e argumentou descriminalizar o nazismo. Depois, pediu desculpas.

No palco, Kim e os convidados se movimentavam como num show de stand-up. "Trouxe um áudio do Arthur para vocês ouvirem...", disse Renan. "É brincadeira!", emendou, arrancando risos da plateia.

Arthur é Arthur Do Val, 36, ex-deputado estadual cassado em maio, após a revelação de seus áudios sexistas sobre mulheres ucranianas ("são fáceis porque são pobres"), e que, não muito tempo depois, em junho, se tornou o "adm" do MBL. Dentro do movimento, eles consideram que adversários políticos surfaram no "cancelamento" do youtuber para cassá-lo.

Lançamento da campanha de Kim Kataguiri, do MBL, candidato a deputado federal - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
À direita de Kim Kataguiri, Guto Zacarias; à esquerda, Amanda Vettorazzo e Renato Battista
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Do impeachment a 2022

Ao lado de Do Val na plateia estavam o atual coordenador do MBL, Renato Battista, e os integrantes Amanda Vettorazzo, 34, e Guto Zacarias, 23. Os três concorrem a deputado estadual de São Paulo pelo União Brasil, a fusão do DEM e do PSL.

Fundado por cinco jovens (além de Kim e Renan, Alexandre Santos, Frederico Rahu e Gabriel Calamari), o MBL nasceu e cresceu com a internet como principal ferramenta de mobilização e de difusão de um discurso dito liberal "politicamente incorreto" — e pretensamente irreverente.

Foi assim em 2014, quando o movimento despontou no Facebook convocando protestos contra o PT; e em 2015 e 2016, ao levar milhares de manifestantes às ruas pelo impeachment. Nas eleições seguintes, impulsionados por um discurso de renovação política, eles elegeram sete vereadores e um prefeito em Minas Gerais, em 2016, e dois senadores e quatro deputados (Kim entre eles), em 2018. No fim de 2019, declararam romper com o presidente Jair Bolsonaro (PL) e, depois, se afastaram do ex-juiz Sergio Moro (União Brasil).

Aos poucos, o movimento foi tentando se distanciar da extrema direita bolsonarista. Isso provocou a saída de um de seus integrantes mais populares no YouTube, o ex-PM Gabriel Monteiro (PL), 28. Eleito vereador no Rio em 2020, ele foi cassado recentemente, está sendo investigado por assédio sexual e estupro, e teve a candidatura a deputado federal barrada pelo TRE-RJ (Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro).

Kim Kataguiri (União Brasil-SP), integrante do MBL, lança candidatura a deputado federal - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
No palco, Kim e os convidados se movimentavam como num show de stand-up
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Líderes do MBL passaram a dizer que o movimento estaria "mais maduro". "Certamente temos uma maturidade e um conhecimento que não tínhamos em 2018", disse Kim ao TAB.

Fora do movimento, há impressões diversas. "O MBL tem diversos [políticos] indo para a reeleição, então isso pode sim significar amadurecimento", avaliou o deputado federal Felipe Rigoni (União Brasil), 31, que faz parte do Acredito. Para Rigoni, Acredito e MBL não são só movimentos de renovação, mas "de qualificação da política".

"O MBL fez um contraponto a Bolsonaro, mas não mudou suas práticas e está longe de chegar à maturidade. Continua com a mesma tática de manipulação da verdade", destacou a deputada estadual Marina Helou (Rede), 35, que foi favorável à cassação de Mamãe Falei na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo). Do Val usou o precedente de Fernando Cury (União Brasil), que apalpou Isa Penna (PCdoB) e foi suspenso, para tentar se livrar da cassação e, na época, espalhou-se uma fake news que dizia que Helou não foi a favor da cassação de Cury.

"Há diferenças gigantescas entre movimentos que buscam formar jovens lideranças, com uma perspectiva plural e compromisso com a política, e o MBL, que cresceu a partir da exploração midiática e não tem nenhuma agenda para o país", acrescentou a parlamentar, que é candidata à reeleição e integra a Raps e o Renova BR.

Os movimentos têm propostas e estilos diferentes, ponderou o deputado estadual Daniel José (Podemos), 34, cofundador do Renova BR e candidato a deputado federal. O MBL teria, segundo ele, pontos positivos e negativos. "De um lado, um papel interessante de trazer pra perto jovens que nunca tiveram interesse na política. De outro, uma capacidade de comunicação, sobretudo online, que tende a transformar a política em entretenimento, o que pode reforçar a ideia de política como conflito, briga de torcida."

Arthur do Val (Mamãe Falei) no lançamento da campanha de Kim Kataguiri (União Brasil-SP) - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Do Val, cassado após áudios sexistas, ficou responsável pelas redes sociais dos candidatos do MBL
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Eles consideram que a eleição de parlamentares com a proposta de renovação política será muito mais difícil neste ano. "O pêndulo deve voltar para a política tradicional", avaliou José, citando como fatores o orçamento secreto e o fundão eleitoral, a dificuldade de engajamento orgânico nas mídias sociais e um desânimo da sociedade com a política.

"2018 foi um momento em que a ideia de renovação estava muito presente na sociedade, elegendo novos quadros de partidos e ideologias diferentes, de Áurea Carolina [PSOL] e Tabata Amaral [PSB] a Gabriel Monteiro e Arthur do Val. 2022 é um momento diferente, uma campanha mais difícil", assinalou Helou.

Balançado por escândalos (além do que custou o mandato a Do Val, Renan é investigado por suspeita de lavagem de dinheiro), o MBL decidiu priorizar o eleitorado paulista, que já estaria familiarizado com Kim e companhia, para eleger parlamentares em 2022.

Kim atrairia eleitores que se identificam com o parlamentar por ser jovem e gostar de animes. Frequentando festivais de games e a Liberdade, é tratado como celebridade ("é o único cara que se importa com o que a gente gosta", disse ao TAB um grupinho de otakus que vão votar pela primeira vez).

Amanda Vettorazzo no lançamento da campanha de Kim Kataguiri (União Brasil-SP), integrante do MBL - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Kim e Amanda citando Naruto: 'Se você não gosta do seu destino, [...] tenha a coragem para transformá-lo'
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Entre Lira e Naruto

"Storytelling", segundo analistas, está no centro das campanhas do MBL para 2022, com foco nas origens dos candidatos em busca de identificação com o eleitorado, seguindo uma estratégia de marketing digital. Para Kim, "storytelling" é fundamental e falta não só no Brasil: "A direita americana tem uma deficiência nisso, faltam escritores e artistas que deem uma 'linha contínua', um 'fio condutor' para o público", comentou.

Assim se lançou em julho, por exemplo, "São Paulo Brasil", documentário que narra a história do estado de São Paulo costurada com as biografias de Do Val e Kim.

Entre esculturas antigas e adornos asiáticos em uma salinha na Associação Hokkaido, Kim conversou com o TAB antes de subir ao palco. Passou uns 25 minutos lembrando as origens de sua família japonesa — os avós saíram da província de Nara e desembarcaram no porto de Santos em 1940. Segundo Kim, a família descende de Katsumoto Katagiri (1556-1615), que fazia parte de um clã samurai e foi um renomado mediador de conflitos de fronteiras.

Fã de jogos desde a adolescência, Kim tenta encampar um marco legal para games, para regulamentar o mercado de jogos eletrônicos no Brasil — em agosto de 2021, propôs o PL 2796, que tramita na Câmara. Ao presidente da Casa, o deputado federal Arthur Lira (Progressistas), certa vez citou o potencial bilionário dos games ao abordar a pauta. Lira, segundo Kim, ficou impressionado: "Dou bronca no meu filho porque ele ficava horas no computador, agora vou falar para ele ficar jogando".

Kim Kataguiri (União Brasil-SP), integrante do MBL, lança candidatura a deputado federal - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Para Kim, storytelling é fundamental para a campanha de 2022: um ‘fio condutor’ para o público
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Na campanha de Samuel Chang (Podemos), 41, integrante do MBL e candidato a deputado federal por Santa Catarina, a história também foca nas origens de sua família imigrante: segundo a narrativa, os avós de Samuel teriam saído a pé e enfrentando uma dura jornada na fronteira entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, uma sinopse que simbolicamente contrapõe o capitalismo e o comunismo (e que agrada ao potencial eleitorado "mbllista" avesso às ideias de esquerda).

Andando no Congresso com uma mochila com uma nuvem vermelha, Kim conta que já se viu alvo de olhares tortos de quem imaginou se tratar de um símbolo esquerdista. "Ninguém entendeu nada", lembra. Era, na verdade, uma referência ao mangá "Naruto".

De repente, Naruto, o jovem ninja, foi citado por Kim e Amanda como "pensador filosófico" durante o lançamento: "Se você não gosta do seu destino, não aceite. Em vez disso, tenha a coragem para transformá-lo naquilo que você deseja". A máxima funcionou, e eles foram bastante aplaudidos.

No fim, Kim e os demais candidatos ocuparam o salão, junto ao público, para gravar uma dancinha estilo TikTok do Naruto ao som de jingles grudentos. Um deles dizia "o japa é brabo" — se ele soubesse como movimentos amarelos há tempos criticam o tom discriminatório da expressão "japa", não a teria escolhido. Ou teria, para lembrar o perfil "politicamente incorreto" do movimento. Ao menos é por isso que um dos presentes se declarou seu eleitor. "Ele é fiel às ideias originais do MBL."